Com Agrado ...
Pedro Almodovar dirigido Antonia San Juan, a personagem Agrado em "Todo sobre mi Madre" / "All about my Mother" (1999)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Pedro Almodovar dirigido Antonia San Juan, a personagem Agrado em "Todo sobre mi Madre" / "All about my Mother" (1999)
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Depois da tempestade vem a bonança, pelo menos seguindo os ditados populares poderemos considerar que 2021 foi o ano revitalizador do cinema. Contudo, os ecos da pandemia e as ameaças de novas variantes têm indicado um regresso tímido às salas, em oposição de um cinema-fénix que surge das cinzas da modernidade que conhecíamos e que muita tristeza nossa apelidamos de “normalidade”. São filmes que nasceram dessa decadência civilizacional e que debruçam na nossa "barbárie" como foi o caso de Radu Jude e o seu “Bad Luck in Banging or Loony Porn”, ou que remetem-se a paraíso longínquos da nossa memória [“O Movimento das Coisas”], ou questionam a nossa identidade nos confinamentos da existência [“Titane”]. No fim de contas, o Cinema sobreviveu, o que nos basta é procurá-lo nos meios das proclamadas ruínas! Segue a lista dos 10 filmes imperdíveis do ano de 2021, que (privilegiadamente) tiveram estreia portuguesa.
#10) Compartment Number 6
"Nunca me canso de citar Fernando Lopes na sua breve aparição de "The Lovebirds" de Bruno De Almeida - “Existe uma beleza triste na derrota” - e tendo esse signo em vista, é de facto inegável a beleza nas ferrovias de “Compartment Nº6”. Resistindo à melancolia como uma falhada festa!" ler crítica
#09) Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait
"“As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos” percorre por vias de palavras essas dúvidas supostamente existenciais das personagens, que se vão cruzando e entrelaçando umas com as outras através de relato e discursos. Está feito aqui um universo a merecer ser explorado, de felizes e tristes acasos, e de conflitos discretos, de ênfases dramáticas subtilmente embutidas nos gestos, nas carícias ou nos beijos trocados antevendo despedidas. Sensibilidade é o que é aqui pedido, porque casos amorosos todos nós vivemos, nem que seja por um dia. Dentro dos tais ditos “filhos de Rohmer”, eis um filme que é, de facto, um pedaço de céu." Ler crítica
#08) Bad Luck Banging or Loony Porn
Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel. Ler crítica
#07) The Human Voice
A atriz britânica é das forças maiores deste projeto, que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal, enquanto emana um monólogo justificado. Esta é a história de uma mulher em jornadas existencialistas cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a postura trágica, a leva a tomar medidas. Ler crítica
#06) Nomadland
Inspirado no livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, Chloé Zhao marca a sua posição, quer na definição de realismo, separando qualquer simulacro "hollywoodesco" e submetendo McDormand, bem como outros atores, a um convívio de constante aprendizagem com não-atores, as tais pessoas de carne-e-osso que tanto procuramos nos filmes. Trata-se de um processo de criação que funde ficção em território documental e o híbrido daí gerado percorre os trilhos de um "império" deixado ao abandono. Império que aqui não é citado por acaso: remete para a ironia do destino, em que a cidade Empire onde vivia a protagonista, outrora industrializada e habitada, se tornou um endereço postal inexistente. Ler crítica
#05) Titane
Portanto, “Titane” opera consoante a interpretação e representação que lhe quisermos dar e visualizar, nunca prescrevendo em absolutismos ou propagandas. É terror, choque, sangue e bizarrias. E, ao mesmo tempo, política, identidade e sociedades espremidas numa só arte. Uma complexa panóplia disfarçada num gesto de repugnar o espectador, com uma atriz titânica como Agathe Rousselle a servir-nos de compaixão e incómodo e um dos mais excêntricos desempenhos de aclamado ator Vincent Lindon. Ambos em figuras presas às suas maldições, que ambicionam pelo aço o que os seus corpos invejam. Ler crítica
