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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Bifes (II) ...

Hugo Gomes, 19.12.24

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Deves fazer sempre o oposto de Ridley Scott, a cada segundo." (...) É desse fascismo que falo quando me refiro a filmes fascistas, o oposto de Straub e Ford. Claro, Ridley Scott é fascismo absoluto; não há nada ali para retirar. Vês aquilo e dizes: não, não levo nada disto. Porque é um verdadeiro populismo, como se diz na política. Ele é um tipo populista. Vai enganar-te, prometer dar-te tudo, que serás feliz e livre, etc. (...) Os filmes que estão longe da vida são, digamos mais uma vez, os de Ridley Scott. Ele vive noutro mundo – Hollywood, Los Angeles, dinheiro, ouro. Vive de champanhe e luxos. Se vivermos na realidade, tudo é super-rápido, e esses filmes também são super-rápidos."

Pedro Costa sobre Ridley Scott, numa entrevista pela Othon Cinema [ler aqui]

"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte II)

Hugo Gomes, 30.11.24

LER PARTE 1

Agora, virando um pouco para o site, visto que já têm treze anos. Ao longo desta conversa, vocês referem muito esse grande salto de blog para site. Recordo muito daquele período em que existiam os TCN [extintos prémios para blogs de cinema]. Vocês saíram premiados, julgo que com o “Melhor Blog Coletivo”, e no vosso discurso de vitória anunciaram que iriam deixar de ser um blog. A partir daí, os blogs de cinema começaram a decair e anunciou-se o fim da blogosfera...

RVL: Não foi certamente por nossa causa!

Claro que não. O que quero perguntar, por via deste contexto, é se não sentem que causaram uma espécie de influência, uma pegada? A “pegada walshiana”, como disse há bocado. Algo que conduziu a um novo modelo de site de cinema em Portugal nos dias de hoje?

RVL: Sim. Mas acho que não é tanto por aí. Porque o que aconteceu foi que, sem termos consciência disso, mas compreendendo já que havia uma doença qualquer que alastrava aos blogs, o João Lameira teve a premonição de dizer: “Isto não vai continuar muito mais tempo.” E nós, cada um no seu sítio, pensámos: “Não, não vamos a lado nenhum.” E, portanto, numa lógica de coletivo, de uma coisa mais estruturada, mais organizada, surgiu a possibilidade de criar um projeto com alguma consistência e duração. E a verdade é que foi isso que nos salvou.

LM: A nossa existência crítica. Sim.

RVL: Porque, provavelmente, se continuássemos nos blogs, desapareceríamos e desistiríamos. Foi o estarmos juntos num projeto coletivo que nos deu força, mas isso só funciona porque é um esforço de todos. Quando um está mais cansado, os outros compensam, ou vice-versa. Há uma lógica rotativa que funciona muito pela agremiação de novas pessoas e isso coincidiu, de facto, com o momento em que os blogs estavam a ir abaixo.

LM: Estava um bocado em negação. Tinha um blog, o CINedrio, que tinha uma organização que para mim era importante; era o meu bloco de notas, conceptual, onde eu experimentava coisas. De vez em quando até volto lá. Não me sinto assim tão distante daquilo quanto isso. Uma das coisas que achava, na altura, era que nós devíamos preservar ao máximo os nossos próprios projetos individuais. Não via com bons olhos o fim da blogosfera. Não sei se já era absolutamente evidente. Para mim, ainda não era. Quando entrei no À Pala de Walsh, não estava claro que a blogosfera ia acabar.

Só quando entrei no Facebook, aliás, muito por causa do site, que rapidamente percebi que a blogosfera ia acabar. Até escrevi um post no meu blog, na altura, a dizer que a blogosfera tinha os fins contados e que a culpa era do Facebook. Fiz até um meme com o Godzilla a devorar a blogosfera, sendo o Godzilla o Facebook. [risos] E foi o que aconteceu! 

Quando o publiquei, havia muita gente dos blogs, até dos mais profissionais, com vários prémios nos TCN, a dizer: “Não, olha que estás a exagerar.” Mas aconteceu e não fiquei nada contente com isso. Também não fiquei quando tive de dizer a mim mesmo que já não dava. Que já não conseguia. Porque, quando acabou, perdeu-se uma dinâmica incrível que a blogosfera tinha, aquele ping-pong entre bloggers. Era de uma vitalidade extraordinária. E acho que se perdeu mesmo. Não acho que o que veio depois seja muito estimulante. Ao mesmo tempo, não vejo um grande efeito da À Pala de Walsh no meio. Não consigo ver uma influência clara, uma grande herança.

Mas é engraçado. Até brincava com isso, com aquele meme do Batman a esbofetear o Robin. O Robin dizia: “À Pala de Walsh? Esse blog?” e o Batman respondia: “Esse site!” Queríamos dar o salto para algo mais, mas a verdade é que nunca conseguimos totalmente. Talvez porque também não queríamos verdadeiramente. Mas o certo é que, quando a blogosfera desapareceu, aquele contexto morreu com ela.

RVL: Mesmo assim, nunca quisemos transformar o projeto numa coisa profissional. Isso foi uma discussão longa, mas a conclusão foi sempre a mesma. Fazer do À Pala de Walsh uma fonte de rendimento seria insustentável. Éramos e somos muitos. O que entrasse seria sempre pouco para dividir, criando desequilíbrios ou situações absurdas. Essa lógica amadora — no melhor sentido da palavra, fazer isto por amor ao cinema — sempre foi o pressuposto do projeto.

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Gojira (Ishirô Honda, 1954)

E qual foi a vossa gratificação com o site ao longo dos anos? 

LM: Financeira?

Não nesse sentido de gratificação. Se atingiram os vossos objetivos pessoais com o site? E o facto de institucionalizar-se como referem … detesto esta palavra institucionalização!  … pode ser visto como uma espécie de recompensa?

LM: Sim, sim, em certa medida. 

RVL: Coisas diferentes, coisas boas e coisas más. A verdade é essa. Gosto de contar isto porque acho muita graça. Foi há uns dois anos, por volta dos dez anos do site. O Miguel Dias, diretor do [Curtas de] Vila do Conde, veio ter comigo e perguntou: “Olha, tu conheces um site de crítica português chamado À Pala de Walsh?”. Encolhi os ombros e fiquei assim meio sem saber o que dizer. E ele continuou: “Ah, não deves conhecer. Olha, esquece, esquece.

Disse: “Calma, Miguel, conheço sim. Eu sou um dos fundadores.” Ele ficou surpreendido. Porque, para ele, eu era apenas o programador do IndieLisboa. E mesmo eu escrevendo todos os anos sobre Vila do Conde — talvez não todos, mas já o fiz umas quatro ou cinco vezes —, ele nunca associou o meu nome ao site.

Isto para dizer o quê? Que o site tem esta característica curiosa: para algumas pessoas, nós somos só do site e não fazemos outras coisas. Para outras, fazemos tudo menos o site, e nem nos associam a ele.

LM: Sim, também já senti isso. É como aqueles autores muito citados, mas que ninguém lê. Eles estão lá, à vista, mas só para “efeito de loja”. Acho que isso também acontece connosco, e é algo que já se sente há algum tempo, quase desde o início. Na verdade, foi quase imediato. Até porque as redes sociais, na altura, eram mais generosas para projetos como a À Pala de Walsh.

Agora são péssimas …

LM: E a verdade é que as pessoas conhecem o site, mas também já ouvi, aqui e ali, colegas ou outras pessoas dizerem: “Ah, sim, À Pala de Walsh é muito importante. Mas, olha, vou ser franco: eu não leio.” É como aquela coisa do Marcelo em relação ao aborto: “Sim, deve ser muito importante, mas é proibido.” Parece uma espécie de efeito Marcelo, percebes? Algo do género: “É muito importante.” Mas, afinal, lês? Não. Sabes o que tem lá? Não. E isso deixa um amargo de boca grande.

Transformo logo isso numa crítica, porque é frustrante. Dá a sensação de que não somos suficientemente bons. Mas depois, quando penso nisso, não faz sentido. São as mesmas pessoas que escrevem para o site e para o Público, e, se formos a ver, apesar de ser um jornal excelente — provavelmente o melhor que temos na área da cultura —, não acho que editorialmente seja assim tão melhor que nós.

Tens falado do nosso livro de estilo, da política de revisão que aplicamos. Nós temos uma boa política de revisão, por exemplo, e não acho que o Público seja necessariamente melhor do que nós nesse sentido. E, sendo as mesmas pessoas a escrever para ambos, onde está a diferença? Não faz sentido nenhum.

