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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!

Hugo Gomes, 04.10.24

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“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.

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As Sacrificadas

Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros. 

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By Flávio

Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.  

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Um Caroço de Abacate

Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”. 

Arranca a 3ª edição do Cinalfama: "cheira bem, cheira a Cinema"

Hugo Gomes, 24.07.24

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O espírito da velha capital é projetado nas suas tradicionais ruas, mesmo que Lisboa esteja a ser despida dos seus habitantes, os carinhosamente apelidados de “alfacinhas”, dando lugar a um turismo voraz e padronizado. Mas não avancemos mais nesta crónica sobre a gentrificação, até porque o Cinalfama, na chegada da terceira edição, é uma iniciativa que visa captar o lado cinematográfico da cidade, fazendo dela um eco cultural. Do Largo de São Miguel ao Museu do Fado, serão projetados dezenas e dezenas de filmes provenientes dos quatro cantos do mundo, e ao contrário do que assola aquela região, não se trata de turismo, ao invés disso designemos orgulhosamente como Cinema.

João Almeida Gomes, diretor do festival, respondeu ao Cinematograficamente Falando… num plano geral deste evento que iniciou na passada segunda-feira, dia 22 de julho, e que terá o “The End” (calma, intervalo, voltará para o ano!) no dia 26 [ver programação completa aqui].

Chegamos à terceira edição do Cinalfama, olhando em retrospetiva como é que este festival cresceu ou ainda pode vir a crescer?

Tem crescido em número de filmes recebidos, em número de espectadores e atenção mediática e na criação de projetos de alcance comunitário como a recolha filmada de histórias e oralidades de Alfama. Mas tudo sempre com o ambiente de informalidade e intimidade que é a nossa essência desde a génese. 

O que pode dizer sobre a programação deste ano, e a sua relação com a nossa contemporaneidade?

Um exemplo: o filme de abertura é o “Judgment in Hungary” sobre um julgamento de crime de ódio racial contra ciganos na Hungria. Queremos perceber que tangentes poderão ter o atual clima político português com a situação húngara. 

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Judgment in Hungary (Eszter Hajdú, 2013)

Sobre os convidados do festival?

Vários realizadores nos visitarão para apresentar os seus filmes pessoalmente e realizadores como a Renata Sancho e a realizadora húngara radicada em Portugal Eszter Hajdu também estarão presentes. 

Poderia me falar sobre esse projeto - Recolhas Filmadas de Histórias e Oralidades de Alfama - que terá contribuição de Pedro Costa, Leonor Teles, Pedro Cabeleira, entre outros?

Convocaremos vários realizadores a verem através da sua própria lente e subjetividade o passado, presente e futuro de Alfama

Sobre a cidade, Lisboa, não apenas a menina e moça, mas toda esta gentrificação que estamos a testemunhar, existe algum receio que isso possa afetar o público do Cinalfama, o facto dos “lisboetas” estar cada vez longe do centro da cidade, ou até mesmo da cidade?

Talvez seja, pelo contrário, o que os possa atrair. Um desejo de fruir algo de real e profundo num wasteland cultural. 

Vemos neste festival um gesto de preservação da Lisboa antiga, e cinematográfica?

A Lisboa antiga também é um pouco romantizada. A Alfama antiga era, por exemplo, um cenário de enormes privações materiais. Por isso a nossa função é complexificar, densificar a própria ideia de Alfama e isso implica também (mas não só) falar da saudade e do espírito comunitário que se perdeu.

Ambições para o futuro?

Que os nossos projetos em torno da memória de Alfama entrem em velocidade cruzeiro e que o Cinalfama siga no seu processo gradual de legitimação.

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Serão Danado ... e há fotos que o comprovem!

Hugo Gomes, 10.04.22

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“Sou eu e a puta da shotgun”

Lembro como se tivesse sido ontem … Foi na projeção de imprensa de “Verão Danado”, na sede do ICA, pronto para ver uma prometida “primeira longa-metragem”, "saidinha do forno” para se “enfiar” em Locarno. Benzi-me inicialmente mesmo não sendo religioso, possivelmente tratei daquele ato como um ato de superstição (ou de preconceito), e como previsto (julgava eu), as imagens começaram a rolar … ou em modo de trocadilho manhoso - “rural”. “Mais um relato de fascínio pela nossa ‘portugalidade’”, revirei os olhos após os primeiros minutos, contudo, e como havia insinuado, “lembro como se tivesse sido ontem”, esse momento, esse filme e esse realizador [ler crítica e entrevista].

