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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Paulo Carneiro: "precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas". Uma luta por Covas do Barroso e pelo cinema.

Hugo Gomes, 23.04.25

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Rezam lendas e histórias de aura autoral, que é ao terceiro filme que um realizador se afirma no tipo de cineasta que pretende ser. Para Paulo Carneiro, porém, a questão é mais profunda do que simplesmente ser cineasta e de que tipo, colocando antes a interrogação essencial: o que é um cineasta? Sobretudo nos tempos que correm, em que a aceleração do nosso mundo se faz sentir em todas as esferas. Contra os malefícios dessas mudanças repentinas, resta o activismo, a luta, a câmara — como arma, como poder, mas também como aliada. Em Covas do Barroso, a poucos quilómetros de Bostofrio, onde Carneiro e as suas memórias inscreveram a sua primeira longa-metragem, encontrou uma população disposta ao combate contra um inimigo poderoso e multinacional: a Savanna Resources Inc., empresa britânica com intenções de explorar o lítio naquele território. Paulo Carneiro uniu-se a este povo, a esta aldeia, ergueu a bandeira do companheirismo e registou o seu duelo ao pôr-do-sol.

A Savana e a Montanha”, depois de uma passagem pela Quinzena dos Realizadores no ano passado, chega às vésperas do 25 de Abril — sem coincidências… O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre o filme, sobre a resistência do cinema e, voltando ao ponto de partida, sobre o que é ser cineasta com “sangue na guelra”.

Começo por recordar que, na nossa última conversa, referiste que este filme surgiu a partir de outro projecto no qual trabalhaste durante três anos, mas cujo resultado final não te agradou, levando-te a regressar a Covas do Barroso e a desenvolver este “A Savana e a Montanha”. Que filme era esse? O que procuravas inicialmente nessa obra para, ainda assim, sentires que não estavas satisfeito com o que tinhas alcançado?

Um pouco dos outros filmes, mas com um engenho novo, um efeito especial. É complicado explicar agora, mas havia uma novidade na forma — nova no sentido do que vinha antes. Acho isso importante. Já não queria filmar da mesma maneira. Obviamente, nunca se colocou a hipótese de, do ponto de vista formal, filmar algo académico. Isso não interessa, não é desafiante, não acrescenta nada, e acho que, quando nos divorciamos da forma e trabalhamos apenas o tema, a história, parece-me que é menos cinema. É quase uma batota. Percebi rapidamente que o caminho não era esse … a que tinha proposto inicialmente.

Porque sentia que, no filme, o olhar da câmara, o gesto cinematográfico, não captava a força das pessoas. Era preciso encontrar um dispositivo para que essa força fosse sentida. Essa ideia do épico, que vem deles também, dessa ironia do Carnaval, ajudou. A mise-en-scène dialogada, tudo coreografado, permitiu que a câmara se posicionasse de forma a que as pessoas estivessem em relação a ela como queria que os espectadores as vissem.

Recordo que referiste também que o teu montador de som apelidou esta tua obra de “western social” … Portanto, quando foste atrás do olhar destas pessoas, optaste pelo género western para poderes, vou usar a expressão, injetar no teu filme as idiossincrasias do género. Aliás, faço a questão de outra maneira: o porquê do western? Ou é o género que mais se identifica com a questão do ativismo que queres trazer para o teu filme?

Não, e sabes porquê? Como havia dito, ia acontecer este desfile de Carnaval, e o que acontece é que observo os preparativos e depois a cerimónia dou-me de caras com todo aquele festim de cowboys e índios. Aliás, gosto do western, mas não sou um obcecado, não tenho essa coisa do cinema de género, nem do género drama, se quiseres, ou o género documental. Não tenho isso. Gosto de cinema, isso é o que me importa. Foi então que percebi isso, que ia haver este desfile, e peguei no tema e trouxe-o ao expoente máximo, no sentido de que a própria forma como a câmara se desloca, a ideia dos duelos, etc. Fazer um pouco esse jogo com o género, e, ao mesmo tempo, perceber que, com esta coisa do género, há uma relação muito próxima — não, muito longínqua — das pessoas com o que é fazer cinema em Portugal. Ponto.

Nos anos 80 e 90, na televisão, os filmes que as pessoas viam eram sobretudo westerns, muitos filmes norte-americanos, aquele cinema que ainda não era o dos planos de dois segundos, e, automaticamente, usando as ferramentas desse género, eles sentiam que estavam a fazer cinema. Havia também um lado social no próprio ato de fazer o filme, como o ativismo de luta.

