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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Diálogo com as sombras

Hugo Gomes, 10.05.24

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Sobre Wiseman e como falamos do Wiseman entra em conflito com este “Un Couple”, visto como uma excepção ao seu estudado modus operandi, assim queremos acreditar. Contudo, há que ter em conta o contexto desta sua ficção, “a primeira” segundo as considerações do próprio - no entendimento e encurtar das nuances nas fronteiras entre as duas dimensões [ficção e documentário], opomos como a terceira (se contabilizarmos “Seraphita’s Diary”, 1982) - foi concebido em alturas de COVID e confinamentos, cuja sua abordagem torna-se numa resposta alternativa naquilo que Wiseman sempre se primou e que se encontrava privado, diríamos a sua sublinhada essência, as instituições enquanto ponto de partida. 

Portanto, falar de Wiseman de “Un Couple” não é o mesmo que falar de Wiseman de “National Gallery” (2014), de “Zoo” (1993) ou até mesmo na progressiva aproximação à sua natureza consagrada em “High School” (1968), é penetração numa experimentação tardia. Com isso aproximamos de uma outra experiência sua - “The Last Letter” (2001) - com base numa criação literária de Vasiliy Grossman, em que a atriz Catherine Samie, interpretando uma sobrevivente do Holocausto numa ocupada cidade ucraniana, lê a última carta do seu filho, um filme que reune as bases dramaturgias teatrais com uma narração epistolar. Tal igualmente apresentado neste “Un Couple”, desta feita embarcando na troca de correspondência entre Sophia Tolstaya com o seu marido, o célebre escritor russo Leo Tolstoy. A matriz mantém-se, uma atriz, neste caso Nathalie Boutefeu (“Irma Vamp”), debita a mistela producente da condensação destas cartas e diários, trazendo consigo um discurso de representação à relação tortuosa entre o casal e, possivelmente, refletindo numa alma de dor do cineasta. 

O filme foi concebido nesse luto de Wiseman (a sua esposa, professora e musa Zipporah B. Wiseman, faleceu em janeiro de 2020), do extrato, o diálogo imaginário e inconclusivo de Sophia transporta-se e revela-se numa espécie “mea culpawisemaniana enquanto desconstroi uma simbiótica presença matrimonial com une dois artistas tão talentosos como inconformados. E é por isso que questionamos o interesse do cineasta nesta aventura fora das suas aventuras? Para além da carga de conforto sentimental em histórias de outrem, possivelmente o desejo na replicação da sua esquadria, a prova dos nove de fazer ficção como quem faz documentário (apesar de Wiseman tal consideração ou demarcada existência imposta na palavra “documentário”). 

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Nessa veia escondida documental (contrariamos a vontade do realizador), nota-se o grande ardor do filme, aliás, a primeira sequência com mar à vista no horizonte, praia e falésias, o vento que sonoramente desafia a sua presença para lá do elemento, surge-nos uma gaivota, uma acidental ave em destacado plano, revelando-se no ponto de referência mais wisemaniano desvendado por estas bandas, a sua relação com o espaço e com o tempo é um catalisador desse olhar tão observacionista que o cineasta angaria como talento natural e que expressa como interlúdios do falso-monólogo da atriz Boutefeu (fauna e flora, visualmente ou sonoramente, tecendo poesia bucolista que no texto está ausente). 

De resto, partindo de Sophia no seu aposento, escrevendo e rescrevendo, a meia luz da sua vela - a imagem de entrada do universo que nos acompanhará, a rimar com a de saída, esse reconhecimento ao seu quarto tenebroso - e a seguimos por um passeio temporalmente uniforme naquele jardim, a recitação de cartas e esse conversar para com a invisibilidade (o título traiçoeiro “Un Couple” coloca-nos na sugestão desse diálogo distante), que colocam Wiseman na imagem de um Colosso de Rhodes, pisando cada margem, seja na sua “ciência” fílmica seja nas bravuras em defesa do Verbo como dita o cinema comumente atribuído ao registo straubiano

Acima de tudo, é através desse instrumento formalista que Frederick Wiseman se reconhece nesses escritos, e é a partir dessas camadas que nos deparamos com um objeto totalmente emocional. Em tempos incertos, um passeio pelo jardim torna-se um processo de apaziguamento dos seus próprios demónios.