Francisco (Pedro Marujo) pode muito bem ser um jovem do interior, mas é em Lisboa, essa cidade-perdição (não se via tal desde “O Sangue” de Pedro Costa), que a sua viagem começa, e como grande parte delas, o trajeto revela-se mais entusiasmante do que a sua derradeira paragem. Já nos seus vinte, o protagonista mal-amparado, de precariedade mas desinteressado na estabilidade, vive o dia como fosse noite e a noite como fosse dia. Ou seja, o que parecia mais um nos relatos abundantes, converteu-se num retrato de uma juventude alimentada pelas últimas luzes da sua “imortalidade” e, mesmo assim, à deriva do seu limbo criado e socialmente gerado. Pedro Cabeleira, o realizador do qual “tivesse sido ontem”, nos enganou bem. Felizmente nos enganou!  

Com “By Flávio" (a sua nova curta-metragem, que estreou no Festival de Berlim), o engodo também acontece, desta feita na forma da atriz Ana Vilaça, aqui Márcia, uma jovem mãe solteira cujas suas decisões parecem remeter-nos a um caminho predestinado, de extrações moralistas ou reflexivo conforme seria a previsão de uma geração refém das redes sociais e das suas ditaduras estéticas. Contudo, retém-se a segunda - ditaduras estéticas - para sermos embalados num filme estetizado sobre a estética que desejamos definir para nós próprios. Por outras palavras, e apoiando-se no primeiro momento da curta, onde aquela foto destinada ao Instagram é cuidadosamente seleccionada, mas sem nunca descartar dos seus devidos retoques (requisitadas manipulações), centra-se na imagem de como nos vemos e como desejamos que os outros nos vejam. A rede social, esse idealizado avatar, converteu-se na nossa identidade priorizada, cuja nossa existência deve-se ser manuseada e comprovada com fotografias ou “pegadas tecnológicas”. 

By Flávio" é em pouco de meia-hora de peripécias um caderno de rascunhos passageiros sem nunca instalar-se, e por um lado, funcionando na “mouche” em nunca persistir nem perseguir os temas (Cabeleira é tudo menos realizador de “filmes-de-tema” e mais autor de "filmes com vida", talvez sangue na guelra seja a palavra adequada). Foi o que aconteceu com “Verão Danado”, os tópicos estão lá para consumo rápido, mas não de jeito efémero, ao invés disso, nómada. O engano, feliz golpe, é já a sua marca. Danado do rapaz!  

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

A Década '10 traduzido a Cinema Português

Hugo Gomes, 19.12.19

O que reter numa década de cinema português? Um desafio difícil e um pouco ingrato, esse de deixar de fora uma produção que tem lutado contra anos zeros, faltas de apoios, público e por vezes falta de ideias. Mas este é o cinema que amo com todos os seus defeitos e virtudes (alguns dos filmes mais belos são sem dúvidas portugueses). Como tal, eis os 10 selecionados para marcar 10 anos de arte à portuguesa.

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A Batalha de Tabatô (João Viana, 2013)

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

A Fábrica do Nada (Pedro Pinho, 2018)

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Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016)

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Tabu (Miguel Gomes, 2012)

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Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)

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Mudar de Vida - José Mário Branco, a vida e a obra (Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, 2014)

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Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)

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O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, 2012)

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As Mil e uma Noites (Miguel Gomes, 2015)

Os Melhores Filmes de 2017, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 03.01.18

Assim seguimos para a já habitual lista de 10 melhores do ano. Começo por referir que fora no geral um ano difícil de Cinema, onde a criatividade escassa e as ideias parecem cansados. Contudo, mesmo assim algumas obras destacaram nesta tremenda época de desilusões. Desde super-heróis adultos até derradeiros adeus a estrelas, passando por poetas motoristas e o sucumbir de gigantes monarcas. E já agora, o cinema português está de parabéns.

 

10) Lucky

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“Mesmo que Stanton aposte no “realismo” que acabara de definir (“realism is a thing”), e nas verdades entre indivíduos que nunca corresponde uma verdade absoluta, este cantinho transforma-se o seu Éden, prevalecendo memórias e garantido o merecedor descanso eterno. Isto acontece porque o sentido alterou com o contexto, a celebração aos vivos é agora uma dedicada canção para os mortos.”

 

09) A Fábrica do Nada

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“As Máquinas não podem parar, e o Cinema deve acompanhar todo esse processo de auto-sustentabilidade. A Fábrica do Nada, a quarta longa-metragem de Pedro Pinho, é esse conceito simultâneo de fazer cinema e falar de política, um retrato de um activismo em pleno passo de reflexão.”