RVL: Há uma certa circulação …

LM: Sim, mas não posso transformar imediatamente isso numa crítica, dizer: "nós não somos suficientemente o que quer que seja". É uma questão cultural, tem a ver com estas barreiras intransponíveis que, em 13 anos, nós nunca conseguimos quebrar. No início, éramos mais chatinhos e, se calhar, perfuramos mais para desabar certas muralhas e deixámos de fazer porque nos acomodamos também, porque nos fartamos, desistimos e também porque perdemos a batalha, etc. Não sei se é se perdemos a guerra.

RVL: Ou então é ao contrário, não é? Porque hoje em dia quer o Público como todos os outros jornais viraram sites, onde as coisas se perdem. Sim, são publicadas, só que dois dias depois desaparecem numa espécie de torrente.

LM: Mas os textos… Sinto que nós trabalhámos muito por fora. Penso que o À Pala’ é um projeto completamente desligado de qualquer establishment. É um projeto genuinamente espontâneo e de cinefilia, e sinto que é um projeto de alta exposição. Nós desdobrámo-nos em múltiplas coisas e fomos super generosos ao mesmo tempo. Porque nós temos uma coisa que acho que é geracional. Eu, como dou aulas, também contacto muito com outras gerações mais novas, que têm imensas qualidades, sublinho imensas. Mas esta não é necessariamente uma qualidade nem um defeito, não gosto de pôr as coisas nesses termos. É uma coisa que não têm, que nós temos, é uma questão até certo ponto geracional.

Nós não somos exatamente todos da mesma geração, mas há uma coisa que nos une. Não sei se é “millennial” ou alguma ‘coisa’ assim, mas é uma grande reverência em relação ao passado. Uma vontade de ser um "Anjo da História", de colher os cacos que estão para trás. Uma vontade de criar pontes. Vejo as gerações mais novas mais descontraídas, mais descomplexadas e muito mais disponíveis para seguir em frente e virar costas ao que está para trás. Vejo isso muito, por exemplo, na academia. Portanto, esta coisa de puxar quem está para trás, não deixar cair, não deixar cair a memória… Por exemplo, é muito de nós.

Isso ficou estatisticamente comprovado numa tese. Nós somos referidos em teses! Porque somos um “case study”, uma espécie de aberração!

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Agnès Varda, Jean Douchet e Jean-Luc Godard

RVL: Entramos em mais pelo menos duas teses.

LM: Temos a autora de uma delas, a Beatriz Fernandes, uma walshiana, mas tivemos outras. Uma delas, lembro-me, dizia — muito cedo até — que nós éramos o site que citava mais autores de todos. [risos]

RVL: Em comparação com o Público, o DN, e outros …

LM: Foi algo que nunca nos foi muito reconhecido pelo meio: a extraordinária generosidade de quem está completamente fora, a correr por fora, sem qualquer vantagem. E que vai ao encontro de… Não é contra, mas ao encontro de várias coisas. Convoca. Até houve más interpretações ao longo do tempo sobre isso. Porque a ideia era sempre convocar para um diálogo, e havia pessoas que, naturalmente, estavam muitíssimo acomodadas e não estavam minimamente para aí viradas. Achavam que convocar era quase uma espécie de: "Quem são estes para julgar? Quem julgam que são?".

É um aspeto extraordinário, muito generoso, no sentido de nos misturarmos, miscigenarmos — uma palavra difícil - não necessariamente para colhermos qualquer benefício, mas no sentido de criar um diálogo. Por vezes um diálogo divertido, provocador, entretido desse ponto de vista, não aquela coisa de apenas reproduzir.

Mas nós usávamos uma questão, que é para mim o epítome do jornalismo preguiçoso, televisivo sobretudo, que é: "Projetos para o futuro?". É exatamente o que nós não queríamos de todo.

Outra coisa que penso ser uma adversidade para quem está no À Pala de Walsh é uma questão cultural — e aí já não tem nada a ver com geração, e sim com o país. É aquela velha expressão, muito sábia, do qual gosto muito: "Quem anda à chuva, molha-se". Conheço muita gente do meio que tem muito poder. Quase todas as pessoas que têm muito poder não escrevem, não têm visibilidade. Muitas delas não escrevem, ficam na sombra. Isso significa alguma coisa? Quem anda à chuva, molha-se. Já não chove muito. Quem anda ao sol, queima-se.

As pessoas que fazem muito, que fazem acontecer, às vezes vão por um caminho muito pedregoso, muito difícil. As pessoas que não fazem acontecer de repente são aquelas que decidem se estas pessoas que fazem acontecer estão a fazer acontecer de uma determinada maneira ou não. Há quase uma proporcionalidade, que acho extremamente perversa, já que estamos nos 50 anos de Abril, que é o entre criar e o fazer, e a capacidade de mudar, de transformar.

Quando digo mudar, falo em transformar, e aí vou voltar à história do choque cultural, que era, em certo sentido, pretendido. Já tive ocasião de partilhar isso em público — mais uma vez, nos Encontros de Cinema, no Batalha. Não houve qualquer impacto. As pessoas vão escrever para os jornais, mas não operam mudança nenhuma nesses meios. Os jornais tiveram sempre este fenómeno, como À Pala de Walsh e todo o online, como a blogosfera, em certa medida, nunca foram vistos como um terreno fértil …

RVL: … nem transformador. Foram sempre absorvidos.

LM: Houve recrutamento de pessoas, mas nunca houve recrutamento de ideias. Isso, para mim, é a falência do projeto na sua génese mais ou menos utópica. E quando digo utópica, sublinho a generosidade do projeto, que, sinceramente, não sei se alguma vez foi totalmente reconhecida. Acho que não. Porque acredito que a recompensa estava aí, nessa generosidade, nessa aproximação positiva em relação a um meio qualquer ou a uma nomenclatura qualquer.

A própria nomenclatura implica reconhecer que há diferentes maneiras de lidar com o cinema e, ao mesmo tempo, de o transformar. Isso acontece. Quer dizer, acontece constantemente. Mas ainda há essa visão redutora de qualquer pessoa que se apresenta, até hoje, como “o crítico do online”. Seja do À Pala do Walsh, seja do Tribuna [de Cinema], do Cinematograficamente Falando …, como de outro projeto. Isso tem um efeito visível.

Sinto isso na academia e até em candidaturas ao ICA. É algo que se manifesta de maneira geral. É uma postura redutora, no sentido de nos diminuir, de nos reduzir. Não é algo que abra possibilidades. É um movimento que engaveta as pessoas, mas não no sentido de permitir que se desengavetem outras coisas. É uma forma de arrumação, no sentido mais total do termo: despacham-se as pessoas para uma gaveta, e pronto. Ficam lá e não chateiam.

RVL: Há uma citação na entrevista com o Guerra da Mata que é muito boa: “Eu não passei não sei quantos anos da minha vida para sair do armário para depois me meterem numa gaveta.” [risos]

Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Um último tópico em relação ao site e não só, a esta nova geração. Visto que vocês são os pais fundadores, quer dizer dois dos quatro pais fundadores …

RVL: Não, eu sou … como se diz … padrasto! [risos]

Padrasto?

RVL: Sim, eu não estava na reunião onde tudo aconteceu. O Luís, o Carlos [Natálio] e o João [Lameira] é que estavam presentes.

E segundo a “lenda”, onde é que a ideia surgiu?

LM: Foi aqui [Cinemateca] que tivemos a nossa primeira reunião, a primeira vez em que nós três nos encontramos.

RVL: Só estive presente na segunda reunião.

Houve pais e padrastos fundadores. Houve uma primeira geração e agora estamos a falar de uma nova. Já mencionámos um “walshiano” novo, mas há outros nomes a surgir. Olhando para o que vocês eram inicialmente, com a ingenuidade que já admitiram ter, como vêm estas novas pessoas que chegam ao site? Que ferramentas elas trazem? E, ao mesmo tempo, acham que já há uma certa formatação do que significa ser 'À Pala de Walsh'?

RVL: Houve um site brasileiro chamado Cinética que teve uma geração fundadora muito marcante. Depois, passados dez anos, como aconteceu connosco, as pessoas ficaram dez anos mais velhas. Têm outras preocupações nas suas vidas, não é? Já não têm a mesma disponibilidade que tinham aos 23, 24, 25, 26 anos. De repente, tornam-se trintões, alguns até quarentões. A energia e a disponibilidade diminuem. Era um site incrível, mas, nos últimos dois ou três anos, tentaram passar a “bola” e a ‘coisa’ acabou por seguir uma lógica de dossiês e, passado um ou dois anos, o site fechou. Acabou. A Cinética está lá, conservada em formol.