 

Pensar a História é sempre uma relação do momento presente."

 Pedro Florêncio, “Esculpindo o espaço: O cinema de Frederick Wiseman” (Edições Húmus)

20 Anos de Doclisboa: a Galeria Digital

Hugo Gomes, 08.10.22

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Para comemorar os seus 20 anos, o Doclisboa preparou-nos uma Galeria Digital de videos de 20 segundos, com contribuições de autores e artistas como Valérie Massadian, Avi Mograbi, Edgar Pêra, Teresa Villaverde, Regina Guimarães, Renata Sancho, João Pedro Rodrigues, James Benning, Pedro Florêncio, Karen Akerman, João Mário Grilo, Jorge Pelicano, entre outros.

Para visitar aqui.

15 Anos, Escritos de Resistência [Índice]

Hugo Gomes, 12.08.22

O silêncio da crítica no templo do cinema

Hugo Gomes, 25.07.22

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Jalsaghar / The Music Room (Satyajit Ray, 1958)
 
"Escrever (inscrever) manifesta o saber-ler porque, na realidade, ler já é escrever (sem inscrição). A leitura é uma escrita que não deixa rasto: escrita plenamente interior ou apenas sussurrada. Só por essa razão – e não por qualquer reverência suspeita – se deve fazer silêncio num museu: alguém, ao nosso lado, pode estar a escrever interiormente." 
 
(Tomás Maia in Incandescência - Cézanne e a Pintura. Lisboa: Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar/ Sistema solar/ Documenta, 2015, p. 48)
 
 

 

*Da autoria de Pedro Florêncio, cineasta e professor de História de Cinema na licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa

Tristeza e alegria na vida dos cinéfilos

Hugo Gomes, 16.03.22

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

O medo da juventude parece um sintoma sobretudo manifestado por quem vê o seu cânone ameaçado por eventuais revisionismos ou reavaliações patrimoniais. Inconcebível percepção de que até os mesmos jovens detêm o seu direito de “queimar livros”, apologia de Henri Langlois que parece ser apenas aplicada a qualquer intervenção de Godard e nunca amplificada aos demais. Não que concorde totalmente com a destruição de um pensamento para a criação de um outro em oposição, mas sim, com específica abordagem com a novas gerações para uma conscientização do universo cinematográfico e mais do que impor vontades e visualizações, a possibilidade de escuta, as suas preocupações e visões, a fim de lhes conquistar o interesse. A cinefilia não é um estatuto garantido e estagnado, é um estado de passagem e quem faz desses territórios a sua casa é, inevitavelmente, proclamado cinéfilo como o alpinista que atinge o cume de tão apetecível montanha. Mas que é isso de ser “cinéfilo”? Curiosamente, foi através de um jovem que me fez questionar essa mesma “roupagem” nos últimos dias. 

Apresento-vos Fábio Silva, graduado na Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo no seu currículo algumas curtas - e uma longa-metragem à espera da luz do dia (“Hip to da Hop”, que quase obteve estreia comercial nos cinemas em 2018) – desafiou-me a repensar na definição de cinefilia, exercida para os dias atuais como gerais, num dos seus trabalhos. “Fruto do Vosso Ventre”, a curta motivadora deste texto, arranca com o próprio Silva a expor-se no ecrã, advertindo ao espectador daquilo que veremos e aquilo que a obra se assume, uma colheita memorialista, sobretudo de vídeos caseiros armazenados pelo seu pai, uma cápsula temporal que ostenta um teor genealógico. Essa visita guiada a um passado não tão longínquo, em busca de uma recordação que o une com o seu progenitor intermitentemente ausente, realça uma jornada identitária, tal como sucedera com “Visita ou Memórias e Confissões” de Manoel de Oliveira (o próprio realizador confessou-me essa inspiração, evidente no ponto de partida e de partilha do filme, a casa e que reminiscências ela esconde, no caso de Fábio Silva é a sua habitação de infância no Alto dos Barronhos).