 

08) Verão Danado

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“A verdade é que o cinema tem ido cada vez mais ao encontro dos mais jovens e, com isso rejuvenescido. E esse rejuvenescimento não é um fator que deva ser ignorado, nem sequer desprezado. Verão Danado exibe os dotes dessa tremenda juventude… até Nuno Melo, quando surge, cobiça esse tão inexistente elixir. Ó tempo, porque não voltas atrás?”

 

07) Logan

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A partir daqui, os filmes de super-heróis possuem o mais derradeiro desafio … ressuscitar após a cerimónia fúnebre cometida por Logan, assinada pelo nosso “tarefeiro” predileto, James Mangold. Hugh Jackman calça as garras pela última vez (assim ele promete) para se entregar de total alma a esta desconstrução, ao intimismo que remonta um classicismo cinematográfico bem ao estilo americano. A morte, essa, é apenas o dedo médio a uma das maldições do subgénero: a modelização a ser absorvida na linha de montagem.

 

06) Get Out

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“É fácil cair no erro de considerar Get Out em mais um arquétipo do "bate e foge" como tem sido claro no cinema deste género. Felizmente, os marcos do género aqui incutidos são um embuste, um disfarce para que Peele consiga difundir a sua mensagem através da sua "voz". Voz essa perturbada com o crescente temor sociopolítico que abraça os EUA pela discussão na "praça pública" de temas que se consideravam "enterrados" há anos. Sim, Get Out é um filme sobre o medo. E é também nesse medo que encontramos o ponto de ebulição e o lançamento de farpas às mob flash politicamente corretas que - à sua maneira - são culpadas pela crescente vaga de populismo e de idealismos do arco-da-velha.”

 

05) La Mort de Louis XIV

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Um objeto violento sobre a morte enquanto estado transgressivo. La Mort de Louis XIV é um filme sobretudo sobre o tempo, essa espera eterna pela queda de um gigante monarca, e o desconhecido que o atenta, a si, e aos seus entes e servos. Depois de três experimentações que resultaram em “híbridos” indigestos da linguagem dos atores, Albert Serra resolve apostar na sua primeira grande Obra (até que enfim um estilo encontrado), neste caso servente de um titã do cinema francês (Jean-Pierre Léaud) a mercê de novos “golpes”.

 

04) Paterson

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“Mas é nessa poesia que recorta os dias de Paterson, assim como a sua mente, uma ode às vozes estampadas nas palavras de muitos, e com especial atenção a obra de William Castle William até porque Paterson (cidade) é um signo da sua própria poesia, mesmo que não queira cair em citações de trechos do seu trabalho. Porque, parecendo que não, o filme de Jim Jarmusch já transborda, por si, essas palavras soltas, unidas numa precisa e bela onomatopeia. Como o filme, achamos que não há melhor maneira de terminar aqui do que citar, por uma última vez a personagem misteriosa: "Sometimes an empty page presents more possibilities".”

 

03) 120 Battements par Minute

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“Fora géneros e orientações, 120 BPM é um filme sobre a celebração da vida e o quanto queremos residir nesse “bailado”. Até a morte, maioritariamente induzida como assombração, revela-se uma celebração quando surge, anunciando a chegada de uma nova etapa. Se a vida é na realidade uma compostura de etapas, daquelas que nos comprometem com novos desafios, objetivos e porque não, amores,120 BPM usufrui desta metamorfose cíclica de forma a estruturar uma narrativa aberta, sem a recolha de moralismos-objetivos, mas o de simular a vida em mudança através do seu ritmo desalinhado.”

 

02) The Tribe

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Um filme-choque. É essa a verdade da sua natureza. Mas por vezes a provocação integra a experiência do cinema e porque não pensar que esta nasceu através da arte de provocar como o comboio filmado que assustou uma multidão na projeção de 1896. Enquanto isso, somos deslumbrados com uma lavagem ousada e politicamente incorreta de um filme ucraniano sobre a repreensão social, sobre as sociedades mantidas e vividas no silêncio que encontram na violência a sua liberta forma de expressão. É cliché dizer isto, mas ... é um soco no estômago.

