Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pedro Almodóvar entre a maternidade e passados inconvenientes

Hugo Gomes, 02.12.21

madres_paralelas_pedro_almodovar_penelope_cruz_mil

Em tempos, Pedro Almodóvar era etiquetado como o “realizador das mulheres”, hoje em dia, tendo em atenção a representatividade, muitas delas levando as temáticas e abordagens a grupos restringidos, tal cognome tornou-se automaticamente impróprio ou politicamente insensivel. 

Contudo, não podemos fugir da capacidade, ou fascínio, do cineasta em integrar na sua filmografia um leque, vasto e curioso, de personagens femininas, várias delas inspiradas na sua própria mãe, figura cuja importância o próprio tem vincado até hoje. “Madres Paralelas”, o seu novo filme após o “muy” intimista “Dolor y Gloria”, é uma leve reviravolta ao papel maternal, mantendo os seus traços inspiradores mas lhe devolvendo a irreverência solicitada pelos novos tempos. 

Aqui, Penelope Cruz é uma mãe solteira (assim opta), profissionalmente respeitosa e bem sucedida, que acolhe uma jovem mãe (Milena Smit), ensinando-a as mais variadas tarefas domésticas, com destaque a cozinha. Em que cada lição é uma intervenção gastronómica, passo-a-passo na confecção como no amor, delicadeza dos gestos e a manifestação de experiências, e numa dessas preparações, Cruz enverga, bem saliente, uma camisola com o slogan - “Devemos ser todas feministas” - estampadas. Não é mero adereço, nem tendência do momento, é um statement de Almodóvar, a actualização do seu velho e recorrente papel, a mãe inserida num estado contemporâneo e no significado feminista do termo. Será que a definição absoluta advém de “ativismo” ou a mera vivência com fidelidade às suas liberdades e convenções?

Embora Almodóvar seja um homem que coexiste num mundo onde a igualdade adquire um peso na ficção e na criação, “Madres Paralelas” é um filme feminista (da mesma forma que muitos da sua carreira foram), porque simplesmente são as mulheres que ganham aqui um protagonismo imenso (os homens são, neste caso, meros “doadores”), não apenas na narrativa ou na carga dramática, mas nas comunidades e convivências alicerçadas em cada uma das suas ficções, com toda e merecida sensibilidade. 

Mesmo que obra menor, aliás, uma novela que não esconde o seu lado de farsa e de plasticidade técnica (os constantes fade outs que adquirem cumplicidade com o artificialismo sensual e por vezes onírico), servida de isco para um panfleto (quase pedagógico) de punho cerrado a favor das memórias importunas e incômodas. O franquismo, pó varrido para tapetes politizados, é aqui denunciado em contornos de subenredo, uma inconveniência solicitada para desmascarar novelas mal emaranhadas. 

Nos últimos anos, o cinema espanhol tem conseguido encontrar formas para referir o tema tabu, e “Madres Paralelas” lida isso com uma agressividade revanchista e de bramir armas convictas. É, à sua maneira, um filme para novas gerações, determinadas em não esquecer e mais que isso, perpetuar uma dignificação dos sofridos de um regime e dos “sem nome” ocultados pelo mesmo. Nesse sentido, Pedro Almodóvar fez o seu papel. 

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

maxresdefault.jpg

A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

todos-lo-saben.jpg.crdownload

"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

le-passe-d-asghar-farhadi-cannes-2013-film-critiqu

"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

DSC_0333_CECILIAMELO.jpg

Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

Forushande_4.jpg

"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]

Vossa Excelência, a "Rainha de Espanha" ...

Hugo Gomes, 06.10.17

401252.jpg

Dezoito anos depois das peripécias tragicómicas de “La niña de tus ojos”, Fernando Trueba regressa a essas familiares personagens, a essas caras que cresceram com ele e na indústria espanhola. Penélope Cruz, por exemplo, transformou-se neste período de tempo numa estrela global. Em “La reina de España” (“A Rainha de Espanha”) seguimos a chegada de Hollywood a terras de Franco, a criação dos grandes épicos históricos espanhóis e a formação de grandes estrelas castelhanas; de Espanha para o resto do Mundo.