#04) O Movimento das Coisas
São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes. Ler crítica
#03) Undine
Undine torna-se Berlim, e Berlim torna-se Undine, uma cidade, um corpo, que não morre, simplesmente dá a vez a outro. Christian Petzold pode não ter aqui a essência bruta e já flexível da sua cooperação com Nina Hoss (saudades), mas sabemos que temos, não um desfecho, e sim, uma aurora. Um reinício do seu Cinema. Não querendo banalizar um termo, por si só, tão banalizado, eis um belo filme. Ler crítica
#02) Another Round
Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antidoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano. Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!Ler crítica
#01) Gunda
Kosakovskiy conseguiu mais uma experiência a merecer, de forma digna e obrigatória, o grande ecrã, porque no fundo o cinema transporta quem o vê para uma outra dimensão, realidade ou linguagem. “Gunda” fala-nos com exatidão de um mundo tão perto de nós, mas tão ignorado pelo nosso antropocentrismo. São animais a serem simplesmente animais e as imagens de crua beleza assumem exatamente aquilo que são e nada mais. Não existe engodo, tudo respeita a natureza e a sua autenticidade. Obrigatório. Ler crítica
Outras menções: Begining, The Father, Cry Macho, Colectiv, Prazer Camaradas
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Kika (Pedro Almodovar, 1993)
Verónica Forqué (1955-2021)
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Em tempos, Pedro Almodóvar era etiquetado como o “realizador das mulheres”, hoje em dia, tendo em atenção a representatividade, muitas delas levando as temáticas e abordagens a grupos restringidos, tal cognome tornou-se automaticamente impróprio ou politicamente insensivel.
Contudo, não podemos fugir da capacidade, ou fascínio, do cineasta em integrar na sua filmografia um leque, vasto e curioso, de personagens femininas, várias delas inspiradas na sua própria mãe, figura cuja importância o próprio tem vincado até hoje. “Madres Paralelas”, o seu novo filme após o “muy” intimista “Dolor y Gloria”, é uma leve reviravolta ao papel maternal, mantendo os seus traços inspiradores mas lhe devolvendo a irreverência solicitada pelos novos tempos.
Aqui, Penelope Cruz é uma mãe solteira (assim opta), profissionalmente respeitosa e bem sucedida, que acolhe uma jovem mãe (Milena Smit), ensinando-a as mais variadas tarefas domésticas, com destaque a cozinha. Em que cada lição é uma intervenção gastronómica, passo-a-passo na confecção como no amor, delicadeza dos gestos e a manifestação de experiências, e numa dessas preparações, Cruz enverga, bem saliente, uma camisola com o slogan - “Devemos ser todas feministas” - estampadas. Não é mero adereço, nem tendência do momento, é um statement de Almodóvar, a actualização do seu velho e recorrente papel, a mãe inserida num estado contemporâneo e no significado feminista do termo. Será que a definição absoluta advém de “ativismo” ou a mera vivência com fidelidade às suas liberdades e convenções?
Embora Almodóvar seja um homem que coexiste num mundo onde a igualdade adquire um peso na ficção e na criação, “Madres Paralelas” é um filme feminista (da mesma forma que muitos da sua carreira foram), porque simplesmente são as mulheres que ganham aqui um protagonismo imenso (os homens são, neste caso, meros “doadores”), não apenas na narrativa ou na carga dramática, mas nas comunidades e convivências alicerçadas em cada uma das suas ficções, com toda e merecida sensibilidade.
Mesmo que obra menor, aliás, uma novela que não esconde o seu lado de farsa e de plasticidade técnica (os constantes fade outs que adquirem cumplicidade com o artificialismo sensual e por vezes onírico), servida de isco para um panfleto (quase pedagógico) de punho cerrado a favor das memórias importunas e incômodas. O franquismo, pó varrido para tapetes politizados, é aqui denunciado em contornos de subenredo, uma inconveniência solicitada para desmascarar novelas mal emaranhadas.