 

01) Aquarius

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Aquarius é tudo num só, menos um "filme" no seu sentido mais simplista. É uma força de expressão filmada em estado de fúria, mas cuja cólera é registada com sapiência. Ao mesmo tempo é uma "mensagem numa garrafa", uma obra para perdurar para futuras gerações, assim como a cómoda que acompanhou todo uma árvore geracional de Clara. Um retrato subliminar do estado brasileiro que por sua vez conserva a riqueza da cultura de Recife e imortaliza Sónia Braga como a maior das divas do Brasil. Será muito cedo para falar em obra-prima? Muito bem, arrisco em declará-lo como tal. Que venha então a primeira pedra.”

 

Menções honrosas – The Little Men, São Jorge, Ma Vie de Courgette, Silence, War of the Planet of the Apes

Delírios na Terra do Nunca

Hugo Gomes, 28.11.17

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«Tu estás livre e eu estou livre, e há uma noite para passar». 

Francisco e Maria conheceram-se naquela mesma noite. Agora, dançam ao som de cantigas de outros tempos num terraço em Lisboa

«Porque não vamos unidos. Porque não vamos ficar na aventura dos sentidos.». 

Foi há poucas horas que discutiam sobre a posse de um isqueiro. Um isqueiro encontrado no meio da rua, sem dono, passando directamente das possessões de “meu”, “teu” e por “nosso”. 

«Tu estás só e eu mais só estou. Tu que tens o meu olhar». 

Francisco e Maria sob o ritmo daquela canção, não se tocando fisicamente, mas criando um elo através do olhar, uma cumplicidade que os levará ao fim da noite. 

«Tens a minha mão aberta, à espera de se fechar nessa tua mão deserta». 

A festa, a saída, aquele encontro entre muitos que termina a dois. Por fim, estas duas figuras são guiadas para os aposentos, sob as promessas do consumo daquela atração que “cresceu” numa pista de dança.

O dia fez-se, Maria acorda primeiro que Francisco, mas não o abandona, ao invés confronta-o a sair da sua cama, da sua casa, por fim, da sua vida. Francisco passou uma noite, uma “aventura dos sentidos” como cantarolava aquela música de António Variações naquele discreto arraial. A partir dali, a nossa personagem nunca mais viu Maria. Nunca a procurou, nem nunca precisou, o que aconteceu foi uma experiência, não um romance. Romance? Que importa tal coisa neste “Verão Danado”?

Pedro Cabeleira concentra nesta sua primeira longa-metragem, um filme instintivo que resulta numa jovialidade embelezada de teor hedonista. A festa que nunca termina, e as ressacas intermédias que transformam o espectador no vivente desta alegoria jubilante. O jovem realizador não pretendeu um retrato geracional, tal como declarou em entrevista [ler aqui], as suas pretensões são simples, possivelmente fúteis ao olhar, e nelas recolhe uma complexidade “danada”. Um estado de espírito que há muito não perseguíamos, a mais notável sensação do início de uma experiência, qualquer que seja a sua natureza. O erotismo trazido por esses caminhos extra-sensoriais, a “gula” de conhecer as personalidades “passageiras”, o de se focar nas “criaturas da noite”, essa fauna que se alimenta, de forma vampírica, das sequências festas.

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O geracional é involuntário, “Verão Danado'' é a marca da sua equipa, do “sangue” e dos “verdes anos” depositados por esta. Sei, as aspas não foram coincidências, dois filmes tão queridos da nossa cinematografia, de Pedro Costa a Paulo Rocha, ambos que entraram em Lisboa como estranhos pedintes, maravilhando uma prisão de concreto e um quotidiano que se afasta das suas anteriores idealizações. Aqui, Cabeleira remete o conto do rural para a cidade, mas as consequências são todas menos saudosas, há uma prisão sim, mas o nosso protagonista (Pedro Marujo) não anseia evadi-la. Pelo contrário, quer imergir no psicadélico desta jornada em estado de passividade.

Mas para os que não acreditam na folia, “Verão Danado” não é um filme refém dessas fantasias draculeanas, do desejo interminável de permanecer jovem para todo o sempre. Entre ressacas que prestam serviço a elipses narrativas, Cabeleira forma um circulo de uma geração à deriva, recém-licenciados em busca do seu primeiro trabalho ou dos sonhos que teimam em não coexistir com as suas realidades. Mas ao invés da pedagogia de um “Morangos com Açúcar” e da ideia de formação encetada, “Verão Danado” abrange a experiência-simulacro. O espectador é um mero festeiro pronto a esquecer do Mundo que o abandonou, ou que simplesmente não o compreende. Pela noite adentro, sob a estética (existem traços do cuidado visual de um Gaspar Noé) que sobrepõe a câmara em plena demanda, como alguém que procura o foco de interesse num convívio fora do controlo.  