O documento venceu o Prémio de Documentário do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, seguindo o quarto uso do cinema propriamente dito, fora do narrativo, político e estético (este último pode estar “embrulhado" nos anteriormente mencionados, mas isso é conversa para uma outra altura), deparamos com as propriedades arquivistas, a de preservação de uma existência. Silva desejou com este pequeno filme conduzir-se à razão da sua presença neste mundo, tentando, como vontade epifânica, decifrar a personagem fantasmagórica que é o seu pai. Há aqui qualquer coisa que me remeteu aos ditos e lições (muitos que elucidamente adquirem cariz motivacional) do professor de cinema Pedro Florêncio nas suas aulas, em particular numa sessão sobre a Nouvelle Vague, referindo a transgressão destes, na altura, jovens cineastas, que “por vezes para avançar, o filho deve ‘matar’ o pai”. Aqui o verbo matar é figurativo, não o ato grotesco e animalesco, mas o de “cortar” com um pensamento seguidista que nos limita as ideias num só traço, e porque não, a falta de ambição para se restringir a aprovação “paternal”? Fábio Silva não “matou” o seu pai, mas o superou na sua partitura existencial, e através disso, traçou o seu próprio caminho, nem que para isso tenha que reviver, ou melhor, revisitar as suas memórias. 

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Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1993)

A esta altura o leitor, o que tem de relacionado a curta de um jovem com o legado já duradouro e de certa forma paquiderme da cinefilia? Em “Fruto do Vosso Ventre” reti uma frase proclamada pelo próprio realizador / protagonista enquanto remexia e mostrava com o seu devido destaque a coleção de VHS(s) do seu pai: “O meu pai sempre foi cinéfilo sem saber o peso da palavra.” E aí fez o “clique”, não porque obtive uma resposta concreta, mas fiquei por mim a pensar o que é realmente ser um cinéfilo e que consequências isso aplica? Além do mais, que razão Fábio Silva declarou o seu pai como tal sem ter a consciência de o ser?

Palavra resultante da conjugação entre Cinema e Filo (do grego amigo), no sentido mais simplista do termo, o cinéfilo é um apaixonado por cinema, um vocacionado pela arte e na preservação da mesma nem que para isso a sua existência resuma a demonstrações amorosas. Em certa parte, a cinefilia é essa relação, esse ato de amor consumado que provoca vício, tornando os cinéfilos “doentes” e insaciáveis. Para Fábio Silva a devoção pelas imagens por parte do seu pai, seja na arrecadação de memórias filmadas e preservadas que mais tarde são fruto de um ventre cinematográfico (o filme para quem as metáforas fogem), ou seja nessa memória transcrita nos filmes que grava em 8mm ou a que detém na sua coleção de “cassetes”. A cinefilia pode muito ser uma jornada identitária, e cinéfilo essa posição de constante descoberta de si próprio. 

E como em qualquer introspecção, existe um efeito entrópico, um caos que rodeia a cinefilia, mas será também o seu interior desorganizado? Discordo da organização, aliás, afronto-o com a História. Os Cahiers du Cinéma, a génese da Nova Vaga Francesa como bem sabemos, insurgiu-se contra uma canonização, um certo cinema francês, seguindo a ordem de pensamentos de Truffaut, que se instalou numa determinada intelligentsia francesa. Foram eles mesmos que colocaram Chaplin, Hitchcock e Hawks no sistema da canonização, portanto, “mataram os seus pais”, novamente parafraseando Florêncio, ou “queimaram livros” como situa Langlois. 