Nos últimos anos, o cinema espanhol tem conseguido encontrar formas para referir o tema tabu, e “Madres Paralelas” lida isso com uma agressividade revanchista e de bramir armas convictas. É, à sua maneira, um filme para novas gerações, determinadas em não esquecer e mais que isso, perpetuar uma dignificação dos sofridos de um regime e dos “sem nome” ocultados pelo mesmo. Nesse sentido, Pedro Almodóvar fez o seu papel.
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Será que fazer Cinema é preciso cumprir uma devida e específica duração? Existe alguma regra raiz-quadrada que transforma automaticamente cada metragem em Cinema propriamente dito? Pedro Almodóvar prova que não. A barreira quase estigmatizada da curta para a longa é somente uma formalidade, porque o registo de menor tempo é preciso para a sua mensagem, ou diríamos antes, o seu Cinema.
"A Voz Humana" ("The Human Voice"), livremente baseado numa peça do poeta e cineasta Jean Cocteau (publicado em 1924), é uma invocação dum fantasma recorrente que assola o realizador espanhol. A homónima obra sempre fora uma inspiração, evidentemente cerne do seu intemporalmente elogiado "Mujeres al borde de un ataque de nervios" (mas antes "La Ley del Deseo" bebia desses mesmos sucos motivadores), sobre a espera incessante e destrutiva pelo seu amante. Aqui, trocando Carmen Maura por Tilda Swinton, a plasticidade mantém-se e ainda complexa num registo meta que cruza o "teatro filmado" com o cinema a olhar para a sua própria concepção.
Swinton é das forças maiores do projeto que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal enquanto emana um monólogo justificado. A história de uma mulher em jornadas existencialistas, a quem cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a compostura trágica, a leva a tomar as suas medidas. É um divã, uma confissão, dirão os mais moralistas, um acontecimento que prevê a verdadeira emancipação. Somente isto, uma atriz, um cenário multiplicado por "faz-de-contas", a ida de uma mulher ao seu mundo, a projetada realidade, para no fim, evadir essa mesma clausura criada.
Almodôvar prova mais uma vez que é um artesão na sua arte. E que arte é essa? A de dar voz a mulheres oprimidas pelas suas próprias emoções, sejam reprimidas ou libertadoras. E para isso não é necessário uma narrativa estendida. Meia-hora, simplesmente isso, é o que nos basta para oferecerem espectacularidade.
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Hoje, dia de São Pedro, recordo alguns 10 Pedro(s) célebres do Cinema. E para vocês, qual "Pedro" destacaria na lista?
Peter Sellers, ator de “Dr. Strangelove” e da saga “The Pink Panther”
"Pierrot, Le Fou" (Pedro, O Louco), filme de Jean-Luc Godard com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina
Peter Lorre, ator de "M", "Casablanca" e "The Man Who Knew Much"
Peter O'Toole, ator de "Lawrence of the Arabia" e "Venus"
Peter Weller, ator de "Robocop" e "Naked Lunch"
Pedro Almodovar, cineasta de "Pain and Glory", "All About My Mother" e "Women on the Verge of a Nervous Breakdown"
Pedro Costa, realizador de "Vitalina Varela" e "Quarto da Vanda"
Peter Cushing, ator de "Star Wars" e vários títulos da Hammer
Peter Weir, realizador de "The Mosquito Coast", "Truman Show" e "Picnic at Hanging Rock"
Peter Bogdanovich, realizador de "The Last Picture Show" e "Paper Moon", um dos responsáveis pela conclusão de "The Other Side of the Wind", de Orson Welles
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O ano 2019 foi marcado por uma disputa mais renhida entre a distribuição tradicional e os lançamentos de streaming. Nesse último ponto, dando o exemplo da megalómana plataforma Netflix, houve uma forte aposta nos autores que se encontravam (devido a questões criativas, orçamentais e até logísticas) ausentes nas majors hollywoodescas como é o caso de Martin Scorsese e o seu épico gangster The Irishman ou o intimismo de Marriage Story, um dos melhores trabalhos do nova-iorquino Noah Baumbach. Enquanto isso, o cinema fora EUA continua a dar as suas cartas em relação a histórias universais e motivadoras para estas gerações de sofá. E mais uma vez … o cinema português lidera o pódio deste estaminé.