O próprio filme, a própria ideia de rodagem, de feitura do filme, conseguia, de certa forma, abstrair-nos daquilo que se estava a passar. Então, o filme tem esse lado social. Era quase como se estivéssemos a fazer um filme e a ouvir-nos, ao invés de irmos ao principal e filmarmos diretamente. Não queria tanto exagerar, e a coisa do género, esta coisa inteira, divertia as pessoas. Era uma maneira de conseguirmos trazer as pessoas para o coração do filme. No sentido de estarem a participarem nele, de ser também um filme deles.

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Paulo Carneiro

É uma forma de trazer o filme, não apenas para estas pessoas, mas para o público e igualmente direcioná-los para esta causa?

Gostava, mas é muito difícil saber isso. Mas era bom que fosse. Daí também a questão do musical, este surgiu porque percebemos - quer dizer, basta olhar para a história - que houve momentos-chave, como na madrugada de Abril, com músicas, cenas … Toda essa carga histórica mostra que, através do entretenimento, da música, também se pode fazer política.

Sim, sim. Aliás, o Rui Simões diz algo como: “Todo o cinema é político, e o cinema de entretenimento também é político

Pois, não sei se concordo totalmente, talvez daqui a 30 anos, quem sabe.

Mas sobre esse ativismo, esse lado de luta… há um certo zeitgeist no filme. Primeiro, porque estreia um dia antes do 25 de Abril. Foi uma data escolhida por ti?

Sim, havia outras datas possíveis, mas acho que a simbologia da data tem a ver com a proposta do filme. Fica ali bem, faz sentido.

Também senti isso. No “Via Norte”, no último plano em frente ao quartel da Pontinha, já havia uma porta aberta para toda essa simbologia. E por outro lado, o filme surge num bom timing — hoje fala-se imenso sobre as tarifas, a comercialização, a mineração na Europa e na América, especialmente com todo aquele clima político nos Estados Unidos. Questões ambientais, e o teu filme mexe com essa nova água.

Sim. Acho que é um filme que, como disse outro dia, quer tirar-nos da impotência política. Mas acima de tudo, não é um filme de números, de dados, nem sequer explicita qual é a dimensão das ambições da empresa. Isso foi intencional. O que me importava era esta ideia de que, sozinhos, não contamos. Se não houver um sentido de grupo, de comunidade, não se tem força. Estamos sempre a lutar contra algo invisível. Se formos só indivíduos, ainda somos mais transparentes. A ideia de comunidade pode tirar-nos dessa transparência. Porque, além disso, estamos sempre a lutar contra inimigos invisíveis.

Sim, é um pouco essa questão do ativismo nos dias de hoje.

Claro. Mas o filme quer mesmo passar essa mensagem: a importância da união. Acho que esse é o ativismo essencial e nem sei se tem de ser sempre uma luta ecológica.

Era isso que queria perguntar: se a luta destas pessoas é pela ecologia ou, antes, pela preservação do seu estilo de vida e do lugar onde vivem?

Acho que é pelas duas coisas. O filme tenta inspirar várias leituras. Também há uma luta pelo cinema. Em certos momentos, queria mesmo passar isso. Como naquele último plano, com o trevo e o som — pensar na relação entre o som diegético e não diegético, e como o fora de campo pode acrescentar significado. Isso acompanhado por um gesto muito austero. O plano dura uns três minutos... queria que o filme dissesse: “Isto também pode ser cinema.” Uma imposição de uma forma de filmar. Que não tenhamos de estar todos formatados. É também uma luta pelo cinema, pela sala de cinema, pela sua forma. Não quero afastar o público de ver filmes na televisão, claro, mas faço filmes para passarem no cinema. E o filme também quer ser uma arma de luta nesse sentido.

Mas voltando, sim, é uma luta ecológica, na medida em que se tenta defender um estilo de vida. Aquele estilo de vida, naquele lugar. Mas é também uma luta pelo cinema, e acho que isso pode inspirar outras lutas. Mostrei o filme noutros contextos, a pessoas confrontadas com projetos que, embora diferentes, também tocam questões ambientais — como a poluição sonora, por exemplo. O que quero dizer é: sozinhos, contamos pouco. E o filme repete isso muitas vezes: “Estávamos sozinhos, apanharam-nos pelas costas...” Temos de nos organizar. Como aquela cena em que se vêem as carrinhas e o tipo lá em cima desce e forma-se a aldeia: as pessoas começam a falar, a organizar-se. É essa ideia de que precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas.