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Sunrise (F.W. Murnau, 1923)

Portanto, porque é que precisamos de três estágios como neste “artigo” (mais uma confissão que qualquer outra coisa) do site de cinéfilos “À Pala de Walsh”, sem ser o da limitação do próprio conceito de cinefilia? Porquê que quando falamos de decadência do cinema a ligamos umbilicalmente a uma “decadência da cinefilia” como fizera Susan Sontag no seu famoso texto em comemoração dos 100 anos do Cinema? Devemos confinar a cinefilia à nossa própria cinefilia, da mesma forma que Louis Skorecki escreveu na edição de abril de 1978 do Cahiers', um ativismo à chamada “nova cinefilia” que não foi mais do que o realçar da sua autenticada cinefilia?

Através dessa sopa de ideias faço o exercício mental de ir atrás da raiz de tudo. O que me faz duvidar de uma cinefilia canonizada? E a resposta foi encontrada na imagem, aliás, devo antes insinuar, palavras, vindas de Luís Mendonça, na altura somente fundador do referido site “À Pala de Walsh”, hoje já professor e programador da Cinemateca (só para dar a ideia de como nós somos personagens em desenvolvimento), que perante uma audiência, o qual fazia parte, lê um específico texto da autoria de Sabrina D. Marques, também ele relacionado com definição de Cinefilia. Não recordo de grande parte dele (numa pesquisa rápida o encontrei aqui), mas memorizei uma palavra tida como uma única frase - "Anarquia''.   

Cinefilia pode assumir muitas definições, conotações e razões, mas nunca dependerá da disciplina, e essa mesma revela-se na antimatéria da própria liberdade, sobretudo a do olhar. Um olhar treinado não poderá ser um olhar limitado, acima disso, um olhar experiente que saiba contextualizar e a cinefilia integra essa experiência a merecer ser passada para terceiros, porém, densamente incrustada em nós. Não se trata de conflito entre cinefilias, trata-se sim da coexistência dessas mesmas que constituem uma constelação. Como o crítico Ricardo Gross uma vez disse, “o Cinema é familiaridade, é a aproximação para com os outros”. Não é bem a citação correta, mas sim o espectro desse mesmo diálogo. 

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

Falando em diálogos, um outro amigo, Duarte Mata, revelou-me uma fábula de Esopo - “O Vento e o Sol” - em que os dois elementos apostam, qual dos dois conseguem fazer com que um pobre viajante despisse o seu casaco. O Vento começou, soprou e soprou com a intenção do casaco voar. Não resultou e, aliás, o viajante agarrou-o com ainda mais força. O Sol, por sua vez, começou a brilhar intensamente, mais e mais, causando calor, levando, por fim, o errante voluntariamente a retirar o casaco. O Sol ganhou a aposta, e desta metáfora é-nos incutido a seguinte moral - a persuasão tem-se em melhor estima que a força. Ou seja, “obrigar” alguém a ver, no mínimo duas vezes, “Sunrise” de F.W. Murnau antes de este “pegar” numa câmara, não é favor nenhum a uma eventual cinefilia, é antes, incentivar à criação de anticorpos no indivíduo o qual deveríamos cativar. A consequência é a alimentação dum conflito entre cinefilias, aliás a disputa de uma nova em oposição de uma velha e cansada.

E foi com Fábio Silva que a ideia de cinefilia e a inexistência de uma definição total nela me fascinou ainda mais, e é por essa via que reforço a minha fé nos jovens em encontrar o seu caminho pelo Cinema e dedicarem-se à sua devoção do mesmo. Nós, “cinéfilos de velha guarda” como quiserem chamar, estamos presentes para os guiarem, alicerçá-los a redescobrirem-se, não para formatá-los a um modelo idealizado de “cinéfilo” (aquilo que nós poetizamos como tal). 