#10) Leto
Sem romances escandalosos, as biografias de cantores de rock seriam inúteis", ouve-se a certa altura nesta não convencional cinebiografia sobre a criação da banda de rock soviético Kino. Do dissidente russo Kiril Serebrennikov, eis um filme intrinsecamente poético (são bandas de Leninegrado que tocam rock que não é rock, mas que pretende ser rock) e expostamente revoltado sobre a resistência jovial e punk perante uma ideologia em queda no gradual contacto com o acidente.
#09) Marriage Story
Embora ele o negue, há quem diga que Noah Baumbach se baseou no seu processo de divórcio para este filme emocionalmente cortante sobre o desgaste amoroso e as eternas batalhas judiciais e sentimentais de uma separação. Desempenhos impactantes e cuidadosamente explosivos fazem deste drama (e produção Netflix) um dos mais certeiros filmes sobre o tema do divórcio no panorama norte-americano, onde a distância é, por si, um alvo de foco.
#08) Joker
Uma génesis anti-canónica embrulhada em maneirismos e referências do cinema de Scorsese. Um fenomenal Joaquin Phoenix e Todd Phillips compõem uma obra cruel que dialoga com a atualidade, dos movimentos populistas até à marginalização das minorias e dos incapacitados numa sociedade que cada vez mais os despreza. Um filme ambíguo que nos faz temer pela sua capacidade e recusa de empatia. Uma das mais interessantes e sólidas incursões do cinema de super-heróis.
#07) L'Empire de la Perfection
Julien Faraut arranca com um texto do crítico Serge Daney em que comparava o Cinema com o desporto, nomeadamente o ténis, para partir numa busca pela perfeição nas posturas e gestos destes jogadores. Nesta sua investigação, esbarra no improvável, em John McEnroe e os seus movimentos desengonçados, na postura imprópria e no seu feitio que motivavam constantes paragens da partida. Através da imperfeição, tenta-se decifrar a perfeição.
#06) Once Upon Time in Hollywood
Deambulamos pelas avenidas solarengas de Los Angeles, ou passeamos por um rancho cercado pelo culto Manson, trilhos e esperas que nos levam a um cinema dotado de paciência, mas percorrido com o amor à Sétima Arte, esse, oriundo de um dos seus entusiastas. Absolutamente "tarantinesco" e longe dos quadrantes do politicamente correto, um filme que é um espelho da nossa realidade e condição social, refletidas numa permanente fábula.
#05) Dolor y Gloria
Após algumas revisitações falhadas, Almodóvar regressa ao passado, fonte de inspiração de algumas das suas melhores obras, para exorcizar as suas memórias num retrato de vitórias e derrotas. O “Pedrito” tem aqui o seu grande pseudónimo na pele de António Banderas, aquele que é possivelmente a seu papel mais rigoroso. Certamente sereno, consciente do seu percurso e sabiamente maduro, o filme é o melhor de dois mundos, a sensibilidade e a maturidade.
#04) Mektoub, My Love: Canto Uno
Para as acusações de misoginia e de voyeurismo, respondemos com uma espécie de efeito proustiano no preciso momento em que Abdellatif Kechiche revisita as suas memórias de juventude numa distorção ficcional. A câmara assume diversa vezes o olhar de um jovem propício à descoberta sexual e emocional, e o filme acompanha essa libertação como um mero turista por entre praias, ruralidade e noites enfrascadas em álcool.
#03) Glass
Nesta secretamente trabalhada trilogia do realizador de “O Sexto Sentido” e “O Protegido”, eis uma analogia ao nosso mundo, dominado pelo universo dos "comics" e super-heróis, desafiando a formatação cinematográfica a partir de uma impingida desconstrução. Mesmo sendo disperso na mensagem, M. Night Shyamalan nunca pretendeu fazer o mesmo que outros com materiais familiares, mas sim olhar à volta e repensar essa mesma paisagem. Será fruto de reavaliações no futuro.