Estamos cada vez mais sozinhos, e parece que, em vez de nos ajudarmos uns aos outros, andamos a puxar uns para baixo.

Sobre essa questão do “inimigo invisível”, até porque recusas filmar o “inimigo”, digamos assim, deste povoado. Temos aquela carrinha branca, obviamente… mas não passa disso. Porquê esta decisão?

Não estava interessado nele, apenas nas pessoas que o ‘combatiam’, como também queria transmitir algo, por exemplo, podes estar descontente com certas políticas culturais, mas tu nunca chegas ao Ministro da Cultura.

Exato. Ou seja, há uma sensação de impotência.

Exatamente, uma impotência real. Estamos constantemente a ser confrontados com essa impotência, com a impossibilidade de ver, de tocar o inimigo. “Inimigo” no sentido das pessoas que estão sempre a impor decisões. Não são auto-imposições, são imposições externas. É essa impotência constante que acho que o filme quer mostrar. Muita gente não entende isso. Ficam frustrados por não “verem” o vilão. Mas essa é precisamente a proposta do filme. Poderia filmar a Savannah, claro. O Frederico, por exemplo, não filma os tipos a abrir buracos. Eu também não filmo isso. Não me interessa. O que me interessava era mostrar como é que as pessoas vivem com isso.

Para referência, estás a falar do Frederico Lobo?

Sim, mas atenção, o filme dele [“Quando a Terra Foge”] é outra coisa. 

Voltando à questão da impotência — e agora passando também para o cinema como tema — deixa-me perguntar-te isto, só para esclarecer: este teu filme não foi apoiado pelo ICA?

Não, não.

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Era só isso que queria confirmar. Porque falas disto também como sendo um filme sobre cinema e quando trazes à luz estes temas da impotência, isso não é também uma impotência enquanto cineasta?

Epá, tem sido. Tem sido muito difícil. Não sei bem o que dizer mais... mas tem sido mesmo difícil. Não sei se é inglório, mas sim, difícil. É um problema geral em Portugal. Quer dizer, são três filmes estreados em sala [dia 24 estreia em sala além de “Savana e a Montanha”, “O Palácio de Cidadãos” de Rui Pires e “Camarada Cunhal” de Sérgio Graciano], um percurso longo, muitos projetos cuidados… Mas no fundo, não há muito mais que possa fazer. Só posso continuar a fazer filmes.

E falando nisso, do “só posso continuar a fazer filmes”, como vai esse projeto de detectives em Cabo Verde?

Está quase pronto... ou mais ou menos pronto. Considera-se.

A minha parte está feita, agora é tentar perceber como é que vai ser. É tentar perceber onde é que o filme pode estrear... sei lá, seguir o processo normal. Mas as coisas estão cada vez mais difíceis. Em tudo. O cinema está a transformar-se noutra coisa. Quando em 1993 … foi aí que passou o “Vale Abraão” [de Manoel de Oliveira], não foi?

Sim, correcto, em ‘93.

Naquela altura, as pessoas iam ao “Vale Abrãao” e achavam aquilo uma obra tremenda. Hoje em dia, ninguém aguenta mais um plano acima dos 15 segundos. É complicado. Ou seja, já não estás a trabalhar numa coisa complexa. Está mesmo difícil. Concordo que o cinema se democratize — mas não é essa a questão. É cada vez mais difícil porque vivemos nesta cultura digital, de toque, de estímulo rápido, dos 5 segundos. Claro que também temos de nos adaptar. Hoje em dia, as redes sociais influenciam muito a produção dos filmes, e nós acabamos por nos adaptar. Mas esta cultura digital, em que estamos constantemente a ser bombardeados com imagens, com som, com essa facilidade toda, está a fazer com que os jovens, que ainda são um dos grandes públicos do cinema, tenham cada vez menos interesse em ir à sala. Quando fazes cinema para sala, começas a perceber que tudo se está a afunilar.

Tenho notado isso cada vez mais. Até estudantes de cinema me dizem que já não vão ao cinema.

Pois. Tens pessoal que anda aí em cursos de cinema e que não põe os pés numa sala. Como é que é possível? Mas o problema é deles. Eles é que perdem. Porque ver um filme assim, numa sala, é completamente diferente. É outra coisa. 