A convite do YMOTION, moderei um debate entre os jovens realizadores de uma linhagem de curtas vencedoras do festival, entre elas “Fruto do Vosso Ventre”, que foi projetado na Escola Artística de Soares dos Reis, na cidade do Porto, perante um auditório composto segundo as restrições impostas pelo Covid. Sei que abusei do meu tempo, e no final da sessão-conversa dirigi-me à plateia, jovens sobretudo, e desafiei-os ao seguinte: “Se acham que o cinema português não comunica com vocês, o conselho que tenho vos a dar é pegar numa câmara e fazerem o vosso ‘cinema’. Deixar a vossa impressão nele.” Muitos balbuciarão de raiva perante este “ato grotesco” de solicitar o cinema apenas pelo gesto de filmar, mas é um incentivo ao apetite e quem sabe, desse apetite nasça cinéfilos, novos e frescos, assim como novos olhares, possivelmente um novo cinema português. Mas isto é especulação e os cinéfilos foram péssimos em prever o futuro. 

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Durante a Projeção-Conversa do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, na Escola Artística de Soares dos Reis

PS: Neste texto, algo diarista digamos, menciono pessoas. Tal não foi em vão, nem sequer tive a intenção de servir deles como galões de legitimidade para o meu discurso. Apenas achei por bem, num texto sobre cinéfilos, “amigos do cinema”, invocar alguns dos meus amigos e cinéfilos. Porque é através da cinefilia deles que a minha enriquece. 

“Não é só de ‘Cavalgadas Heróicas' que a Cinemateca é feita”: na corrente de novos e jovens públicos.

Hugo Gomes, 17.02.22

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Livraria Linha de Sombra

Foi em 5 de janeiro de 2015 que a Cinemateca apresentou uma grelha habitual e atual, de cinco sessões diárias, com isto permitindo a exibição de mais filmes, trazendo mais diversidade e incentivando mais público. E também essa feliz data coincidiu com a abertura da livraria.” referiu João Coimbra Oliveira, o conhecido “livreiro” da Linha de Sombra, aquele que é para muitos uma livraria, para outros um canto de “perdidos e achados" de pérolas cinematográficas, em modo literário. Por entre as prateleiras recheadas e as bancadas sempre renovadas com lançamentos e relançamentos, Coimbra Oliveira faz do espaço, uma segunda casa a cinéfilos errantes ou os “da casa”. Sempre cordial e auspicioso aos mesmos que anseiam encontrar ali o há muito pedido livro ou apenas meter dois “dedos de conversa” - “Vais ver algum filme hoje?” - é sempre desta forma que a longa tertúlia começa, mas naquela altura o incentivo era outro, o lançamento do livro de Alain Bergala (“A Hipótese de Cinema”), historiador e crítico, que como o próprio indicou, interessado na educação através do Cinema e o uso da Sétima Arte para moldagem de “pessoas melhores” na nossa sociedade. Contudo, não cheguei àquele compartimento com intuições de adquirir uma nova cópia do mais recente volume do catálogo da Cinemateca ou o mítico “Esculpindo Tempo” de Andrei Tarkovski, mas antes esmiuçar sobre o papel da de cognome Casa do Cinema ao longo destes tempos, e principalmente a sua relação com os mais jovens, os possíveis cinéfilos-herdeiros.

A livraria “Linha de Sombra”, integrada no edifício da Rua Barata Salgueiro, serve-se como um dos satélites ao ecossistema próprio da Cinemateca, o Museu de Cinema que tem resistido aos tempos incertos da pandemia. “Foram no total de 100 dias que os cinemas estiveram encerrados no primeiro ano de pandemia. Foi uma situação dramática para todos.” relembra João Coimbra Oliveira enquanto arruma as prateleiras periféricas do balcão. “Já no segundo confinamento, estivemos 60 dias fechados, até passarmos a sessões reduzidas. Hoje, já estamos a aproximar a invejável grelha do passado, a das cinco sessões diárias.” 