O À Pala de Walsh, eventualmente, poderá passar pelo mesmo. Se um dia nós os quatro nos cansarmos, não me parece que haja um grupo de pessoas com vontade — não é só uma questão de conseguir, mas de querer — e disponibilidade para assumir a continuidade do projeto. Assim, acho que irá terminar, caso deixemos de fazer o trabalho de edição.

No entanto, enquanto continuarmos a editar, mesmo que sejamos apenas redactores minoritários (escrevendo um ou dois textos por mês, no máximo, ou até nenhum), gerimos um grupo de colaboradores e mantemos o projeto. É um modelo diferente do que tínhamos no início, quando o ideal seria criar um texto por semana.

Mas a lógica mudou. Os contributos das pessoas que foram integradas no site ao longo do tempo são muito variados, e isso foi sempre uma premissa inicial. Nunca quisemos que todos escrevessem da mesma maneira, sobre os mesmos temas, ou tivessem as mesmas opiniões. Sempre houve uma vontade de diversidade, que continua presente.

O que acontece é que a institucionalização trouxe um certo peso. As pessoas já não escrevem quatro parágrafos em meia hora e ficam contentes. De repente, querem escrever o texto sobre determinado filme, ou o texto de referência, mas sem desonrar a aura do site. Isso pode ser contraproducente, porque muitas vezes as pessoas definem padrões demasiado elevados para si mesmas e depois não conseguem mantê-los.

Tem sido um problema recorrente. Muitos fazem um texto, dois, três, dão tudo, e depois dizem: "Porra, não aguento isto todos os meses!" Assim, a longevidade do site trouxe um peso para os redatores, que pode ser prejudicial.

LM: Por isso lamento tanto o fim da blogosfera. A blogosfera era um espaço de escrita rápida, a uma velocidade qualquer, e foi aí que o site nasceu. Recrutávamos diretamente nesse território.

RVL: Agora deixámos de poder recrutar.

LM: De repente, a blogosfera praticamente deixou de existir. Apesar das nossas ligações à academia e da atenção que tentamos dar aos novos valores, é um trabalho completamente diferente. Muitas vezes, são pessoas que mal conhecemos, e que também não se conhecem entre si.

Apesar disso, ainda há uma certa unidade no site. Não há posições oficiais, mas há uma unidade visível, por exemplo, no livro anterior, em torno de um conjunto de fixações e realizadores. Mesmo que alguns não gostem, acham graça. Temos interesses em comum, como o Godard ou o James Wan. Também há um certo foco no terror, ainda que abordado de forma diferente daquela que algumas pessoas do género adotam.

No entanto, isso tornou a nossa tarefa mais difícil. Muitos colaboradores confidenciaram-nos que escrever para o site traz uma enorme responsabilidade. Mesmo pessoas experientes dizem que estremecem ao serem convidadas. Essa carga acaba por dificultar uma abordagem mais descontraída e descomplicada, onde se pudesse, por exemplo, lançar uns adjetivos mais feios sobre um filme, sobretudo da nossa praça.

Esse espírito mais livre é raro hoje em dia. Jogamos esse jogo até certo ponto, mas a maioria não quer jogá-lo. É pena.

Queria dizer que a prova de vida do À Pala de Walsh seria o aparecimento de mais “Palas” de outras naturezas, que levassem a mensagem mais longe, de forma diferente. Mas tenho a sensação de que os tempos mais experimentais e ousados dificilmente voltarão.

RVL: Apesar disso, há algo que tem sido das coisas mais divertidas nos últimos tempos: as correspondências. Surgiram nos últimos dois ou três anos e trazem uma abordagem mais despachada, imediatista e reativa. Acho que as pessoas gostam de ler e nós gostamos de escrever. Imagino que, se houver um terceiro livro, será um livro de correspondências.

Aqui está o leak! [risos]

LM: Uma espécie de compromisso entre o oral e algo mais ensaístico. Sim, sim, sim. Acho que aí fica a semente. Pode ser um livro, correspondências cinéfilas! [risos]

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"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte I)

Hugo Gomes, 30.11.24

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Not I (Anthony Page & Samuel Beckett, 1972)

Em contagem decrescente para o lançamento de “O Cinema das Palavras: Entrevistas À Pala de Walsh”, o segundo livro do coletivo À Pala de Walsh, sete anos após “O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À Pala de Walsh”, os fundadores e editores Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa conversaram com o Cinematograficamente Falando … sobre este novo “rebento”. Mais do que uma coletânea de entrevistas e diálogos com realizadores, técnicos, investigadores e críticos, o livro estabelece-se como uma viagem por uma cinefilia ainda reascendente e entregue ao dom da palavra (*colocar “ordet”).

O lançamento, marcado para o último dia de novembro, na Livraria Linha da Sombra, também editora da obra, contará com uma cerimónia de apresentação com os quatro editores do site e ainda do cronista e poeta Pedro Mexia, assinante do prefácio.

Às portas dessa mesma livraria, os dois fundadores, também eles programadores da Cinemateca Portuguesa, partilharam não só a expectativa e o statement por detrás do objeto literário em mãos, como também histórias e reflexões sobre o percurso do site, lembrando a sua génese na blogosfera e os desafios de manter viva uma escrita crítica em tempos de transição. Com “O Cinema das Palavras”, À Pala de Walsh reafirma-se como espaço de resistência e celebração da cinefilia em Portugal.

Nesta conversa, como o leitor perceberá, surgem declarações, punhos no ar, autoavaliações e um olhar analítico sobre o futuro, não só do site, mas também da cinefilia e do meio em que esta se insere. Um triálogo com a Palavra, seja ela cinematográfica ou meramente ostentativa, emerge como o centro de todas as ‘coisas’.

Vou começar com uma pergunta bastante genérica, ou, se preferirem, pela "génese" da questão: tendo em conta que o vosso primeiro livro foi lançado em 2017, já na altura havia uma ideia de seguir com este segundo livro? Ou ele surgiu apenas depois da receção do primeiro?

Ricardo Vieira Lisboa: Não sei quem poderá responder melhor, mas, salvo erro, foi no próprio dia do lançamento de “O Cinema Não Morreu” que o João Coimbra [Oliveira], o editor dos dois livros e responsável pela livraria Linha de Sombra, nos disse: "Estou muito contente. Vamos começar a trabalhar no próximo." Isto aconteceu logo no dia do lançamento.

Claro que não começámos a trabalhar no mês seguinte, mas ficou essa promessa no ar. A verdade é que, por volta do décimo aniversário do site, em 2022 — cinco anos depois do primeiro livro —, começámos a trabalhar efetivamente no que viria a ser este segundo volume. Por isso, a maior parte das entrevistas incluídas no livro corresponde aos primeiros dez anos do site. As entrevistas realizadas nos dois anos seguintes, que poderiam teoricamente integrar o livro, acabaram por não entrar, pois já tínhamos o projeto praticamente fechado nessa altura.

Houve, no entanto, dois anos de melhorias, revisões e até alguns adiamentos. Foi um processo longo de finalização, mas o índice do livro ficou praticamente definido no final de 2022. A última entrevista feita já com o propósito de entrar no livro foi a conversa da Daniela [Rôla] com Mia Hansen-Løve. Essa é a mais recente. Por outro lado, a entrevista mais antiga deve ser a com o João Rui Guerra da Mata, provavelmente uma das primeiras que fizemos, logo em 2012, quando o site tinha apenas alguns meses.

Na época, essa entrevista foi publicada em duas partes, mas, no livro, aparece numa versão bastante editada, reduzida e melhorada. Aliás, todas as entrevistas passaram por um processo de edição substancial, com cortes e ajustes para se tornarem mais legíveis. No site, há sempre um caráter mais imediato, mas, num livro — que é algo que permanece —, o texto precisa de maior depuração literária. Apesar de já termos essa preocupação com o site, aqui dedicámos meses a retrabalhar os textos, reescrever e aperfeiçoar cada detalhe. Foi, de facto, um trabalho minucioso.

Luís Mendonça: Além disso, há algo que considero uma espécie de "prenda" no livro. Aliás, diria que são duas grandes prendas. Não sei se queres que fale já sobre isso…

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João Rui Guerra da Mata

Sim, eu ia justamente perguntar sobre isso: os supostos inéditos. Vai haver inéditos no livro? São essas "prendas" de que estão a falar?

LM: Sim, posso falar de uma delas. Como não participei diretamente, posso falar como um espectador privilegiado. Trata-se de uma entrevista com o Vasco Pimentel, que muitos só conhecem como "o nome nos créditos", o grande operador de som do cinema português. Para quem o conhece mais de perto, sabe que ele é um contador de histórias extraordinário, extremamente carismático.