Para trazermos aquele tema recorrente das nossas conversas: o “cinema de rua”. Como disseste uma vez, o cinema com “sangue na guelra”. Porque quando se fala de “cinema de rua”, pensa-se logo numa abordagem estética muito concreta — o cinema espontâneo, do momento, uma coisa quase documental, quase crua. Mas como disseste e bem, ninguém hoje aguenta um plano de sete minutos, e ao ver os teus filmes, especialmente este, algo que me saltou à vista no visionamento foi: “ele sabe onde pôr o tripé”. Ele sabe quando e onde deve estabilizar uma câmara. Ou seja, há uma certa escola, uma certa “old school” na tua forma de filmar — de pensar as imagens — mas, ao mesmo tempo, consegues ser moderno, encaixar nesta vaga do cinema mais espontâneo e realista, talvez muito marcado pelo digital.

Foi bonito ter lido a entrevista entre o André Gil Mata e o Vasco Câmara — e ele [Gil Mata] tem toda a razão quando diz: talvez se não fosse o Oliveira, nós não estivéssemos aqui a fazer filmes para cinema. Há uma herança portuguesa, mas não só, também uma certa seriedade no ato de fazer cinema. E é essa seriedade que respeito muito — na ideia de filmar, no olhar para o ato de filmar. Isso também passa para a forma como filmo.

Mas ao mesmo tempo, o filme se liberta disso. Não porque queira necessariamente libertar-se, mas porque acompanha a minha forma de estar, a minha maneira de trabalhar com as pessoas. Essa forma precisava desse lado mais ... espontâneo. Não no sentido de “documentário”, mas espontâneo no sentido de leveza, de mobilidade da câmara, de poder adaptar-se às circunstâncias. Porque muitas das pessoas tinham o tempo contado e quando há pouco tempo, tens de inventar vários planos dentro de um único plano, e aí, a câmara tem de ser mais “enxuta”, no sentido de se poder mover, de acompanhar mais ações dentro do mesmo enquadramento.

Sim, e acho que o filme distingue-se nesse aspeto dos teus anteriores, precisamente por esse movimento — e também por ir mais para o lado da ficção.

Sim, e por trabalhar com animais, por exemplo, que não se controlam. Isso também foi importante para mim. Sabia que podia usar zooms, criar vários enquadramentos, mas desta vez usei mais o movimento da própria câmara.

E isso ajuda, porque os animais não se coreografam. Nós não tínhamos treinadores, nem me interessava ter. Não é isso que procuro. A câmara, nesse processo, acaba por se libertar de uma certa “muleta”, que é filmar tudo muito fixo. Claro que ainda há planos fixos, muitos até, mas há também esse movimento. É um desafio.

É isso que me leva a fazer filmes — desafiar-me. Não só na narrativa, mas também na forma e nas fórmulas. Tento sair daquilo que tenho vindo a fazer. Cada filme é um desafio e cada território obriga a encontrar uma nova fórmula para filmar. Porque os filmes são sobre os territórios.

Sobre os territórios, exatamente. Parece-me uma ideia muito Raul Ruiz.

Sim, os filmes são todos sobre o lugar. Há uma ligação muito forte ao território. Isso, para mim, é fundamental. A câmara também tem de respeitar isso. Tem de se adaptar.

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E agora, à terceira longa-metragem... já te consegues ver enquanto cineasta? Que tipo de cineasta és tu?

Não sei se isso quer dizer muito. “Que tipo de cineasta”? Sou um tipo com duas pernas. [risos] Sei lá, faço os meus filmes. É para isso que estou aqui.

O que é que é “ser cineasta”? Gostei dessa pergunta.

Será que interessa esse título? Ser cineasta? Não sei... É tudo tão frágil. Continua a ser frágil. É difícil. É como tu, que escreves — sentes isso na pele também. Tudo é tão precário e pensar nessa ideia de cineasta enquanto figura... 

O mais importante é continuar a trabalhar. Fazer filmes. Porque aquela ideia da “obra do artista” está a desaparecer, pelo menos em Portugal. Acho que estamos a ir por esse caminho. Cada vez mais. O artista já não é o “autor”, é um fazedor. Alguém que tenta dominar os meios, que são sempre escassos.

É esse cinema que tem sobrevivido: o da reinvenção. Procurar outras formas, outras portas, mesmo que ‘pequeninas’ e mais arcaicas. Se se quer filmar com frequência, já nem interessa tanto filmar “bem” — interessa filmar com urgência. Com sentido. Ter algo a dizer. Não andar à procura de histórias para contar, mas sim ter mesmo algo para dizer.