A verdade é que o cinema tem ido cada vez mais ao encontro dos mais jovens e, com isso, rejuvenescido. E esse rejuvenescimento não é um factor que deva ser ignorado, nem sequer desprezado. Verão Danado exibe os dotes dessa tremenda juventude… até Nuno Melo, quando surge, cobiça esse tão inexistente elixir. Ó tempo, porque não voltas atrás?

Pedro Cabeleira: "Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa."

Hugo Gomes, 03.08.17

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Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

O verão de 2017 faz-se danado! E é com orgulho que a primeira longa-metragem de Pedro Cabeleira tem a sua estreia mundial num dos mais prestigiados festivais de cinema da Europa, Locarno, sob o signo da secção Cineastas do Presente. É uma obra estival que não respira a brisa marítima, mas inspira com tamanha euforia a noite que se abre envolvendo-nos como um só organismo.

Mais do que um retrato de uma juventude perdida num extenso limbo, mais do que a frustração destes seres incapazes de alcançarem os seus respectivos estados adultos, mais do que uma fustigada moldura dos “rapazes da noite”, “Verão Danado” é um filme para descobrir sobre o que nos mantêm jovens e essa ilusão de eterna juventude, embebida como se não houvesse amanhã.

Tive o prazer de falar com Pedro Cabeleira, realizador de um projeto que coloca em xeque não só a sua carreira ainda “verde”, mas a de uma produtora nos seus primeiros passos e de uma distribuição em plena grande aposta.

Para começar, como se sente pelo facto de ter uma primeira obra a estrear num Festival de nome como o de Locarno?

É uma sensação prestigiada, uma experiência nova e, talvez, uma aventura. Até porque nunca estive num festival destes. Mas vou sem grandes expectativas, o meu objetivo, para além de ser o de apresentar o meu filme, é sobretudo descontrair, uma recompensa por estes anos de trabalho na longa-metragem. É bem verdade que esta ida a Locarno talvez traga alguma atenção ao meu filme, porque possivelmente serão mais pessoas a vê-lo, e possivelmente mais se interessarão, o que motivará a outra parcela a querer descobrir o que é isto e integrar tais sensações. Acredito que o papel mais importante dos festivais é levar estas pessoas interessadas em Cinema a descobrirem novas paixões, fazer com que os filmes sejam falados e reconhecidos.

Mas para além de si e da sua carreira, Verão Danado será sobretudo importante para a vossa produtora Videolotion e assim, para a distribuidora FILMIN, que aposta numa estreia em sala.

Verão Danado” representa os “primeiros passos”. Vai ser o nosso primeiro filme, contudo, em termos institucionais não é bem nosso, é da OPTEC e a Videolotion funciona como uma produtora associada. O “Verão Danado" foi produzido no seio desta produtora, portanto, vai ser um passo importante para nos dar a conhecer ao mundo e tornar possível que novos projetos adquiram instantaneamente força. Quanto à Filmin, será sobretudo uma experiência, visto ser a primeira vez que estrearão um dos seus projetos em sala.

Há muito em jogo neste lançamento?

Sim, mas se correr mal este lançamento, ninguém morre, mesmo que para a FILMIN seja crucial resultar. É muito importante que estas plataformas de VOD não estejam em rutura com as salas de cinema, mas sim existir uma espécie de sinergia. Tal como a Amazon que, ao contrário da Netflix, lança os seus projetos em sala. A FILMIN obtém uma posição saudável enquanto plataforma VOD. Efetivamente apoiam o Cinema enquanto formato. Existem filmes que devem ser vistos em grande tela. No nosso caso, nós concebemos o “Verão Danado” a pensar na sua projeção numa sala de cinema e não num ecrã de computador. Desde o visual até ao som, tentamos concretizar uma experiência mais imersiva que o assistir num computador, rodeado por infinitas distrações. No geral, o Cinema e o VOD são formatos diferentes e por isso, contraem linguagens divergentes. Para a FILMIN, este filme tem que correr bem para que a distribuidora possa continuar a lançar as suas apostas em grande sala e restringir o VOD ao pós-lançamento, uma espécie de proteção às estreias cinematográficas.

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Sim, em relação a esse pensar no grande ecrã, em “Verão Danado" é evidente esse trabalho sensorial. Apostou muito, sobretudo, na atmosfera do filme.