Sim, Trueba (do oscarizado “Belle Époque" e “Chico & Rita”) consegue neste filme recuperar um certo tom de júbilo, enquanto olha satiricamente para o cinema norte-americano e os seus acréscimos. A obra é fustigada pela sua crítica política, multifacetada, polivalente, mas completamente insaciável. Infelizmente, é essa característica que transforma a 'Rainha' num filme demasiado trocista e sem a devida credibilidade no seu discurso. É possível verificar as diferenças estéticas entre a sequela e o original. “A Rainha de Espanha” funciona como uma representação da atual indústria espanhola (sem querer generalizar), a perda da sua identidade técnica e cinematograficamente linguística e o abraçar para dos códigos rotineiros do cinema mainstream ocidentalizado, ou simplesmente,  o mero telefilme.

É um filme que aposta sobretudo no seu conteúdo, acima da sua forma e, nesse aspeto, Trueba conduz-nos a uma revisitação cansada, ilibada pela culpa do oportunismo, mas que nem sempre encontra na homenagem um trunfo cinematográfico. Penélope Cruz revela-se na estrela formada, o astro que em 18 anos conquistou meio Mundo, mas hoje, "afagada" por uma chama vencida.

Talvez num terceiro filme, se Fernando Trueba permitir, Cruz seja convertida numa espécie de Gloria Swanson, uma diva decadente iludida pelo glamour de outros tempos. Mas por enquanto, fiquemos com esta "brincadeira franquista", o mais recente pronto e esquece do cinema espanhol.

Fernando Trueba: "Nesta indústria, se um realizador tem um Óscar, ele é ouvido com mais atenção"

Hugo Gomes, 04.10.17

GettyImages-635154632-scaled.jpg

Fernando Trueba

Para o realizador espanhol Fernando Trueba, Portugal é uma terra familiar, uma espécie de segunda casa. Foi exatamente aqui que concretizou a sua obra-chave, “Belle Époque”, filmada integralmente no nosso país. Essa “Bela Época” garantiu o Óscar a Trueba, que desde então tem vindo a tentar a sua sorte nos mais diversos géneros e estilos cinematográficos, entre eles, a animação, onde novamente figurou na gala das muy cobiçadas estatuetas com “Chico & Rita”. Porém, neste caso, ficaria somente pela nomeação.

La Reina de España” (“A Rainha de Espanha”), a sua mais recente obra, é uma continuação de um dos seus grandes êxitos, “La Niña de tus Ojos”, a história de cineastas espanhóis em terras de Hitler que suscitou uma sátira sob o signo nostálgico da Sétima Arte, no seio do assombrado clima do nazismo. Nesta sequela, o alvo é Hollywood fora de Hollywood, as primeiras colaborações dos EUA com Espanha através do cinema, o regresso das personagens que escaparam às garras de Adolf Hitler, e que agora residem sob a ameaça do regime de Franco. Mas a sátira continua, da mesma maneira que o amor por Portugal subsiste em Fernando Trueba. Tive o privilégio de conversar com o realizador.

Queria começar a conversa por dizer que Fernando Trueba é um realizador bastante querido para Portugal, até porque o Óscar que recebeu com “Belle Époque” (1992) foi, em certa parte, português.

Sim, claro, porque muita da equipa era portuguesa, assim como o filme foi filmado integralmente em Portugal. No momento em que recebi o Óscar, agradeci sobretudo aos meus colegas portugueses, também franceses e espanhóis, porque tinham alguns dessa nacionalidade na nossa equipa.

E agora regressa ao país para apresentar a sua mais recente obra.

6 Anos antes de “Belle Époque” já havia concretizado um filme em Portugal, “El Año de las Luces”, que foi rodado em Ponte de Lima. Mas aí a equipa era totalmente espanhola, havia sim gente que trabalhou direta ou indiretamente no filme, mas era sobretudo gente local, que ajudava na produção, na decoração, afins, e havia um ator português.

Falando em regressos, como foi este revisitar o destino de Macarena Granada?

Não foi um regresso a Macarena Granada, mas sim ao seu universo, porque para além dela retornaram outros personagens, oito para ser mais exato. Na altura que realizei “La Niña de tus Ojos” não pensava em fazer uma segunda parte, mas depois de terminar o filme de 1998 muitos questionaram-me se a personagem do realizador [Blas Fontiveros] havia morrido, o que teria sucedido a ele. Eu inicialmente respondia: “Não sei, só sei o que está no filme”. Passado pouco tempo o meu discurso alterou para “sim mataram-no”. Percebi então que as pessoas gostavam da precisão, de factos concretos.