A verdade é que o Vasco foi entrevistado poucas vezes, e especialmente não da forma como o Ricardo e o Carlos [Natálio] o entrevistaram. Estive presente durante a gravação e pude assistir a tudo. Foi uma entrevista gravada em áudio e vídeo, mas nunca chegou a ser disponibilizada. Na altura, a ideia era que ela servisse como ponto de partida para uma série que estávamos a desenvolver — uma proposta de televisão, com episódios centrados em entrevistas como esta.

RVL: Sim, seria o episódio-piloto de uma série de televisão.

LM: A verdade é que depois isso não teve sequência. A ideia não se desenvolveu, não chegou a ganhar visibilidade sequer. Mas aquela entrevista ficou sempre “in the back of my mind”, pelo menos para mim, como espectador. Queria fazer alguma coisa com ela, reabilitá-la de alguma maneira. Quando decidimos lançar um livro dedicado a entrevistas, achei que era a oportunidade perfeita.

Por outro lado, há outra coisa que já fazemos há bastante tempo, mesmo antes de virar moda: os registos em áudio, o que hoje se chamaria podcasts. Na altura, não chamávamos de podcasts; eram gravações áudio que disponibilizávamos, sobretudo com realizadores — as Conversas à Pala. Às vezes também fazíamos conversas entre nós, algumas mais públicas, outras nem tanto. A ideia era transcrever essas conversas e torná-las mais acessíveis, mais confortáveis até, para o formato escrito.

RVL: Sim, e especificamente, no livro, temos uma conversa com o Miguel Gomes, outra com o João Salaviza e outra com a Leonor Teles. Essas nunca foram publicadas nem transcritas antes.

LM: Depois, há ainda duas conversas muito especiais que fizemos entre nós, no formato mais "podcast". A primeira foi logo após um grande evento: a primeira projeção semi-pública de “Visita ou Memórias e Confissões”, do Manoel de Oliveira. Digo semi-pública porque foi um visionamento interno na Cinemateca. Tivemos acesso a ele e, em primeira mão, quisemos registar uma reação nossa ao filme. Era um filme póstumo — e não qualquer filme póstumo, mas um que o próprio Manoel de Oliveira deixou preparado com essa intenção, 40 anos antes. Um caso raro e muito especial na história do cinema.

A segunda conversa, para mim, é muito importante. Foi gravada na altura do lançamento do nosso primeiro livro, “O Cinema Não Morreu”, no Nimas. Transformámos isso num diálogo escrito, que acabou por ser mais sobre o futuro da cinefilia e o papel d’À Pala de Walsh no contexto da cinefilia digital. E é de certa medida premonitório, o que acho interessante, e que só me apercebi disso quando a reli. É um documento quase histórico, que só ganhei noção de como era importante quando tive essa relação com o texto, e não com o áudio.

Referem aquela conversa no final da sessão do filme de Maria de Medeiro?

RVL: Sim, o “Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques”. A última sessão do ciclo.

LM: O filme da Maria de Medeiros sobre a crítica… Aquilo que o Ricardo disse é importante: houve um grande trabalho de edição. Nós trabalhámos muito nas entrevistas. Claro que há sempre uma certa ditadura da atualidade. No entanto, ao contrário de outros órgãos de publicação, não nos sentimos completamente subjugados por ela. Esses órgãos têm outras obrigações, o que é compreensível, mas isso acaba por nos permitir decantar mais os textos, trabalhá-los para serem lidos com mais calma, com outro tempo.

Talvez um tempo que a imprensa escrita já não consegue dar. E nem falo da televisão, que praticamente deixou de agir no meio cultural, pelo menos na área do cinema, e muito menos no sentido que queremos desenvolver.

Acho que, apesar de tudo, houve um trabalho suplementar que foi importante. Isso dá ao livro um outro valor, também do ponto de vista literário. Além disso, há a questão da montagem do livro, que acho igualmente relevante. Mas, pronto, força.

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Luís Mendonça, Ricardo Vieira Lisboa e Carlos Natálio no Cinema Nimas, em debate após a projeção de "Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques" (Maria de Medeiros, 2004) / Foto.: Sabrina D. Marques

Bem, agora ia entrar na parte da edição, que o Luís já mencionou há pouco. Falávamos sobre a questão das entrevistas e de como depurar o texto. Há um lado mais formal, mas também um lado mais oral, para dar aquela autenticidade ao diálogo.

Então, queria perguntar-vos sobre esta edição de que já me descortinaram alguns detalhes: houve uma espécie de transformação dos textos? A intenção foi torná-los mais formais ou mantê-los com um tom mais oral, como autênticos diálogos?

RVL: Talvez possa começar dizendo o seguinte: acho que uma das coisas interessantes que aconteceu ao longo dos anos com as entrevistas no site é que, de algum modo, muitas vezes havia pessoas que nos liam mais por causa das entrevistas do que por causa da crítica do dia a dia — se quisermos colocar assim. Quer fosse pelas estreias, quer fosse por outros textos, as pessoas diziam: "Ah, as entrevistas do À Pala de Walsh". E porquê? Por duas razões.

Em primeiro lugar, porque nós fazíamos as entrevistas de uma maneira muito própria. Sempre odiámos aquelas entrevistas tradicionais de festivais, aquelas de 10 minutos. Aliás, acho que no livro talvez haja uma entrevista dessas, de 15 ou 20 minutos, mas uma exceção: com o Apichatpong.

De forma geral, as entrevistas mais curtas, aquelas que fomos obrigados a fazer, acabaram por não entrar.

LM: Deixa-me só fazer um parêntese, que acho que só comprova essa nossa convicção. Ou seja, por várias circunstâncias, e pelos constrangimentos do meio, fizemos algumas dessas entrevistas recentemente para escolher quais incluir no livro. Entrevistámos pessoas muito valiosas, que significam muito para nós, mas, muitas vezes, não as incluímos exatamente como estavam. Atribuo isso ao próprio modelo de entrevista.

O caso do Tobe Hooper é um exemplo, assim como o do Roger Corman. Não é que não os apreciemos — bem pelo contrário. Mas o modelo da entrevista, tal como nos foi imposto, resultou em textos que, a nosso ver, não estão à altura do que queríamos para o livro, do ponto de vista literário. Não estavam no nível crítico que nós desejávamos.

RVL: Muitas vezes, essas entrevistas são muito formatadas, onde o realizador dá a mesma resposta a dez pessoas na mesma tarde, não importa a pergunta que lhe façam. Ele já tem a resposta organizada na cabeça e vai repeti-la. São entrevistas que, no fundo, têm muito pouco valor de interesse. Claro, são importantes num dado momento, mas não são entrevistas para ficar, apenas preencher a lacuna da atualidade.

LM: Exato, essa é a grande urgência da imprensa tradicional. Mas não acho que essas entrevistas tenham um valor intemporal, não têm essa qualidade. Ou seja, se precisávamos de provar a nós mesmos que esse modelo está errado, o livro é a prova viva disso. Nós praticamente excluímos todas as entrevistas feitas dentro desse formato. Algumas foram feitas em regime de festival, mas foi um trabalho de resistência muito grande. Foi uma guerra.

RVL: E, de certa forma, as próprias entrevistas acabam por ser uma resposta a essas limitações. Mas o que estava a dizer é que, por um lado, havia a consciência de que uma entrevista implicava um trabalho de reflexão e pesquisa tão ou mais complexo que um ensaio. Do ponto de vista da preparação, não havia diferença. Íamos ver as obras dos realizadores, o mais completas possível, e organizávamos um pensamento crítico para fazer as perguntas. Acho que isso ressoou com um público, com leitores, e é por isso que as entrevistas têm essa característica.

Outra coisa que caracteriza as entrevistas do À Pala’ é que elas têm um tom mais reconhecível. Quando entrevistámos o Guerra da Mata, ele odiou a entrevista na altura em que foi publicada.

Porquê?

RVL: O Guerra da Mata dizia palavrões o tempo todo, tipo "merda", "caralho", "foda-se". E nós transcrevemos tudo isso, sem filtro, do começo ao fim. Ele estava à espera que houvesse uma espécie de "décolage" institucional, uma limpeza higiénica, digamos assim, mas a graça estava justamente aí. Depois, o Guerra da Mata disse-me: "Mas é a entrevista que os meus alunos do Conservatório mais gostam!" No começo, fiquei incomodado, mas agora gosto muito da entrevista. E isso aconteceu um pouco em geral, ou seja, sempre foi importante para nós que as entrevistas mantivessem o tom da pessoa e que fossem reconhecíveis na oralidade. Não queríamos que as palavras dos outros fossem filtradas pelo nosso discurso. A ideia era aproximar o máximo possível do discurso original. Ou seja, transformar em literário o discurso do outro, não filtrá-lo através da nossa sensibilidade.