O drama vivido pela Cinemateca em 2020 não foi exclusivo, a interdição imposta pelas medidas de prevenção e combate à Covid19 atingiram os cinemas em geral, e não apenas no nosso país. Mas enquanto estas salas comerciais lidavam igualmente com os adiamentos dos lançamentos e produções cinematográficas, a Casa do Cinema apenas estava impedida de funcionar, programação, neste caso filmes não é o que faltava à instituição. Mas a pandemia não foi totalmente prejudicial, o próprio “livreiro” refere a uma espécie de renascimento na Cinemateca em paralelismo com o surgimento de um novo tipo de cinéfilo. “Com a pandemia, as plataformas de streaming tornaram-se mais que uma alternativa ao consumo de cinema. Criou novos hábitos, mas não foram só ‘coisas’ desastrosas, as plataformas aproximaram as pessoas dos filmes e por efeito aos livros. (...) Outro fenómeno indiciado na reabertura da Cinemateca pós-pandemia, é o surgimento em força dos jovens, muitos deles motivados pelas escolas de cinema do nosso país. A FCSH, a Escola Superior de Cinema e Teatro, a Lusófona, e outras. E outro ‘sucesso’ de público aqui no espaço foram as sessões de cinema brasileiro, que apelaram muitos jovens, surpreendente.

Questionando sobre os fatores que levaram a este crescimento de público mais jovem, João Coimbra Oliveira apontou o “trabalho das redes sociais” e a importância do “bar como ponto de encontro e convívio", assim como prolongou nas vitórias trazidas de uma “outra direção de programação [Nuno Sena], que possibilitaram uma abertura às demandas da sociedade e um respeito duplo, quer à memória e cinefilia de João Bénard da Costa [respeitado diretor da Cinemateca, para além de ter sido um ávido cinéfilo e curador, é hoje visto como a figura-mestra da casa], quer na formação de novos públicos.” Acrescenta ainda, que o tal incentivo jovem não é dever exclusivo da Cinemateca, as escolas de cinema, o Estado e outros, tem como obrigação remexer no “bichinho cinéfilo” dos “verdes anos” e sobretudo “motivá-los à valorização de uma experiência estética de ver filmes em sala”.

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John Ford dirigindo "Stagecoach" / "Cavalgada Heróica" (John Ford, 1939)

De seguida, Coimbra Oliveira agarra num livro de capa azul intitulado de “O Cinema Não Morreu”, um objeto da autoria do coletivo “À Pala de Walsh", site ainda hoje em voga e com mais de 10 anos que resultou numa “reunião entre blogues (...) de cinéfilos que visualizavam filmes em outro formato, o do ficheiro, e que tem um papel recorrente na divulgação da programação da Cinemateca e instigação aos hábitos de cinema em sala, contrariando as suas origens virtuais.” Pousando o livro na sua devida coluna, dirige-se ao balcão onde retira uma colectânea de folhas de sala. “Eu guardo as folhas das sessões da Cinemateca que assisto. Como podes ver, estes pedaços de papel são como diários, sei exatamente onde estive e que filme vi na determinada data e hora, mas fora isso, estas folhas de sala, escritas maioritariamente pelos nossos programadores, têm sido fundamentais nessa questão educativa.” Após isto, guardo com carinho e cuidado o “monte” na oculta estante do balcão, a deixa para me instalar numa outra conversa. 

Saio da livraria e percorro a esplanada que não é mais que o pátio que faz fronteira entre “A Linha da Sombra” e o Bar “39 Degraus”, outros dos anexos da Cinemateca. Café para alguns, bar de cocktails para outros, restaurantes para os que assim queiram, dirijo-me para uma das mesas do seu interior na companhia de Luís Mendonça, um dos programadores da Cinemateca, aliás dos mais recentes neste ramo. Começo por lhe questionar sobre a situação atual da relação dos jovens com a Cinemateca, o qual me responde não sentir maneira nenhuma decréscimo de “afluência de público jovem. Sinto um decréscimo em geral, fruto da pandemia, entre outros fatores. Mas o público jovem tem sido fiel à Cinemateca, enchendo sessões, sobretudo com grandes clássicos - algo que pudemos verificar recentemente, com a milésima projeção de “Johnny Guitar”, “Laranja Mecânica” ou até propostas mais ousadas, como a sessão na esplanada de “Evil Dead”. Os mais jovens têm marcado presença e, ficamos com a sensação, quando vêm uma vez, facilmente se fidelizam ao lugar e à programação. A mensagem da existência da programação da Cinemateca é que nem sempre lhes chega.” 