Certo dia, já nem me lembro se estava a pé ou no meu carro, mas sei que comecei a questionar, “porquê matá-lo? Que mal ele fez? Ele era apenas um realizador, não estava envolvido em nenhuma conspiração contra Hitler”. Então imaginei o seguinte: durante aquele período de ascensão do nazismo na Alemanha, Espanha está em guerra [guerra civil] e ninguém reclama por ele, e assim é esquecido na História e tentaria voltar a um país irreconhecível num tremendo conflito. Pensei nisto, mas não com a intenção de escrever uma continuação, foi antes uma insinuação.

O que aconteceria com Macarena? Será que ela se tornaria uma estrela de Hollywood? Sim, ganharia o Óscar e teria um tremendo sucesso mundial. E os outros? Os outros continuariam lutando pelas suas vidas e carreiras, trabalhavam e envelheciam.  Foi com esses “e se” que o filme começou a construir-se na minha cabeça. Supor o destino destas personagens, e à medida que suponha comecei também a imaginar gags, sequências cómicas e divertidas que entretanto poderiam suscitar esse regresso a Espanha e a estas velhas personagens. No intervalo destes dois filmes, falava com os atores e perguntava: “e se eu fizesse uma segunda parte de “La Niña de tus Ojos”? Vocês entrariam?” Todos aceitaram. Todos. Passados alguns anos, dei por mim a trabalhar nesta “A Rainha de Espanha”.

O primeiro obstáculo era decidir onde decorria e quando. Cheguei à conclusão que o melhor período era a época dos americanos, quando estes chegariam de Hollywood para filmar as suas grandes produções – entre 1956 a 1964. E, ainda melhor, o primeiro filme americano nas terras espanholas, nada melhor, visto que “La Niña de tus Ojos” decorria em ’1938 e eu filmei-o em 1998, este aconteceria em ’1956 e filmaria-o 18 anos depois (para corresponder exatamente a esse espaço de tempo decorrido. É uma “tontaria” mas funciona). Seria um daqueles épicos históricos que só Hollywood sabia fazer, o derradeiro filme, aquele que ligaria novamente todas as personagens. 

f.elconfidencial.com_original_456_7a0_31a_4567a031

Fernando Trueba dirige Penélope Cruz em "La Reina de España" (2016)

Uma das personagens de “A Rainha de Espanha” clama a certa altura que “Hitler era o protagonista, Franco o ator secundário”. Podemos referir este filme como uma crítica política?

Eu vou realizar uma comédia, e se esta for boa contará com elementos que condizem com a realidade, a crítica como chamamos, o comentário social, tudo isso estará imposto no filme. Acredito que todas as comédias resultam, de certa forma, em críticas, até mesmo as dos irmãos Marx. “Duck Soup”, por exemplo, na sua maneira mais absurda, era um autêntico comentário social.

Mas atenção, por mais político e crítico que o filme seja, o objetivo de realizar e escrever um filme não é a iniciativa de construir uma crítica política. No meu caso, eu não quero fazer crítica, antes disso vou contar uma história da melhor forma possível e é nela, no caso de ser bem sucedida, que se vai concentrar a referida crítica. No filme colocamos a nossa personalidade, o nosso ponto-de-vista, o amor ao cinema, muita coisa importante, mas automaticamente não assumimos a crítica política. Eu não faço críticas políticas, faço filmes.

Sempre falamos de política, e fazemos sempre críticas dessa natureza. Quando estamos com os amigos, ao jantar, no trabalho, etc., no filme apenas falo de política, mas como havia referido antes, o meu ponto-de-vista é salientado na obra. Ora aí tens a crítica política. Inicialmente eu não o faço, mas sim filmes. Contudo, e buscando a lógica desse teor político, se vou contar uma história decorrida na era franquista, como poderia não contornar a evidente crítica. Ser um testemunho da situação e invocar todos os elementos que coexistiam com a época.

Para além da crítica, há momentos puros de sátira, principalmente no seu retrato a Hollywood.