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

"Não é um filme sobre carros, é um filme com carros", Paulo Carneiro guia-nos pela "Via Norte"

Hugo Gomes, 22.01.24

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"Périphérique Nord" (2022)

À segunda longa-metragem e ao segundo encontro, Paulo Carneiro mantém-se motivado em presentear-nos com o seu cinema, a sua ideia, a sua concepção, para a qual não existe pessoa melhor para a explicar do que ele próprio. Mas voltando ao filme, depois da sua autodescoberta em "Bostofrio", segue para a Suíça ao encontro de uma comunidade lusa de emigrantes, cujo carro é a respetiva catedral, um altar à sua identidade, ao seu jeito memorialista de "ser português". O realizador frisa constantemente para que não nos deixemos levar ao engano; "Via Norte" ("Périphérique Nord") não é um "filme sobre carros", é um "filme com carros", no qual as viaturas são atalhos ao que realmente mais importa no cinema de Carneiro, que é aproximar pessoas.

Numa nova conversa, com novos temas, mas rodando os anteriormente mencionados tópicos, Paulo Carneiro disponibilizou o seu tempo para nos falar de "Via Norte", do cinema "que lhe dá na telha", sobre emigração e identidade portuguesa, e do seu próximo filme, "A Savana e a Montanha".

Avanço com a questão-base, como surgiu a ideia para a sua segunda longa-metragem?

Geralmente, a temática dos meus filmes – refiro-me "os meus filmes" porque, bem, estou a concluir outro, neste momento - é fruto de processos muito orgânicos. Ou seja, não ando à procura de ideias; elas vão surgindo porque alguém menciona algo, e a partir daí encontro algo muito pessoal nelas. Aqui, na verdade, faz parte de um imaginário infantil. Na aldeia dos meus pais, a minha mãe na Beira Baixa e o meu pai em Trás-os-Montes, em Bostofrio, onde realizei o meu primeiro filme, em criança, via a chegada dos emigrantes, acompanhados pelos os seus grandes carros. Ficava ali especado, a observá-los, porque talvez eles me transmitissem algo. Este fascínio também era responsabilidade do meu pai, visto que sempre gostou de carros; já trocou imensas vezes e dedicou bastante tempo a isso. Também partilho essa paixão.

Na verdade, havia muito julgamento por parte das pessoas que permaneceram na aldeia em relação aos emigrantes. Mas para mim, emigrar é um ato de coragem e há sempre críticas por parte daqueles que ficaram em relação a eles, que chegavam com grandes carros, alguns modificados e outros não, mas geralmente tinham sempre os veículos a brilhar. Isso intrigava-me, porque eu verdadeiramente apreciava ficar ali como quem visita um museu para ver uma pintura ou uma escultura, ou algo do género. E, de certa maneira, refletindo sobre isso.

Ou seja, é uma coisa imaginária da minha infância que continua presente em mim, e até recordo que, na altura em que “Bostofrio” estreou, várias pessoas comentaram comigo sobre isso, questionando o que se faz depois de realizar um filme na aldeia, meio autobiográfico e assim por diante.

Eu digo: olha, vai-se para a cidade e faz-se um filme à noite, e brinca-se com esta ideia da cultura pop, mas tentando e tentando, sempre indo para um dispositivo formal muito clássico. E, na verdade, é um bocado isso. 

Para mim, era também tentar glorificar a ideia de emigração. Tenho dois tios emigrados, fui viver para a Suíça durante uns tempos para fazer este filme. Pronto. Mas isso é uma situação forçada. Mas efetivamente dou muito valor à emigração porque tenho noção das dificuldades e de várias pessoas que conheço que trabalham no estrangeiro, das dificuldades que é a tua adaptação a uma nova cultura. E é, não me parece nada que faça sentido julgar esta coisa da exibição do carro. Porquê? Porque o carro para mim é como para eles, pelo que percebi no processo deste filme, aquela imagem do caracol que anda com a “casa às costas”, neste o carro é a “casa deles”. Estás a ver que é um símbolo de sucesso? E qual é o problema de se gostar de carro e gostar de exibir um carro? Eu acho que não tem problema nenhum.

A minha leitura do teu cinema, desde "Bostofrio", onde foste à procura de uma memória do teu avô e acabaste sempre por (re)descobrir-te a ti próprio, a tua própria identidade. E aqui também vais buscar um pouco dessa identidade, mas desta vez a identidade portuguesa, através desta conversa com o dono daqueles carros, fala muito, sobretudo, sobre a sua própria identidade espelhada nos respetivos veículos.