Por entre goles de cerveja sob pressão e nos holofotes de estrelas como Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Giulietta Masina e Richard Burton, inserido em históricos cartazes que decoram as paredes do local, Mendonça revelou que os jovens tem sido uma das suas prioridades enquanto programador, até porque fora disso, co-fundou o referido site “À Pala de Walsh”, que se tornou um dos motores de uma nova geração cinéfilos ferrenhos, e leciona a cadeira de Documentário na FCSH, ou seja, habituado a partilhar a sua paixão com o Cinema com outros. “É um dos objetivos da equipa de programação: captar público novo. As maneiras de chegarmos lá é que são discutíveis e variáveis. Sessões de grandes clássicos podem atrair mais público adolescente ou jovem adulto do que de filmes mais, digamos assim, contemporâneos. O cuidado que tenho, como programador, passa por, em cada ciclo, procurar programar algumas “referências universais” e juntar a estes títulos filmes que eventualmente não são tão chamativos para o público mais jovem. Parto muito, e confesso que intuitivamente, da minha própria experiência de descoberta do cinema “do antigamente”, a partir de filmes contemporâneos que me permitiam abrir essa porta para o passado. “Anexar” o clássico ao moderno pode ser uma boa estratégia, mas sem esquecer - nunca! - de programar os grandes clássicos. Há sempre um público particularmente ávido pela descoberta de filmes que nós, cinéfilos, já vimos mil vezes. E esse público costuma ser jovem.

Tomando mais um gole e em jeito de provocação pede para registar a seguinte declaração - “Há que passar a ideia de que não é só de ‘Cavalgadas Heróicas' que a Cinemateca é feita. Também passamos cinema dito “moderno”, ou de culto como quiserem chamar. E atenção, desde que aqui estou deparei-me com sessões passadas de filmes que não imaginaria que a Cinemateca tivesse projetado. Falei-te do “Evil Dead”, o original, que programei, mas anteriormente, por razões inexplicáveis, a sequela integrou a nossa programação. Há folha de sala que comprova isso. (...) Programar os grandes clássicos - há sempre alguém que ainda não viu e foi deslumbrado por um Citizen Kane ou Vertigo - é algo que não pode ser descurado ou desmerecido pela equipa de programação. De resto, a Cinemateca pode programar ainda mais filmes ou autores que comuniquem mais diretamente com ‘a malta jove’, como diz o Herman. Não digo que vá apostar em breve num ciclo Larry Clark ou - mas era igualmente bom… - um ciclo John Hughes ou lançar um programa sobre a adolescência - idem… -, mas talvez possa diversificar a sua proposta, em termos de géneros, apostando naqueles que são, tradicionalmente, os mais populares, como a ficção científica, o terror e a comédia. Estamos a trabalhar nisso.” Segundo um programador da Cinemateca, jovens têm assistido com regularidade os espaços da Cinemateca. De onde virá esse fascínio?

Guiado pelas palavras de Coimbra Oliveira, sobre o trabalho das escolas nesse ramo, contactei Pedro Florêncio, professor de História de Cinema da Faculdade de Ciências Sociais Humanas da Nova, que durante as suas aulas é habitual existir tempo para uma palestra sobre a importância do cinema em sala, e principalmente a Cinemateca como abrigo dessa experiência. Sentirá bem sucedido com essa hercúlea “missão”, o de devolver o status místico do Cinema a um público, supostamente, mais conectado ao streaming? Apesar de constatar um crescimento do público jovem na Cinemateca contra todas as probabilidades e previsões, a pandemia veio acentuar uma "fome" (...) que raramente constatei de forma tão evidente. Mesmo quando poucos, é evidente que são dos "bons"”, quanto aos resultados do seu empenho: “Só o poderei saber daqui 10, 15 ou 20 anos, que é o tempo necessário para que se tornem visíveis os efeitos mais poderosos que a Cinemateca demora a ter nas pessoas que a começam a "namorar". Para já, posso dizer que é com muita alegria que por lá tenho encontrado quase sempre um ou dois ex-alunos de História do Cinema, seja qual for o teor da sessão. É um bom sinal que indicia "o início de uma bela amizade.