Quando estava a pensar no filme e a construir a ideia, uma das perguntas que sempre colocava era qual a validade disto em grande. Existe sempre uma sensação oposta de ver um grande plano num grande ecrã e um grande plano num pequeno. O Cinema é um formato muito específico, dá-te a oportunidade de explorar ‘coisas’ que, por exemplo, em vídeo não são possíveis. Quando estava a filmar “Verão Danado”, refletia constantemente na sensação de que determinada cena ficaria em grande. Houve uma tentativa de distanciar este filme noutro formato, por isso requisitou-se um cuidado especial com as sequências de “festas”, porque eram sobretudo estas cenas que imaginava serem importantes a níveis imersivos para a experiência do filme, apesar de todo ele ter sido pensado para o grande ecrã. A sala de cinema é uma espécie de aquário. 

Mesmo que a tela seja a barreira física, o nosso espírito é absorvido para esse meio, tudo graças a esse efeito-aquário do Cinema e do som que ecoa por toda a sala, literalmente, a envolver-nos. Depois, o filme aposta em sensações muito primárias, relembro a festa em que o nosso protagonista experimenta MD pela primeira vez. A festa torna-se assim, algo quase equiparado a uma orgia, e nesse tempo, o fascínio pelas luzes, pelo psicadélico, pela construção de uma atmosfera, adereça-nos. Isso foi pensado para servir igualmente de uma experiência coletiva para com os espectadores, emocionalmente da mesma maneira que as personagens da tela.

Mas é verdade que o filme arranca com um retrato rural, quase como um engodo. O Pedro tentou enganar o espetador dando-lhe a sensação de “eis mais um retrato da nossa portugalidade” para depois passar a um jogo de estéticas de um mundo marginalmente festeiro e jovial.

Em relação ao início do filme, aqueles são na realidade os meus avós e a minha terra natal. Portanto nós acabamos sempre por filmar o que nos apaixona. E eu sou uma pessoa apaixonada pelos meus avós, assim como também sou apaixonado pelo sítio de onde vim, do sítio de onde cresci e isso para mim faz parte do meu imaginário como realizador. Assim como o cinema é uma oportunidade de mostrar ao mundo aquilo que te fascina, o que te faz apaixonar.

Outra vertente deste começo no rural para depois a ação deslocar-se para Lisboa, foi obtida para conseguir especificar a perspetiva do filme. A perspetiva de quem é de fora da capital, alguém “marginal” que integra esse quotidiano lisboeta. É um contraste de culturas, e o nosso protagonista encontra em Lisboa todo um rol de experiências novas, que não eram possíveis na sua terra natal. Nesse sentido, o filme consegue criar uma empatia com muitos que passaram, ou que passam pelo mesmo, gente de fora que chega a Lisboa e que se depara com uma dinâmica diferente, uma energia não sentida anteriormente, um meio underground, a multiculturalidade, uma descoberta.

Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa. Arrancamos na ruralidade, para a seguir penetrar num mero jogo de football a decorrer na Mouraria. Até dar-mos com uma sucessão de festas, festas e festas, um novo mundo que se abre gradualmente e nos prende a esse magnetismo.

Mas no meio desses festejos e trips, tenta expor um pouco a situação de muitos, mas muitos jovens de hoje. A vida pós-licenciatura, a dificuldade de não conseguir um emprego à imagem daquilo que passou anos e anos a estudar. Existe uma certa frustração entrelinhas neste filme celebrativo?

Sim, diria que o filme tem um lado de frustração. O dos jovens recém-licenciados não conseguirem arranjar trabalho pelo qual estudaram anos a fio, e por um lado esse problema advém da pressão que os pais cometem para que os seus filhos sejam, sobretudo, licenciados. Existe uma ideia de credibilidade numa licenciatura, como um papel que garanta ofícios, e os pais acreditam solenemente nisso e por isso temos imensos jovens a tirarem cursos, mais para poderem satisfazer as inseguranças dos seus progenitores do que propriamente pelas respetivas necessidades. Muitos deles são iludidos com essa ideia e chegam a Lisboa, por exemplo, forçados a tirarem esses cursos, o que motiva, durante o seu processo, um desinteresse e uma referida frustração no pós, quando estes se apercebem do quão difícil é arranjar trabalho.