Pois, eu acho que é isso! O Kaurismäki também diz isso! Ele diz que o carro é o dono. É uma continuação do dono. Acho que carros que tento mostrar no filme, são fruto da relação dessas pessoas. Elas tentam incutir nas viaturas, modificam à sua maneira, ou seja, a forma como tratam os carros é o espelho delas próprias. Alguém disse que os carros de hoje em dia não têm personalidade, por isso prefere o seu um carro antigo porque reflete a sua personalidade.

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Paulo Carneiro

Acho que este é um filme com carros, mas que não é um filme sobre carros. Serve-se dos carros para falar de outras pessoas, das pessoas e de um amor e de um carinho. E de que forma a máquina pode transpor a personalidade da pessoa? Por vezes as pessoas confundem-se um bocado e ficam com medo de um filme sobre carros. Isso não interessa para nada. Costumo dizer, isto é um filme com carros, não é um filme sobre carros. Pode interessar até mesmo às pessoas que andam de bicicleta.

E tu fazes constantemente essa finta. Abordas as pessoas só para falar sobre o carro e eles acabam por falar sobre a sua própria experiência na Suíça e do que é ser português ou o conceito que têm da questão da imigração. Como sofrem? Quer na Suíça quer em Portugal, porque quando regressam, sentem que não são mais portugueses de alguma maneira, porque todo o ambiente faz com que eles sintam que não são de lá.

Exato, efetivamente, a grande proposta era fazer uma elegia a estas pessoas e criar um filme em que se visse o trabalho, mas que não se filmasse o trabalho, mas que se vê o trabalho no objeto do carro. Não estava interessado em fazer aquele cinema da emigração que fala do trabalho, no sentido de que se filma-o e as suas más condições, etc. Pretendia mostrar um lado diferente e fazer uma espécie de elogio a estas pessoas, uma homenagem até. Do que tenho ouvido, existem pessoas que se irritam com este pessoal que vinha, e que trazia o seu objeto de sucesso - o carro, o seu tesouro - e que fazem as pazes com elas, porque acho que também é um preconceito, é um estereótipo que se criou e que na verdade não é bem assim. E o filme também joga contra esse estereótipo.

Absolutamente, aliás, saliento que até existe uma palavra associada aos regressados, “avecs” penso eu, que é uma maneira de separá-los dos “portugueses que ficaram”. Separar os “contaminados”, culturalmente, dos “puros”.

Quando estás a ver o filme, não sentes um amor por aquelas pessoas e sentes que elas legitimam esse amor pelo carro? Porque o carro também é um objecto de integração. Os que têm carro se juntam num grupo com outras pessoas que têm carro, e assim formam uma comunidade.

A sensação que tenho é que os portugueses quando estão lá fora fortalecem os laços entre uns e outros, porque os que os une é a própria identidade.

Estas pessoas que o filme mostra, se juntam a outras pessoas com carros da mesma forma que cá nós juntamo-nos para ir ver futebol no café ou outro desporto. Na Suíça faz mais frio, e é um ambiente diferente, não se juntam num café, e até a cerveja custa entre 5 a 6 €. 

Mas é isso. Cada pessoa vê no filme o que quiser. No meu ponto de vista, é um filme que se aproxima das pessoas através de outras pessoas.

Mais próximo do final, antes da cena do mercado da Pontinha, que já te questiono, gostaria que me falasse daquela boleia do curdo, os “não-pátria”, os que têm identidade mas que não têm país. Até que ponto encaixas nesta ode identidade portuguesa, o qual têm o seu lugar, Portugal, com as dos curdos que são desprovidos de uma nação?

Comecei a falar com o Abu por mero acaso, não estava planeado integrar o filme. Ele elogiava muito as habilidades dos portugueses, especialmente no que diz respeito à modificação de carros, ou seja, no tuning. A sua entrada simplesmente aconteceu. O Ricardo Leal, diretor de som, que tinha ficado na Suíça, foi apresentar o “Bostofrio” em França, e foi aí que conheceu o Abu. Na altura das apresentações, quando vou falar com ele, e conta que é curdo. Já tinha pressentido qualquer coisa, porque praticamente toda a montagem do filme segue cronológicamente a ordem de que o filme é filmado, por isso é que nota-se a modificação da minha abordagem, como o tipo de perguntas que faço aos entrevistados. O filme é também o processo de construção do próprio filme.