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The Evil Dead (Sam Raimi, 1981)

A verdade, é que alguns dos seus alunos falam e indicam a experiência à lá Cinemateca possível pelo professor, garantindo positivamente um regresso àquelas salas e um desejo de “frequentar ciclos”. Estaremos na iminência de futuros cinéfilos a preencher as cadeiras da sala Félix Ribeiro ou Luís de Pina, ou até fazer compras na Linha da Sombra? “Não consigo antecipar que papel irá ter, mas posso dizer que é um papel mais importante do que nunca, justamente por pôr em prática uma série de valores que se distinguem e até se opõem à experiência doméstica, privada, despolitizada, a-histórica ou  tendencialmente compulsiva do cinema, experiências de mero consumo ou de comprazimento estéril quando não se desenvolvem dialogicamente no espaço e no tempo, que as plataformas de streaming ou de cotação (Letterbox, MUBI) tendem a estimular e massificar, apesar de todas as outras coisas positivas que trouxeram à relação com o cinema, nomeadamente ao nível do acesso. As Cinematecas, no entanto, preservam e pensam valores totalmente opostos a esses, sem necessariamente os renegar, sendo por isso mesmo, pelo menos idealmente, muito mais do que um mero santuário de arquivos ou um museu em que se promove a lembrança de filmes datados ou formas de experiência ultrapassadas. São, pelo contrário, um lugar privilegiado para que o cinema possa continuar a ser pensado de acordo com o seu infindável horizonte de possibilidades, por um lado, e para que novos espectadores possam continuar a ser (trans)formados, por outro.

Quanto ao papel das Escolas de Cinema na formação desse público, Florêncio refere um auxílio, mas não uma necessidade visto que a própria Cinemateca é ela mesma uma Escola de Cinema para todas as pessoas, independentemente do vínculo académico, do nível de especialização ou do melhor ou pior gosto de que estão munidas. A Cinemateca é, por definição, um projecto essencialmente democrático, por mais que continue a ser conotada com um certo elitismo cultural. No entanto, trabalhar essa dimensão democrática, verdadeiramente popular e aberta à "cidade" - aqui refiro-me a "cidade" enquanto "mundo" ou "casa" de todos nós - é uma tarefa da Cinemateca e somente de quem a gere. As  Escolas de Cinema (e não só, mas também as de Artes no geral) devem, a meu ver, fazer muito mais do que simplesmente sugerir aos seus alunos que visitem a Cinemateca. Considero mesmo que devem procurar estabelecer (no limite, insistir e forçar) parcerias de todo o tipo com a Cinemateca, pois o que está em causa nessa relação não é só um incentivo ao "consumo" de Cinema, mas muito mais um incentivo à relação com a própria cidade através das imagens e do recolhimento num lugar único. Acho que as Escolas (volto a frisar: de Cinema mas não só) devem procurar pensar essa relação de ocupação e apropriação da cidade no sentido mais político do termo, pois as cidades foram idealizadas para nelas podermos circular e conviver em comunhão nos seus lugares mais democráticos por definição, como é o caso de uma Cinemateca. Por mais solitários e individualistas que sejamos, as cidades e o cinema em sala têm em comum o poder de rejuvenescer quem as frequenta, tanto quanto têm a qualidade (e a necessidade) de ser rejuvenescidas por essas mesmas pessoas que as ocupam e habitam. Os grandes filmes da História do Cinema, como por exemplo "O Homem da Câmara de Filmar", são sobre isso mesmo.