Mas eu não queria verdadeiramente focar nisso, não pretendia um filme moralista de jovens martirológicos que não conseguem emprego e que porventura “bateriam com a cabeça nas paredes”. Quis sobretudo pegar nesse conceito e retirar esses lados morais, e substituí-los por um certo desleixo hedonista. Quis filmar jovens a divertirem-se, sem pensar no amanhã, evitar aquele rótulo de “geração à rasca” e de coitadinhos, até porque nunca iria tratar os meus personagens, de que tanto gosto, como “coitadinhos”. Soa como uma filosofia superficial, mas tendo em encontrar nessa superficialidade algo mais profundo, com base em sensações e experimentações primárias. De certa forma, vejo todo este mundo profissional e esta constante despreocupação dos jovens em não conseguirem arranjar um emprego enquadrado nos seus estudos, não como uma coisa alarmante, mas como um pedaço das suas jovialidades. Encaro todo este conceito como um descendente daquela temática do Vasco Santana e as suas tias em “A Canção de Lisboa”.

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Em entrevista com Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

É verdade que esta produção obteve um orçamento quase inexistente, e foi graças a essas limitações que “Verão Danado” tornou-se um filme mais instintivo do que subjugado a um argumento ditatorial, um como o cinema dos irmãos Safdie? Quer falar sobre essas atribuições durante a produção e rodagem do filme?

Se o filme tivesse um orçamento realista, vamos supor uns 300 mil, mas como a produção só dispôs de mil euros… bem. O que aconteceu verdadeiramente foi o seguinte: depois de terminar o curso sabia perfeitamente que teria algumas ajudas na execução de uma primeira obra, e o dinheiro conseguido com o orçamento serviu sobretudo para pagar algumas despesas extras, tais como o transporte, a alimentação dos atores, etc. “Verão Danado” foi ajudado em muitas outras formas, não a nível monetário, ou seja, tudo foi concretizado muito a nível de favores até porque os atores não estavam a ser pagos, o material foi a escola que emprestou, os décors também foram todos emprestados, a câmara pertencia a um amigo meu, basicamente foi tudo favores atrás de favores.

Quando sabes que estás a trabalhar sobre estes métodos de produção, tens que estar de mente aberta para saberes que te vais deparar com algumas fragilidades, ou seja, por qualquer momento há um décor que não pode ser filmado, um amigo que afinal não pode emprestar o material, ou um ator que à última hora não pôde aparecer. Não podíamos ter um argumento fechado, porque se tivéssemos, a produção seria uma ruína devido a estes contratempos e bloqueios. O filme tinha essa abertura, que facilmente nos levaria a  resolver essas fragilidades através de soluções criativas. E ao ter um filme assim, tínhamos espaço para sermos espontâneos, para improvisarmos, e eu ouvia os atores e o resto da equipa, estava perfeitamente ciente de qualquer mudança, ou ideia, porque acima de tudo queria realizar um filme com que as personagens dessem a entender que habitavam e coabitavam em Lisboa. Isso também só poderia ser possível tendo um elenco jovem. Mas apesar da experiência, eu não voltaria a trabalhar nestes moldes, também desejo uma produção mais contida [risos].

Em relação a influências? Houve quem apontasse veias de Gaspar Noé no seu trabalho.

Influências diretas não tive. Quando fiz este filme, tentei desligar-me de tudo o poderia soar a influências, e tentei filmar como um amador, até porque não queria começar a minha carreira com vícios de enquadramentos. Queria acima de tudo filmar sem uma planificação formal. Era importante para mim desviar-me do academismo escolar, daquela linha estética, posso gostar ou não, mas queria ter a certeza que ao filmar deste jeito, quase amador, poderia surgir dali o verdadeiro “eu”, aquilo que realmente sou enquanto realizador. Estava disposto a conhecer esse meu lado criativo.

Poderá ter saído algum ou outro lado muito semelhante a Gaspar Noé, nada contra, até gosto dele enquanto realizador, mas no meu subconsciente poderá ter sido possível, até porque ele trabalha muito bem esse ambiente de festa, essa atmosfera no qual tentei trazer para o filme. Mas no geral não queria utilizar referências, queria uma forma pura, e quando estás a filmar como um amador estás a descobrir-te. Poderia ter saído mal, mas eram essas as minhas pretensões. Filmas isso e filmas em excesso e é então que na sala de montagem inicias a tua auto-descoberta e deparas-te com o realizador dentro de ti. E este filme foi isso, a minha descoberta.