#02) Parasite
O sul-coreano Bong Joon-ho sempre requisitou a luta entre classes, seja de forma evidente ou subliminar, durante a sua carreira. Aqui segue uma família que sobrevive à conta de esquemas e subsídios e tenta infiltrar-se num seio mais avantajado. A sua obra narrativamente e tematicamente mais convencional, mas nem por isso inferior, pelo contrário: é a sua acessibilidade comunicacional que o torna universal e igualmente pontuado de pormenores deliciosos e fraturantes sobre as pirâmides hierarquizadas das nossas sociedades (ocidental ou oriental).
#01) Vitalina Varela
Premiado com a distinção máxima no Festival de Locarno, mais o prémio de atriz, eis mais um feito do cineasta português Pedro Costa no seu percurso de constante reinvenção artística. Uma jornada por entre fantasmas e viúvas numa Lisboa soturna e condenada à marginalização onde, pelo meio, há todo um investimento estético que proclama o filme como um livro de ilustrações aberto para cada um de nós apreciar (nota ao diretor de fotografia Leonardo Simões). Uma experiência sensorial.
Menção honrosa: Ash is the Purest White, If Beale Street Could Talk, Los Pájaros de Verano, Alice et le Maire, 3 Faces
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Antes de começar com a previsível justificação da minha seleção, queria mencionar um filme que apesar de se encontrar ausente desta listagem, foi importante e reflexivo para com a virada da década, e quiçá, desenhando aquele que diríamos ser o cinema das próximas gerações.
Essa obra é nada mais, nada menos, que a “The Social Network” (A Rede Social), de David Fincher, que acertou contas com um dos possíveis vórtices da nossa identidade do século XXI, enquanto individual, enquanto coletiva. Não poderemos negar que os nossos dias são demasiado dependentes desse dispositivo - o de trabalhar a nossa imagem para o exterior e moderar a exposição do nosso (não) íntimo. Digamos, que foi através desses pensamentos perante tal “futilidade”, do qual se tornariam o espelho narcisista da nossa modernidade, que Aaron Sorkin inspirou-se para escrever esta fictícia trama (na altura apontada como “cedo demais”) que operaria como pontapé de saída para os filme que reúno aqui – intimidade expositiva e a imagem fabricada da nossa existência.
Por isso, passeamos pelo último gesto de cineastas incompreendidos (The Other Side of the Wind, The Turin Horse) até à possível previsão do futuro do cinema (Holy Motors, The Congress), a nossa exposição sentimental como instalação artística (Elena, Before We Go, L’ Vie d’ Adèle), a identidade ou existência como demanda de natureza várias (La Grande Bellezza, La Piel que Habito, Django Unchained). Mas no seu todo é uma “mixórdia”, como muitos deverão salientar, de velhos autores em reunião com outros nomes sonantes e promissores que aguardam pelo seu tempo. Porque o cinema tem destas coisas - o de esperar para ver.
1 -The Other Side of the Wind (Orson Welles, 2018)
2 – Holy Motors (Leo Carax, 2012)
3 – Elena (Petra Costa, 2014)
4 – La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)
5 – The Turin Horse (Béla Tarr & Ágnes Hranitzky, 2011)
6 – Before We Go (Jorge Léon, 2014)
7 – The Congress (Ari Folman, 2013)
8- La Grande Bellezza (Paolo Sorrentino, 2013)
9 - Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012)
10 - La piel que habito (Pedro Almodóvar, 2011)
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Pedro Almodovar e elenco de "Todo Sobre Mi Madre" / "All About My Madre" (1999)
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Não eram maus ventos aqueles vindos de Pedro Almodóvar nos últimos anos, eram simplesmente justificações de um homem que ansiava não cair no esquecimento autoral devido a um estancamento criativo. Essa falta de transgressão do seu gesto narrativo levou-nos a duas obras de natureza caducada: “Los Amantes Pasajeros”, um retrocesso à faceta de comédia negra à prova do preconceito sexual e no seu anterior “Julieta”, o melodrama novelesco (ou melhor, como Caetano Veloso definiu, “o almodrama”) a tentar fazer jus a um legado.