A preparação, então, é uma espécie de fidelidade à voz do entrevistado. E isso fez com que, ao longo destes 12 anos, fôssemos mais reconhecidos pelas entrevistas do que pelas críticas. E olhe que nem fazemos tantas entrevistas assim. Às vezes fazemos uma a cada três meses, ou algo do género.

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Pedro Costa com Vitalina Varela e Ventura na rodagem de "Vitalina Varela" (2020) / Foto.: Vítor Carvalho/Optec Films

LM: Também não fizemos tantas quantas aquelas que gostaríamos, por causa desse modelo que está completamente implementado, quase como um dogma. Quase não conseguimos dobrar a nossa maneira de encarar a entrevista. Acabámos por estabelecer um padrão, uma maneira de fazer as coisas, e a partir daí ficámos presos a esse padrão. Claro, talvez seja um choque cultural sem solução. Talvez não seja insuportável, mas é algo que, por exemplo, os festivais ou outras instituições querem evitar. Eles querem algo mais próximo de um "dossiê de imprensa".

Mais a quantidade que a qualidade …

RVL: A última entrevista publicada na À Pala, com o Pedro Costa, foi uma entrevista de seis horas. Não é qualquer jornalista da imprensa que tem disponibilidade para fazer uma entrevista de seis horas e ainda por cima publicá-la.

LM: Respeitando esse tempo, claro.

RVL: Exato. Ou seja, ela foi editada e reduzida, mas ainda assim, continua muito extensa. Mas porquê o Pedro Costa quis falar por seis horas? A verdade é essa, ninguém o obrigou a isso. Ele quis falar por seis horas. Não fazia sentido, de repente, reduzir a entrevista a 5000 caracteres.

LM: Já cheguei a ter entrevistados que estavam em regimes desses, em que o tempo era ditado. E às vezes, até o próprio "agenda setting" das entrevistas era mais ou menos controlado, de forma subtil. Mas, sobretudo, a questão do tempo e o nome do órgão de imprensa. Porque era o nome do órgão que condicionava, por exemplo, a ordem das perguntas, e isso tinha a ver com essa necessidade de "frescura" do entrevistado. No início, quando me colocavam nessas situações de entrevistas rápidas, ficava incomodado. Por exemplo, o Tobe Hooper estava super cansado, terminei a entrevista e fiquei com a sensação de que havia uma hierarquia implícita ali. Isso aconteceu várias vezes. 

Outras vezes, nem conseguimos fazer as entrevistas que queríamos, porque o modelo não nos dava acesso. Quando conseguíamos entrevistar, a ditadura do tempo era implacável. Cheguei a ter uma situação em que um entrevistado estava super à vontade, numa conversa ótima, e já tinham se passado dez minutos, quando alguém do festival impôs o fim da entrevista. O entrevistado disse: "Porquê? Isso não faz sentido, a conversa está boa, e eu não tenho mais nada para fazer agora." Foi o auge de uma série de entrevistas feitas nesse regime, e depois disso nunca mais quis fazer entrevistas assim. Foi uma grande decepção.

E, por outro lado, há algo a considerar: nas entrevistas que fizemos, éramos nós que escolhíamos quem íamos entrevistar. No caso do Guerra da Mata, por exemplo, acho que é uma história importante, quase uma bandeira do site, porque aconteceu numa fase em que o site estava numa espécie de estado de graça. Foi no início, mas também com um certo grau de ingenuidade. O que era nosso, mas também do entrevistado, porque esse tom, digamos, blasé e descontraído... também dizia muito sobre o que o site representava na altura. Era algo novo, pouco ou nada reconhecido, e não levavam a gente muito a sério. Por isso, as pessoas, em certa medida, falavam mais à vontade. Diziam mais asneiras, estavam mais descontraídas. 

Alguns de nós já éramos reconhecíveis, mas não éramos levados a sério. Isso não era muito comum na blogosfera, pelo menos naquela época. Era mais típico de jornalistas tradicionais. E, no caso do Guerra da Mata, acho que o que torna a entrevista interessante não são só as asneiras, mas a franqueza dele. A honestidade é quase didática. Ele diz as coisas como elas são, de forma muito frontal, muito aberta. Quase "cândida", no sentido anglófono do termo. Tem um efeito de "fly on the wall", algo que acho muito interessante. E agora, vejo que isso é previsível. Hoje em dia, já não conseguiríamos mais ter uma entrevista como a do Guerra da Mata.

Pretendem reparar essa ingenuidade inicial?

LM: Já não há essa espontaneidade de parte a parte, já não existe mais...

RVL: Pois, o meio se institucionalizou, com coisas boas e coisas más. E um exemplo disso é o Pedro Costa. Ele nunca daria uma entrevista de seis horas para um blog qualquer que ele não conhecia. Mas deu à À Pala de Walsh.

LM: E, por outro lado, o Guerra da Mata, hoje em dia, já não diria as coisas da maneira que dizia antes. Enfim, ganham-se coisas, perdem-se coisas.

RVL: Isso. Nos primeiros anos do site, havia um lado mais combativo e provocador, algo até intencional. Foi um período que durou uns três ou quatro anos, de forma consciente e até militante.

LM: Não vou mais longe. Foi exatamente nessa época que tivemos um dos primeiros grandes dissensos entre nós, e tudo por causa de uma entrevista. E foi gerado exatamente pelas questões que estamos a falar agora. Foi esse lado completamente escancarado de um entrevistado, que foi contra a nossa própria responsabilidade editorial. Porque ao mesmo tempo que queríamos ser irreverentes, também queríamos ser levados a sério e ter uma responsabilidade.

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Fernando Guerreiro / Foto.: Mariana Castro

RVL: Exato, não queríamos publicar acusações infundadas só porque alguém as disse. Não era para ficarmos a fazer "lavagem de roupa suja" ou algo do tipo.

LM: Sim, era uma questão importante, do ponto de vista da nossa própria orientação editorial. Não era só nas entrevistas, mas também nas reportagens, e até nos textos críticos. Queríamos saber: será que devemos entrar por esse caminho ou não? E foi uma entrevista que gerou um debate entre nós. Foi um momento que provocou um grande confronto metafórico. 

RVL: Uma grande “batatada” metafórica [risos], com todos os quatro fundadores e editores da primeira fase do site completamente em desacordo sobre essa entrevista.

Vocês já estão a falar disso, sobre o que o site se tornou, porém vou adiar a questão Sobre essa “pegada walshiana”, mas, continuando nas no livro, queria que me falassem um pouco sobre o trabalho fotográfico da Mariana Castro, que vai estar presente. Aliás, comparando com o primeiro livro, este é um livro “ilustrado”, não é?

LM: Sim, apesar do primeiro ter um fotograma que estava num encarte, que gosto muito de referir como uma espécie de thumbnail. Foi uma das várias fotografias que a Mariana tirou quando foi contigo ao ANIM. Foi uma reportagem da ação de intervenção, e isso foi muito valioso.

As fotografias da Mariana eram outra marca diferenciadora, por acaso. Um elemento muito importante que marcava a diferença em relação às outras entrevistas feitas noutros sites, e noutros jornais. E, este livro vai ter um encarte com várias fotografias. São retratos. Um caderno.

De todos os entrevistados?

RVL: Não, foram apenas oito. Houve uma seleção …

LM: Na realidade, nem sempre é possível. Nem sempre dá. Porque há uma lógica complementar, mas não é uma lógica estritamente de ilustração. 

RVL: Até porque a Mariana intervinha nas entrevistas e fazia perguntas também. Ou complementava, ou dava uma opinião. E, portanto, ela não era só uma fotógrafa que estava ali para tirar uma fotografia. Ela era um membro ativo do site. Como figura pensante.

LM: E ela tem... Da mesma maneira que nós temos uma maneira de entrevistar. Foi um factor de união e de unidade muito importante. Porque isso é das coisas mais transversais no site. Todo o site é um coletivo, não há oposições oficiais. Ninguém assume uma posição oficial em nome do site.

RVL: Nem posições oficiais, nem oposições oficiais. [risos]

LM: É importante dizer isso. É um coletivo. Mas depois há ali uma espécie de argamassa estilística autoral e acho que estava bem presente nas entrevistas. Sempre achei. Desde a primeira edição do primeiro livro, achava que as entrevistas eram um imprint muito importante. Era aquilo que nos definia quase como um todo.

Ou seja, o site não tem um livro de estilo?

LM: Temos sim um livro de estilo. A escrever um livro de estilo... Não sei se a culpa foi minha ou do João Lameira, mas estou a falar de duas pessoas que são formadas em Comunicação Social, e tendo esta ideia de que o verdadeiro estudante de Comunicação Social, mesmo que já soubesse que era démodé, tinha de estudar o livro de estilo do Público como se fosse uma espécie de Bíblia. Era assim na minha faculdade.