Sim, de alguma maneira é. Tentei ser realista em caracterizar as intuições de Hollywood em Espanha. Eles chegaram ao país com a ambição de concretizar aqueles épicos históricos, mas um histórico da palavra hollywoodiana, não os de coerência histórica. Também tínhamos a temática dos “black list”, argumentistas condenados pelas suas ideologias políticas e restringidos, de forma a sustentarem-se, a filmes menores. Muitos deles, por exemplo, seguiam para Itália para concretizar os peplums. Tentei condensar isso na minha personagem argumentista, lembras-te dele referir que trabalhou nesse país num filme sobre Pompeia? Pois, e que aceitou seguir para Espanha para concretizar o épico histórico representado em “A Rainha de Espanha”?

Estes “black list” eram contratados para trabalhar nas produções de Hollywood na Europa, apenas por questões financeiras. Eram mais baratos, ninguém nos EUA ousaria dar-lhes emprego, considerava-os numa ameaça. Eles tinham que trabalhar para sobreviver, aceitavam “trocos” e o nome deles nem sequer era merecedor de surgir nos créditos. Um deles, Dalton Trumbo (penso que fizeram um biopic recentemente dele), um notável escritor que fora uma das vítimas dessa condenação da lista negra, restringido a trabalhos que mais ninguém queria, ou sujeitos a pseudónimos. O mesmo fizeram com Donald Ogden Stewart, que fora o argumentista de “Philadelphia Story”, no qual venceu um Óscar, e que passou o resto da vida a trabalhar em Londres.

Isto tudo faz lembrar uma história. Quando foi reinstalada a democracia em Espanha, o partido comunista foi legalizado e assim organizada a primeira festa do partido. Eu não sou comunista, nem nunca fui, mas fiquei curioso acerca deste evento. Era o primeiro do país, um acontecimento, só por isso queria ir à festa. Cheguei lá e deparei-me com milhões de pessoas, políticos, artistas cantando, dançando, todas as artes unidas num só lugar. Aqueles artistas de esquerda, que anteriormente todos condenavam, ali a brindar a vitória da democracia e a legalização do seu partido. E no meio daquele “mar de gente” estava Melina Mercouri, a atriz que se tornou ministra da cultura da Grécia. Ela estava lá! E com ela, o seu  marido, Jules Dassin, o realizador de “Naked City” e que trabalhou com a atriz naquele filme famoso, o “Never on Sundays”, que penso ter vencido um Óscar. Um excelente realizador, sim, era excelente.

Mas bem, continuando … estava naquela festa, apertado devido à multidão, e começa a chover. Foi então que vi no horizonte aquele sujeito elegante de cabelo branco, do estilo Nicholas Ray [risos]. Ele passava pelas pessoas e ninguém o reconhecia, eu decidi então abordá-lo, “Oi, você é Jules Dassin!””Sim, sou, você conhece-me?”. “Eu conheço os seus filmes, quero um dia fazer cinema”. Lembro perfeitamente, estava a chover fortemente em Madrid, e eu ali ao lado de Dassin. Naquele momento ele disse que estava na “black list”, que teve que sair dos EUA para poder trabalhar. Imagina só, um realizador daquela categoria e não poder trabalhar por causa da sua visão política! E pior, ninguém sabia quem ele era naquela festa. Estávamos a falar de um realizador de Hollywood.   

Existe outra “farpa” lançada na Rainha de Espanha aos prémios da Academia. No seu filme, vocês apresentam a personagem de um realizador, de pala no olho, que conquistou mais de uma centena de Óscares. Visto como um grande em Hollywood, você o exibe como um calão, sem talento e desleixado. De certa maneira, encontramos aqui uma crítica aos Óscares e as escolhas destas? Por outras palavras, o que significa para si a estatueta?

Nesta indústria, se um realizador tem um Óscar, ele é ouvido com mais atenção, como se a estatueta fosse uma espécie de credibilidade, uma carta de apresentação. Em relação ao meu Óscar, curiosamente, “Belle Époque” foi o filme de língua estrangeira mais visto naquele ano nos EUA, e, não desprezando, até porque recebeu excelentes críticas. Mas não era o favorito à estatueta. Nesse período, o predileto era o candidato chinês, “Farewell My Concubine” [“Adeus, Minha Concubina”], de Chen Kaige, mas no final fomos nós os vencedores. Anos mais tarde, aconteceu o mesmo com o filme de animação, “Chico & Rita”. Éramos os favoritos, mas a estatueta foi parar ao “Rango”, que era de um gigante, a Paramount. Nós, por outro lado, tínhamos uma produtora tão pequena nos EUA.  

image.jpg

"Chico & Rita" (Fernando Truba & Javier Mariscal, 2010)

Sim, há um lado movido por “influências” nos bastidores da gala do prémio mais cobiçado da Sétima Arte.