Em relação às influências, conscientemente não usei nenhuma cinematográfica, mas utilizei referências literárias que eram o David Foster Wallace e o Pincher. Estes escritores usavam um leque variadíssimo de personagens, imensos gags, faziam espécies de comédias de costumes ao mesmo tempo que possuíam uma veia hiper-realista. David Foster Wallace por exemplo, falava do quotidiano de forma bela, e eu seguindo os seus passos, queria abordar com beleza o contemporâneo que hoje em cinema, é quase escasso. Tentei atribuir um lado estético a esta Lisboa, mantendo-me fora do cartaz turístico. Queria embelezar este quotidiano, estes seus personagens fúteis. Tal como o Foster Wallace e Pincher, tentei abordar esta comunidade, porém, não me sujeitando ao papel de crítico, ao invés disso, honrando-a.

Outra pretensão minha era a de criar um filme coral, não restringindo o filme a um punhado de personagens. É por isso que temos o Chico, que é um protagonista que não se impõe, que se deixa absorver pelos outros, pelo seu redor, por esta minha Lisboa. No fundo este seu redor acaba por tirar-lhe o protagonismo e atribuir ao filme um lado muito geracional. Mas a minha intenção não era fazer um retrato geracional, não era fazer um filme sobre a minha geração, era esse sentido coral que queria, e talvez esse efeito tocasse em inúmeros pontos que o transformariam num retrato dessa natureza.

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Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Em relação a estas novas polémicas do ICA, o qual tem sido apontado como um impasse para muitos jovens realizadores. O que tem a declarar sobre o assunto?

Relativamente ao ICA, isso é uma conversa com “panos para mangas” e não vou tomar nenhuma posição política até porque este filme contou com financiamento do mesmo. O que posso dizer sobre o ICA é que o apoio à finalização foi crucial para conseguir acabar o filme. E em relação a esses tipos de apoio, julgo serem dos apoios mais justos, porque simplesmente não ligam a currículos, nem nada que apareça. Ou seja, o meu currículo não estava a ser avaliado, apenas o meu projeto, etc. Acontece é que o ICA sempre será um sistema falacioso, por mais que se tente lutar contra ou alterar as suas normas, as regras, as alinhas, ou o que quer que seja. O ICA será sempre e continuará a ser esse sistema falacioso. Percebo perfeitamente que não são apenas os mais jovens a fazerem filmes, os mais velhos também fazem e todos querem fazer, e todos eles precisam de dinheiro para o fazerem.

O que acontece é que se eu mudar alguma regra do ICA estarei sempre a puxar a “brasa à minha sardinha” e isso é  entrar em rutura com alguém que esteja numa diferente posição da minha. E eles tentarão mudar as regras também de forma a “puxar a sua sardinha”, sistematicamente. Se alterares uma alinha, estarás sempre a prejudicar alguém de certeza, e a beneficiar outro alguém. Para o bem de todos, tens que jogar esse jogo e sujeitas-te àquilo que o jogo te dá. Por exemplo, existe essa polémica de que não se devia contar os currículos dos produtores e somente os dos realizadores, mas vamos supor que alguém de mais de 60 anos com um número x de filmes, alguns estreados em festivais de nome como Cannes e que fez um n número de espectadores, seja inserido nessa avaliação de currículos de realizador. Logo a média é boa, e eu, sendo um jovem ainda na casa dos 20 com uma longa a estrear em Locarno e ainda não tenho nenhum número definido de espectadores, seria benéfico estar associado a um produtor de um currículo extenso. Caso contrário, não cumpriria a devida média.

É difícil, porque o ICA está a tentar objetivar coisas subjetivas. Tenta objetivar ideias, atribuir parâmetros para avaliar essas mesmas, quando estas são avaliadas de uma forma subjetiva. As pessoas identificam-se com os filmes de formas diferentes. Claro, o que se discute hoje é a SECA, as escolhas de júris, entre os quais, muitos deles estão ligados a distribuidoras como a NOS, etc. Esta novela da ICA não sairá daqui, e a única solução é procurar alternativas, nem que seja discutir estes assuntos no Parlamento. Mas eu não quero tomar uma posição política, porque hoje em dia vivemos numa aldeia global e existem muitos lados aonde podemos ir buscar financiamento. Para mim a luta do ICA é uma luta muito pequena e sinceramente não é algo que valha a pena. O nosso país é demasiado pequeno para nos concentrarmos neste tipo de conflitos.

Para terminar, tem alguns novos projetos?

Filmar um filme na minha terra, no Entroncamento, mas não quero abrir muito sobre ele, porque não quero criar expectativas para o caso de não conseguir cumprir o objetivo. Mas pretendo fazer um filme sobre as pessoas que ficaram lá.