LM: É que eu sei que, depois de ter lido, "em casa de ferreiro, espeto de pau", se calhar o livro de estilo do Público não era uma bíblia dentro do próprio Público, mas para mim era uma bíblia. Como estudante de Comunicação Social no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, foi algo estruturante. O João é da Católica de Lisboa, mas, de qualquer maneira, para mim, o livro era essencial. Isto porque, naquela altura, estava a pensar na transição da blogosfera para um site — para algo que fosse uma verdadeira "empresa". Empresa não no sentido comercial, mas enquanto coletivo de comunicação social que tivesse uma face institucional. Para ser levada a sério, achava que tinha de haver um livro de estilo.

Nós temos o nosso livro de estilo, que usamos até hoje. Ele é precioso e estruturante. Mas, claro, uma coisa é ter a receita, e outra é fazer o bolo. E o bolo, quando o fazemos, tem de ter uma marca distintiva. Tem de ser algo que se reconheça como vindo daquela pastelaria. É aí que acho que as entrevistas entram como uma espécie de assinatura do site. Se eu tivesse de dar um "bolo" a alguém que não conhece À Pala de Walsh para provar, iria à secção de entrevistas, escolhia algumas e dizia: "Pronto, o site é isto."

Isso tem a ver com a preparação que colocamos, mas também com um certo tom. Misturamos um sentido de humor muito próprio com uma preparação rigorosa, e isso nem sempre é fácil de conciliar. Mas é essa mistura que dá identidade ao site e ao que fazemos.

RVL: Já agora, convém dizer algo sobre as fotografias da Mariana. Ela é uma fotógrafa, e não só uma fotógrafa, mas uma fotógrafa importante, com uma carreira própria significativa. O trabalho que ela fazia connosco era uma enorme oferta, como aliás foi todo o site — À Pala’ é isso mesmo, está no nome. Todos nós estávamos "à pala". [risos]

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Foto.: Mariana Castro

O que a Mariana fez foi não só acompanhar entrevistas, mas também colaborar noutras iniciativas, como uma série de visitas a cinemas de Lisboa com o Tiago Baptista, resultando numa extraordinária coleção de fotografias. Ela também fez reportagens, mas os seus retratos de realizadores — e de outras pessoas — foram especialmente marcantes. Hoje, muitas dessas fotografias tornaram-se as imagens oficiais que certos realizadores utilizam para se apresentarem ao mundo.

LM: É verdade que temos esta dualidade: entrevistamos realizadores, mas também professores, críticos, teóricos, ensaístas — toda uma diversidade que quisemos trazer para o livro. Está bem representada lá. Alguns desses críticos também foram fotografados, à semelhança dos realizadores. A Mariana tinha o mesmo interesse em fotografar, por exemplo, o Fernando Guerreiro, como teria em fotografar um realizador, e, de facto, alguns desses retratos passaram a ser usados como imagens profissionais. Lembro-me de críticos, em particular, que agora utilizam as fotografias da Mariana como os seus retratos oficiais. O mesmo acontece com realizadores; é comum vermos essas imagens circularem noutros contextos, quase como se fossem os seus retratos de marca.

RVL: Complementando o que o Luís disse, o livro está organizado em quatro partes. A primeira reúne entrevistas com realizadores estrangeiros, essencialmente “fazedores de cinema”. A segunda parte foca-se no contexto português, onde temos realizadores, mas também técnicos, o que torna esta secção mais variada. A terceira parte é dedicada exclusivamente a críticos, pensadores e ensaístas ligados ao cinema. Finalmente, a quarta parte, que é da responsabilidade do Luís, embora com alguma ajuda nossa, é uma espécie de dicionário temático. É um trabalho importante e muito elaborado.

LM: Sim, nessa secção final temos temas como argumento, censura, cinefilia, cinemateca — depois damos saltos para internet, película, personagens, programação, queer, sala de cinema, som, terror, trabalho de atriz e ator, TV, e por aí fora.

Em cada tema, incluímos passagens retiradas de entrevistas com críticos e realizadores cujos textos completos não conseguimos ou não quisemos publicar integralmente no livro. Foi a maneira que encontramos para dar visibilidade a esses conteúdos, oferecendo um mapeamento mais conceptual das preocupações e interesses do site. Essa secção ajuda a refletir o espírito e as inquietações que guiaram À Pala de Walsh ao longo dos anos.

Os suportes físicos, que tem sido uma das bandeiras do À Pala de Walsh, obviamente que tem que estar representada nesse dicionário?

LM: Exatamente, temos temas que vão da película à internet, passando por cinefilia e crítica, mas são questões que nos preocupam e que acabam por refletir inquietações transversais.

RVL: É muito interessante perceber isso. Quando juntamos todas as entrevistas num único documento e começámos a lê-las consecutivamente, notámos que havia recorrências de perguntas ao longo dos anos. São questões ou obsessões que reaparecem em entrevistas feitas com um intervalo de cinco anos, mas que partem das mesmas inquietações. O resultado é uma espécie de conversa contínua, um diálogo que atravessa o tempo, mesmo com respostas de pessoas diferentes. Isso deu forma ao dicionário temático do livro, mas mesmo antes disso, essas conexões já estavam presentes.

E há algo fascinante: às vezes as entrevistas parecem contradizer-se ou dialogar umas com as outras de maneira espontânea. Por exemplo, o Alberto Serra pode dizer algo completamente absurdo que parece gozar com o que o Kechiche defendeu numa entrevista imediatamente anterior. O Kechiche, por exemplo, fala apaixonadamente sobre realismo, e o Serra, logo a seguir, declara que "o realismo é uma merda". Esse contraste cria um efeito dinâmico. Mais do que uma simples coleção de entrevistas, o livro é quase uma discussão contínua sobre o cinema contemporâneo, mediada por uma diversidade de vozes que respondem, mesmo que involuntariamente, umas às outras.

LM: Sim, isso também reflete a força documental do livro. É como se fosse uma caixa de ressonância de ideias e inquietações de mais de uma década. A pluralidade de perspectivas dialoga com as questões que eram centrais para nós, os entrevistadores, mas também para o cinema do período.

RVL: É verdade. E agora, relendo o material, notamos como algumas coisas já ficaram datadas. Por exemplo, o fascínio que tínhamos pelos ensaios audiovisuais e pelas possibilidades da internet. Na época, víamos isso como algo revolucionário, mas hoje esses elementos são dados adquiridos ou até ultrapassados. A onda dos vídeo-ensaios, por exemplo, meio que se esgotou. Figuras ou fenómenos que nos fascinavam — como Kevin B. Lee ou plataformas específicas de vídeo-ensaio — já parecem pertencer a um passado distante, quando estávamos a capturar um momento vibrante, e agora parte disso já soa como uma memória histórica.

Essas obsessões também estão definidas nos autores das entrevistas?

LM: Sim, isso também é possível. Ou seja, apesar da argamassa que constitui as entrevistas, a rubrica, as entrevistas, há pessoas aqui, existem estilos muito vincados, que são muito diferentes uns dos outros. 

O Francisco Valente tem um estilo de fazer entrevistas, como também tem de escrita. Na realidade, não é muito divergente a esse nível, que eu acho que é muito próprio e muito dele. Se calhar, a Inês também, só pensando em pessoas que escrevem para jornais. E que... mas o caso da Inês [Lourenço] começou com À Pala de Walsh, que também tem aqui uma entrevista ao Jean Douchet. Acho que nós olhamos para os títulos e eles estão lá. Portanto, há uma marca de cada um. No tipo de questões que coloca, na maneira como as coloca, torna-se evidente e ao mesmo tempo, sinto uma grande unidade.

Por exemplo, isso é muito menos conseguido no livro “O Cinema Não Morreu. O livro são textos, a diferença salta à vista, porque a cada texto nota-se uma diferença gigantesca que às vezes cria uma espécie de... efeito contraproducente para a leitura, porque aquilo afunda-se num registo mais académico e depois, de repente, recupera alguma genica num texto, num estilo mais humorístico. Outras vezes, pronto … e essas velocidades todas alternantes no “O Cinema Não Morreu”.

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Maria João Madeira, Luís Mendonça, Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa na apresentação de "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh", na Cinemateca / Livraria Linha de Sombra [22 de Dezembro de 2017]

Nós tivemos críticas positivas, bastante positivas ao livro, mas houve uma menos positiva, que tinha alguma razão - aquilo é um bocado um pára-arranca na leitura que não é muito producente.