A influência tem muito poder. Existe muita gente que trabalha através disso, influência. E no seio desses prémios existe gente disposta a votar em filmes fora dos grandes estúdios. Por vezes até mesmo os independentes ganham, mas é raro. Nesse ano, “Chico & Rita” era um acontecimento, nunca tivemos uma animação espanhola entre os nomeados, e era o meu primeiro filme do género. Só o facto de ter estado lá, foi um feito.

E haverá um terceiro registo de Macarena Granada?

Por vezes penso, mas tem que passar no mínimo, dos mínimos, 10 anos, para poder dar um salto no tempo. Não é um projeto que tenho em mente, assim como não era plano concretizar um segundo filme. Todavia, existem muitos que me perguntam exatamente isso, e eu na brincadeira respondo que o terceiro filme decorrerá em maio de ’68, em Madrid. Enquanto França estava na sua revolução, em Espanha estávamos nos westerns spaghettis

Como última questão, e a mais “tricky”. “A Rainha de Espanha” está rodeada de uma certa polémica que envolve os direitos das personagens. Os argumentistas - Manuel Angel Egea e Carlo Lopez - o processaram devido à ausência dos seus nomes nos créditos destes filmes, e visto que estiveram presentes na criação de algumas das personagens “repetentes” de “La Niña de sus Ojos". O seu irmão, David Trueba, sai em sua defesa. O que tem a dizer sobre este assunto?

A verdade é que esses argumentistas não escreveram absolutamente nada. Eles escreveram um guião, sim, que venderam a um produtor e este ofereceu-me a mim. Eu li e não gostei, o produtor disse que eu poderia alterar o que quisesse e respondi exatamente isto: “aí está o problema, eu não gosto rigorosamente de nada. A única coisa que acho interessante é a época.A época dos espanhóis na Alemanha. Isso dava para fazer uma comédia, mas de resto nada, este guião vale um zero.” Aí o produtor questionou: “mas se reescreveres, farias o projeto?” Então aceitei nessas condições, demonstrei o meu interesse se pudesse escrever o guião do zero e ainda fiz mais uma exigência, queria Rafael Azcona.

Durante vários anos eu e o Rafael trabalhamos neste argumento e, acredite, eu nunca estava satisfeito. Tivemos um ano apenas dedicado à documentação, a prova que começámos do zero. Pesquisamos Riefenstahl, Goebbels, Guerra Civil Espanhola, os espanhóis que foram para Berlim, a biografia de Franco, etc., um trabalho de estudo. Partimos completamente do zero. Mas mesmo assim, não estava satisfeito, então vim para aqui [Portugal] e fiz o “Belle Époque”. Reescrevemos depois o guião mais duas vezes e, mesmo assim, não estava contente. Então foi a vez de Miami e lá fiz o “Too Much”.

O meu produtor só me perguntava, “não queres fazer o filme?”. “Claro que sim, a história é muito boa só que não consigo acertar no guião, quer dizer, adoro os dois primeiros atos, mas o terceiro … bem, simplesmente não gosto”. Nessa altura o meu irmão estava a começar a sua carreira, tinha publicado o primeiro livro e então foi sugerido: “porque não chamamos o teu irmão para a equipa, talvez precisemos de alguém novo e fresco para compor o terceiro ato”. O meu irmão embarcou na equipa e conseguimos, não só, escrever o terceiro ato, mas  redefinir todo o filme. Por exemplo, a personagem do tradutor, que para mim era o melhor do filme, não estava originalmente no roteiro. Foi graças a David que ele integrou o enredo.

O que quero dizer ao certo é que este ano vamos estar presentes frente a um juiz, e como conservo o guião, este irá ser submetido aos mais diferentes tipos de testes forenses, filológicos, estilísticos, e não vamos apenas a avaliar personagens e enredo.