Mas voltando ao Abu, parece que os imigrantes encontram-se numa espécie de limbo. É como disseste, têm uma pátria, mas mesmo assim sentem-se num limbo, sem pátria porque é difícil readaptar em cada regresso. O que o filme faz é criar ali um paralelo, claro que é um paralelo incomparável. Quer dizer, são situações muito diferentes. A nossa relação com a guerra é muito diferente, como a nossa relação com o território. E mais díspar nessa ideia de pátria, porque é o maior povo do mundo que não tem uma pátria. Para mim, o  importante ali, de certa forma, era mostrar esta relação com os carros. Não sei se se percebe no filme que esta relação com os carros e esta forma de integração através deles não são uma marca meramente portuguesa. 

Há também muitos albaneses que têm esta relação, kosovares, e o Abu, que é curdo iraquiano, se bem me engano. 

Chegou a ver o filme?

Nunca vi o filme. Fiquei, entretanto, sem o contacto dele no WhatsApp. Andei na Suíça à procura dele, visto que o filme estreou no Vision du Réel, fui à mercearia, ao trabalho, ao bairro dele e nada. Para mim, era importante mostrar as franjas da sociedade suíça, efetivamente do exterior, pessoas que foram para ali à procura de uma vida melhor, seja por que razão for - no caso dele era exílio político - e que tinha essa relação automobilística. Como também, de certa maneira, mostrar que a imigração portuguesa não era fechada e única. 

Nesse sentido, era importante ele estar lá. Todos nós gostamos de carros, mas nós não fechamos a porta a outras pessoas e comunidades. É esse espírito que pretendo criar ali, nessa viagem que prossigo. Ou a de um português que abre a garagem, e que nasça daí a possibilidade de um filme. É abrirmos as portas uns aos outros e não deixar o filme acabar e  eu acho que não acaba.

Por isso é que a conversa com o Abu dá-se por via de uma boleia, a possibilidade de sermos guiados …

Sim, a do cruzamento, ou seja, isso foi pensado … são detalhes. Esse é o único plano que está em movimento, porque está relacionado com a questão da viagem. Vamos acabar, mas estamos em movimento, porque queria que o dispositivo formal fosse diferente do resto. O início, que é visto como o começo da viagem, e depois, mais tarde, é a primeira vez que vês o dia, o filme maioritariamente passa-se todo durante a noite. E pronto, são formas de tentar sublinhar e destacar esses momentos.

Agora sim, podemos falar do último plano, a do Mercado da Pontinha, que neste preciso momento virou arquivo visto que aquele mercado não existe mais. No seu lugar está um parque de estacionamento.

Agora sim, mas ainda não se sabe o que vai ser realmente aquilo. Os carros ainda não estacionam lá. Tiraram a parte do telheiro, que era onde tinham aquelas mensagens do 25 de Abril, as fotografias do Alfredo Tropa … acho que também tinha as do Eduardo Gageiro, mas não tenho a certeza. Em suma, aquele mercado já não existe.

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"Périphérique Nord" (2022)

Mas sobre esse específico plano, e apesar de termos mencionado o Mercado da Pontinha, que desapareceu, julgo que o grande ponto era o quartel da Pontinha e todo aquele simbolismo do 25 de Abril trazido por esse espaço. E tendo um filme sobre emigração …

E viste bem! Não sei se sabes mas esse quartel virou quartel da GNR, logo também é matéria de arquivo. 

Achava que seria uma referência muito direta, portanto, pensei que não faria sentido incluí-lo no filme. Mas havia mais, mais dois planos, um à entrada do quartel, e outro sob toponímica e referência ao 25 de Abril. Então, pois, mas quer dizer, de certa forma, para te clarificar, no sentido de achar que é um piscar de olho nada direto, porque a imigração que retrato não é uma imigração com essa idade; já são as segundas e terceiras gerações. Mas de certa maneira, é um toque a essa emigração, porque foram os pais deles, um boost inicial da emigração, a partir da década de 50. Para a Suíça começou mais tarde, depois do 25 de Abril

Quero dizer, o meu filme é na Suíça, mas poderia ser no Luxemburgo ou em outro lugar. Ao falar deste filme ao José Vieira, ele dizia-me que não poderia diferenciar as emigrações, que a sua separação era uma mentira. “Imigração só há uma!” Os sentimentos são iguais para todos, sejam dos que vêm do Norte de África, seja da emigração portuguesa para França antes de 74, é igual para toda a gente, independentemente dos traumas de guerra ou não. Percebes aquilo que sentes na relação com o teu país, esta ‘coisa’ de não saber onde pertences.