RVL: Diria que “O Cinema Não Morreu" não é um livro que dá gosto de ler do início ao fim.

Julgo ser mais um livro de consulta …

RVL: Exacto, um livro mais de consulta. Mas este não é. Os quatro capítulos lêem se como uma espécie de radiografia de um momento, de uma década, uma biografia de uma década.

LM: Concordo plenamente.

LER PARTE 2

Fogo que arde e se vê ...

Hugo Gomes, 13.10.24

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Karyna Gomes

Puxando da memória, afirmo sem receios que não deverá existir cineasta português com um percurso tão reconhecível e definido como o de Pedro Costa, e, tomando “As Filhas do Fogo” como objeto de estudo, é “de caras” (o emprego não é ao acaso) que a sua rota artística delineia um circuito plenamente percorrido e interagindo com rostos familiares, presenças assombrosas e fantasmas que persistem como elos entre o passado, o presente e o futuro ali inquinado. 

Nesta projeção de multi-plataforma, tão bem aconchegado está o espectador para com o seu cinema, cuja entrada é instantânea a um triplo split screen. Cada uma dessas telas é representada, ou melhor, protagonizada, por uma diferente mulher, de vocalidades partilháveis, por vezes uníssonas, unidas em prol de uma só cantoria. Esta união, tanto sonora como espectral, contrasta não só para com as delimitações de cada tela, como também com a alegoria da sua separação, cujo "responsável" é o círculo de fogo oriundo da fúria terrestre, de magma colerético, e de erupções enquanto ameaças de castigo divino, encorpado no digno ponto final: na reciclagem das filmagens de Orlando Ribeiro – “A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo”, de 1951, que atribuiu um contexto não apenas cénico, mas também intemporal. 

Estas mesmas imagens serviram de prelúdio a “Casa de Lava (1994), considerado por muitos o fracassado filme de Costa e igualmente o trunfo de Áses, fruto de uma reinvenção cabo-verdiana de “I Walked with a Zombie” (1943), do "mais que tudo" realizador Jacques Tourneur. A partir desse momento, a sua carreira nunca mais foi a mesma (e a experiência seguinte, “Ossos”, remexeu nesse inquieto “bicho-carpinteiro” do cineasta). Assim, este encontro cíclico de signos, de sinais de fogo e de fumo, de figuras e índices autorais, revelam um universo seu, apenas envelopado e deixado ao deus-dará para que o espectador espreite, curiosamente, e esgueirar-se sem medos.

As Filhas do Fogo”, um exercício operático – gerado pelo sopro da Passacaille de Biagio Marini (op. 22, 1655), e fortalecido por uma adaptação letrista de uma canção de embalar ucraniana – é essa súbita estranheza que nos embate e, logo após, nos abandona sem resistência, embalados. O olhar pleno de Elizabeth Pinard percorre “invisivelmente” um cenário misto de cinzas e brasas; a queda de Alice Costa inscreve corporalmente outras silhuetas (Ingrid Bergman em “Stromboli”, Inês de Medeiros em “Casa da Lava”); e, finalmente, as retinas atormentadas de Karyna Gomes, espreitando sorrateiramente, como se tal a protegesse de algo, vizinhas, coabitadas neste trecho musical, cantarolando para memórias e embutidos espíritos, daqueles que só o cinema, e o de Costa perfeitamente o sabe, invocam como extensão do nosso quotidiano. 

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Elizabeth Pinard

Mais do que atrizes, pelo menos não seguindo o senso comum da definição, performistas (mais enquadrado), trazem à vida as três mulheres, divas de ópera por cerca de oito minutos [musicado pelos Musicos do Tejo], que ditam a sala de cinema, convertendo-a nos seus respectivos palcos e fronteiras (o espectador toma a decisão, tal como todos o múltiplos split screens, de escolher o seu plano, a sua história, a sua mulher). Costa deu-lhes a oportunidade de, temporariamente, se despedirem das suas velhas carnes, associando-se a uma cantoria entre os mortos e os vivos na mente.

Mentor de um cinema sem classificação ou repreensão, o realizador cria um canto de ossadas e tenros tendões que levantam um “monstro” cinematográfico, a que chamamos a sua filmografia. Já em “As Filhas do Fogo”, interagimos com apenas uma costela dessa "criatura fantasmagórica", que, como se sabe, anatomicamente escuda o corpo dessa filmografia. É uma entrada, um atalho, digamos, para uma essência desse universo (palavra tão banalizada hoje em dia no cinema), cheio de contraditórios, curvas e contracurvas e regressões sem saudosismos ou nostalgia. Cinema em movimento, a do Pedro Costa.

Os rostos nos "Ossos"

Hugo Gomes, 25.09.24

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Hoje recordei “Ossos” de Pedro Costa, possivelmente dos seus filmes o que menos vezes revi. Sempre foi, para mim, um "filme de negação", ostentando a arquitetura que o cineasta viria a ser reconhecido, analisado e admirado anos depois, após o convite a um quarto particular. Mas da minha última experiência, já longínqua, o que retive foram os rostos, a peculiaridade daquelas faces que ocultam histórias — e histórias, às quais o filme nunca ousa 'tocar'. Ao rever [como se o estivesse a ver pela primeira vez] em 4K, é essa particularidade que se torna saliente: aqueles rostos, aqueles "sujeitos" impressos num cinema ainda em plena autodescoberta. E não é o cinema exatamente isso? Uma prolongada reinvenção? Os contornos assimétricos, atípicos, banalizados em "vidas malditas" são pinturas ora entregues à escuridão, ora ao gótico venerado com exatidão pelas sombras. “Ossos", o filme insatisfeito de Vanda Duarte, uma dessas protagonistas faciais, regressará aos cinemas portugueses a partir do dia 10 de outubro, preservando a sua enigmática presença. A sessão será antecedida pelo operático “Filhas do Fogo", mas isso será outra conversa.

Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Arranca a 3ª edição do Cinalfama: "cheira bem, cheira a Cinema"

Hugo Gomes, 24.07.24

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O espírito da velha capital é projetado nas suas tradicionais ruas, mesmo que Lisboa esteja a ser despida dos seus habitantes, os carinhosamente apelidados de “alfacinhas”, dando lugar a um turismo voraz e padronizado. Mas não avancemos mais nesta crónica sobre a gentrificação, até porque o Cinalfama, na chegada da terceira edição, é uma iniciativa que visa captar o lado cinematográfico da cidade, fazendo dela um eco cultural. Do Largo de São Miguel ao Museu do Fado, serão projetados dezenas e dezenas de filmes provenientes dos quatro cantos do mundo, e ao contrário do que assola aquela região, não se trata de turismo, ao invés disso designemos orgulhosamente como Cinema.

João Almeida Gomes, diretor do festival, respondeu ao Cinematograficamente Falando… num plano geral deste evento que iniciou na passada segunda-feira, dia 22 de julho, e que terá o “The End” (calma, intervalo, voltará para o ano!) no dia 26 [ver programação completa aqui].

Chegamos à terceira edição do Cinalfama, olhando em retrospetiva como é que este festival cresceu ou ainda pode vir a crescer?

Tem crescido em número de filmes recebidos, em número de espectadores e atenção mediática e na criação de projetos de alcance comunitário como a recolha filmada de histórias e oralidades de Alfama. Mas tudo sempre com o ambiente de informalidade e intimidade que é a nossa essência desde a génese. 

O que pode dizer sobre a programação deste ano, e a sua relação com a nossa contemporaneidade?

Um exemplo: o filme de abertura é o “Judgment in Hungary” sobre um julgamento de crime de ódio racial contra ciganos na Hungria. Queremos perceber que tangentes poderão ter o atual clima político português com a situação húngara. 

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Judgment in Hungary (Eszter Hajdú, 2013)

Sobre os convidados do festival?

Vários realizadores nos visitarão para apresentar os seus filmes pessoalmente e realizadores como a Renata Sancho e a realizadora húngara radicada em Portugal Eszter Hajdu também estarão presentes. 

Poderia me falar sobre esse projeto - Recolhas Filmadas de Histórias e Oralidades de Alfama - que terá contribuição de Pedro Costa, Leonor Teles, Pedro Cabeleira, entre outros?

Convocaremos vários realizadores a verem através da sua própria lente e subjetividade o passado, presente e futuro de Alfama

Sobre a cidade, Lisboa, não apenas a menina e moça, mas toda esta gentrificação que estamos a testemunhar, existe algum receio que isso possa afetar o público do Cinalfama, o facto dos “lisboetas” estar cada vez longe do centro da cidade, ou até mesmo da cidade?

Talvez seja, pelo contrário, o que os possa atrair. Um desejo de fruir algo de real e profundo num wasteland cultural. 