Vamos por partes: se existe elemento que une a filmografia de Almodóvar é o passado, o seu peso que intromete-se como causa e efeito, assim como resolução dos seus conflitos. O cineasta espanhol apenas transgrediu essa essência de olhar para trás, retirando-a do universo dos filmes e posicionando-se ele próprio nesse efeito. Resultado: “Los Amantes Pasajeros” é de um humor decadente e arcaico que só demonstra como a sua comédia "almodovariana", dos tempos de “Kika” e “Entre tinieblas”, não consegue ser replicada na atualidade (e não há razão para tal). Já Julieta demonstra uma falta de sofisticação, um realizador a citar-se a si mesmo num intenso automatismo.
E é com isto que chegamos à contradição. “Dolor y Gloria” é um filme sobre o passado e ao mesmo tempo é um olhar para o passado, um jogo de camadas que a certo momento assume. Mas então, o porquê deste sobressair dos dois mencionados dessa jornada aos êxitos de outrora? Por uma simples razão: Pedro Almodóvar volta a preocupar-se com as personagens e isso sente-se num protagonista tão alter-ego como Salvador Mallo (nunca vimos um Antonio Banderas tão intimista como o daqui), um realizador na recusa em iniciar novos projetos devido a uma insegurança existencialista que bem poderia ser trocado pelo próprio cineasta.
O espectador segue de perto o seu quotidiano, as suas memórias, as suas eternas dores (físicas e emocionais) e ao mesmo tempo celebra a vida com ele. Almodóvar percebe assim a ligação entre a personagem e o público, elaborando-o no limiar da linguagem meta, tornando-o direto e franco nesta relação, fazendo do próprio espectador o seu cúmplice passional.
Se Mallo é o anfitrião deste retorno à infância e das etapas que o tornaram o adulto que é, incentivado por um desenho da mesma forma que a madalena incentivava Proust, “Dolor y Gloria” é também apoiado na cedência ao detalhe. Aliás, pormenores mínimos que conquistam o seu lugar no realismo comportamental, arestas limadas que na linguagem académica são frutos despachados para não “empapar” narrativas. Atos como o de Mallo, que fuma heroína pela primeira vez (demonstrando sempre um gesto de “novato”), ou toda a condução da cena entre Penélope Cruz e filho na estação, prolongam a sequência como uma réplica dos costumes geracionais.
Depois segue a contradição número dois. Se Almodóvar está interessado em colocar as suas personagens a comportarem-se da forma mais real possível, então porquê deslocá-las para um ambiente plastificado? Este contraste de “sabores” guia-nos por entre as referidas camadas. A peça teatral de Mallo, por exemplo, é composta maioritariamente por um plano médio sob fundo vermelho berrante (um dos melhores trabalhos do diretor de fotografia, José Luis Alcaine) que cristaliza a silhueta do magnífico Asier Etxeandia em pleno monólogo. O efeito hipnótico causado por esta escolha de coloração é somente a fase um.
A segunda arranca após o vencimento do plano: uma sequência de campo/contracampo entre o ator ficcional e o público ficcional, que por sua vez, representam a ligação intimista que o nosso artesão tenta estabelecer entre Mallo e nós. Os olhares destes “figurantes”, em união com o olhar de Etxeandia, servem apenas de atalho para o reencontro de amantes (belíssimo momento que nunca cede o caminho fácil do melodrama). Isto tudo, para situar que as camadas (sempre presentes) operam como um verdadeiro tour-de-force da própria narração, alicerçado de uma edição veterana de quem conhece a semiótica dos planos e do desencadear destes.
E é aí que entramos na prova final. Conhecimento, maturidade e experiência, três elementos interligados e quase diluídos que formam uma obra culminante. Pedro Almodóvar teve que tropeçar para voltar ao carris e fá-lo sob um sabor de saudade. Um filme visualmente cativante que opera como um espelho emocional, sensível e confidente, onde encontramos mais que somente personagens, mas marcos que mapeiam a alma de um realizador que nos convida a percorrer o seu continente.
Tínhamos tantas saudades tuas!
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