Vemos neste festival um gesto de preservação da Lisboa antiga, e cinematográfica?

A Lisboa antiga também é um pouco romantizada. A Alfama antiga era, por exemplo, um cenário de enormes privações materiais. Por isso a nossa função é complexificar, densificar a própria ideia de Alfama e isso implica também (mas não só) falar da saudade e do espírito comunitário que se perdeu.

Ambições para o futuro?

Que os nossos projetos em torno da memória de Alfama entrem em velocidade cruzeiro e que o Cinalfama siga no seu processo gradual de legitimação.

Aí do alto, ó Senhora, rogai por nós

Hugo Gomes, 16.08.23

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Nota: os Encontros Cinematográficos exibiram uma Cópia de Montagem (Work in Progress) da "Senhora da Serra", não sendo a versão finalizada e prontamente comerciável.

Persistindo no ditame popular de que o “escritor escreve maioritariamente sobre ele próprio”, extrapolamos às outras artes, o “eu” como a causa de toda a criatividade, se não fosse ela um veículo de expressão. Nessa máxima, prestamos atenção ao percurso de João Dias - montador cujo o seu trabalho, sem muitos perceber, fora maravilhado nos contornos das demandas fora-do-comum de Pedro Costa (“Cavalo Dinheiro”, “Vitalina Varela, são alguns dos exemplos de colaboração), tendo aventurado na realização com algumas curtas e o documentário “As Operações Saal” - que parte de Lisboa rumo a Atalaia do Campo, entre Covilhã e Fundão, terra agraciada pela ancestralidade da Serra da Gardunha, que preenche o seu redor num ecstasy de misticismos e natureza indomável. 

Esta mudança deveu-se a uma intenção de recomeço, salientado pelo próximo, a fim de fugir às tormentas das suas ansiedades, e aqui, nesse seu refúgio, embarcando na motivação de um novo horizonte, abraça um novo projeto, um filme-atalhamento interligando a região ao seu íntimo. É na paisagem aí descrita que reencontra o cenário puramente cinematográfico, e é nas histórias e ditos aí povoados o qual deparamos com os enredos a crú, matéria mineralizada pronta a ser trabalhada. 

Conta-se em tempos, longínquos devemos salientar, que uma menina perdeu-se algures nestes cantos, causando rebuliço no seu local de nascença. Após dez dias de procuras intensas, serra acima e serra abaixo, a menina foi, por fim, encontrada sem um único arranhão. Da sua boca partiu um relato inacreditável, uma Senhora a havia acolhido, cuidado dela como uma mãe extremosa em relação ao seu rebento. Como agradecimento a aldeia ergue no cimo da serra um altar rochoso em sua homenagem, uma capela improvisada e no seu interior uma santa de pedra como marco de uma generosidade divina. Dias viu nesta lenda uma “porta aberta” ao seu conto cinematográfico, levando consigo para aquele estúdio que o Mioceno ofereceu de bom grado, Patrícia Guerreiro, atriz de João Botelho (“Quem és Tu?”, “O Fatalista”) e em recentes anos resgatada da penumbra e da sua decadência por Leonor Noivo em “A Raposa”, nela, o realizador, argumentista e montador encontrou uma Maria, a mãe de Cristo, descida à terra com convicções, guerras declaradas e acima de tudo dúvidas; dúvidas na Humanidade, dúvidas na ideologia, e dúvidas na crença cristã (“longe de Marx, longe de Cristo”). 

Vagueando por pedra sob pedra - “Acorda rochedo” - de mão encostada a estes colossos minerais, numa tentativa de despertar um gigante milenarmente adormecido, uma defesa como prevenção de um iminente mal que “assaltará” o seu sagrado corpo, Maria reage ao ‘fracasso’ da sua missão, digamos, o de convencer uma revolução, ou melhor, reformar os dogmas da sua religião. Mas antes do apelo às forças que o tempo esqueceu, a Nossa Senhora encontra-se com três homens que fizeram da Serra a sua morada, indeterminadamente ou temporariamente, trazendo a eles, como ocasionalmente declara: “palavras que eu não conhecia, mas que Deus semeava diretamente nos meus lábios”. 

O primeiro, eremitão, cristão devoto sem réstia alguma de expectativa humanitária, a sua misantropia voluntária o revela cego, preso a um passado imutável e de uma Igreja enquanto instituição inabalável. Para ele, o pregado culto mariano é um sacrilégio, uma insurreição à vontade, inegável, do Todo Poderoso. O segundo homem é um bandido, um ladrão ou bandoleiro (como quiserem designar), um ser que faz da vida um jogo de apostas, roubando e evadindo de eventuais sentenças (e penitências) na orla florestal que circunda a Serra. É um homem (baseado na figura de Cirineu, mais um episódio histórico-folclórico ligado àquela terra) que trocou a espiritualidade pela fisicalidade, aguardando uma revolução social incredulamente. A carne será a sua fraqueza, para Maria, a sua ruína. 

Por fim, o delegado de um partido marxista-leninista, cujos diálogos mais tensos terá com a mãe de Cristo, no qual preocupada com a preservação da ideologia, a raíz que deve, a todo custo, ser mantida, a força esperada para uma futura revolução. Os três encontros, trindade de fragilidades da nossa contemporaneidade - o cego que não quer ver, a convicção que se não se quer importar, e a ideia que não se quer idealizar - guiam Maria para a sua perdição, como Prometeus, que ao roubar o fogo divino aos deuses, entregando-os aos Homens enquanto sabedoria, tem como “recompensa” um castigo eternizado por toda a História oral. 

No caso de Maria, esta aparição com o intuito de comover, de avançar numa outra trajetória, a qual Igreja negou anos e anos, reduzindo-se ao burguesismo, às riquezas sem compatibilidades de partilha, e a classe, delimitadoras de fés e de palanques celestiais. A sua vinda à mortalidade entende-se como castigo, incrustado nas vozes das musas e dos cânticos de outros terrenos, aí, João Dias presta-se às suas experiências fílmicas. Pedro Costa, obviamente, é tido como paralelismo aqui, a perseguição final de pedregulho a pedregulho dialoga com as crianças arbóreas nas rochosas colinas em chamamento a Ventura, imagem de “Sweet Exorcist”, mais tarde “impresso” em “Cavalo Dinheiro” (mas anteriormente retirado do colectivo Centro Histórico). 

É nesse clímax, que “Senhora da Serra” afronta na sua estética plastificada, como pintura rupestres estampada nas grutas outroras habitadas, hoje rendidas ao obscuro, e no fim, a senhora, desta vez de pedra, reduzida às trevas e de rosto voltado à luz que, quem sabe, a poderá salvar num impreciso dia. Imagem bela, essa, o último plano, que adivinha uma trégua com as divindades, mas o realizador grita “Corta”, o enredo lendário é uma fabricação, não há espanto nenhum, tal havia sido igualmente mostrado na sequência inicial com João Dias, invisivelmente dando indicações aos seus cúmplices, a ficção iniciado após duas mãos, fingindo ser uma claquete, surgem à luz da cena. A farsa que ensanduichado a encenação, como, e de sugestão do realizador na apresentação da cópia nos Encontros Cinematográficos do Fundão, com “Benilde ou a Virgem Mãe” de Manoel de Oliveira (de 1975, ainda assinado como Manuel de Oliveira), não só com a entidade herética e do divino violado da trama, mas com o travelling inicial (e final) que desvendando cenários e bastidores, ostentando o “esqueleto” da “produção”, desafia-nos a reconciliar com a crença tingida na nossa imaginação. 

Este momento vérité comunica-nos que é um filme aquele que veremos, que os diálogos são fruto de uma expressão de um homem insaciavelmente por um recomeço em outros ares. Transformando a Serra nessa albergaria teatral onde a Palavra é mais que tudo validada, para João Dias, a Senhora de Guerreiro é a Senhora das suas tormentas, suplicando aos céus e interrogando o seu Pai porque a fez “menos Virgem e mais Maria”. “Senhora da Serra” segue a tradição, hoje desprezada pelo corte do dito cinema moderno lusitano, da importância do Verbo enquanto ação centrífuga do mundo. A teatralidade é só um “corpo” há muito testado como bandeja prateada desse mesmo, e invocado, Verbo. 

Fica a minha homenagem: Os Filme!!

Hugo Gomes, 14.06.23

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A Filha da Mãe (João Canijo, 1991)

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Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989)

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Pesadelo Cor de Rosa (Fernando Fragata, 1998)

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Rosa Negra (Margarida Gil, 1992)

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O Sangue (Pedro Costa, 1990)

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O Convento (Manoel de Oliveira, 1995)

 

Teresa Ferreira (1940 - 2023) colorista