Para mim, aquela cena é uma referência clara, mas não é uma espécie de libertação. O cinema que me interessa é um cinema que se serve de uma coisa para se expandir para outra. Por isso é que estou neste universo automobilístico, falo dos carros para falar de outros tópicos. Como “Bostofrio”, o qual vou na verdade para me encontrar, para o encontrar, para procurar ou para ir mais fundo na questão da doença da minha avó e fazer uma elegia à minha avó, uma homenagem ao meu pai. Esse é o cinema que me interessa. Se vou falar de uma história de amor, não vou filmar um casal de namorados. Não é isso que procuro no cinema.

Continuas focado na tua demanda pelo “cinema da rua”, o cinema “sangue na guelra”?

Penso que sim. Quando vires o meu próximo filme, vais perceber. É um cinema “bora, bora, ….”. É aquela máxima de todos os filmes que fazes são os filmes que tu viste e que cresceram contigo. Continuo a trabalhar da mesma maneira. Há coisas que posso pensar antes, mas não trabalho com storyboard, isso não me interessa, o que me interessa é chegar ali e perceber o que é. Interessa-me trabalhar com as pessoas que quero, e é essa ideia do “cinema de rua”. É um cinema que te vai dando estímulos atrás de estímulos, e suscitam um brilhantismo como aquele do último plano do “Via Norte”. 

Isso é a minha energia. Sou assim. Eu tenho essa energia e acho que isso é um cinema que me representa, a mim e à minha produtora, a Miguel [de Jesus]. Fazer um cinema espontâneo, que procura mostrar aquilo que somos - nós não procuramos ser aquilo que não somos. Se quiseres chamar isso de “cinema da rua”, penso que também poderá ser alcunhado de “cinema do subúrbio”, porque é uma forma de ver as ‘coisas’ de uma outra perspetiva. Isso se sente. 

Para mim é importante que as pessoas que eu filmo gostem e que consigam vê-lo. É importante para mim, e não é por isso que seja um filme que artisticamente tenha menos valor que outro filme. É trabalho do ritmo, o tempo das ‘coisas’, tudo tem um tempo. Aquela ideia do plano fixo ser entediante, é puramente mentira, porque as pessoas que fizeram o filme, que contribuíram nele ou foram filmadas, viram-o e não tiveram problemas com esses planos. Mas acho que já estamos a ter problemas com esse rótulo de ser um “filme de autor”, mas igualmente popular nas salas de cinema. “Ah, mas eu não tenho público para isto”. O público não é tipo a alta burguesia.

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"Périphérique Nord" (2022)

Continuarás com esse registo no “Savana”, o teu próximo filme? Já agora, fala-me desse projeto.

A Savana e a Montanha” é resumidamente um “filme de cowboys”. O montador de som lá do Uruguai diz que é um “western social”. Vou adotar essa perspetiva. [risos] 

Na verdade, foi um filme pedido. Foi filmado em Covas do Barroso, que está a cerca de cinco quilómetros de Bostofrio, de onde surgiu a especulação sobre a maior mina de lítio da Europa. O que saiu foi um documentário muito derrotista, e não era isso que pretendia.

Demorou três anos a ser filmado, mas como não gostei do resultado, e que vai contra o espírito daquelas pessoas - “A gente dos Trás-dos-Montes não é assim!” - decidi fazer outra ‘coisa’. “A Savana e a Montanha” é um filme de intervenção sem ser um filme de intervenção, que se assume na pele de um “filme de cowboys”, o qual mostra a organização do povo contra uma grande multinacional. O lado documental está preservado, com a ficção inspirada na própria vida das pessoas e cujos diálogos são escritos em colaboração com eles.

Também posso dizer que neste filme, eu não entro em cena. 

Na nossa última entrevista declaraste que não te vias a fazer ficção, porque a ideia de dirigir atores não era a tua vontade. 

Não são atores, são não-atores. Foi difícil, mas ao mesmo tempo já tínhamos uma relação de confiança com estas pessoas porque estávamos a filmar o documentário. A ficção foi uma maneira de mostrar a força deles, porque é inspirado nas suas histórias. São eles próprios a fazer deles mesmos. 

E já o meu o meu outro filme, o de Cabo Verde, é um filme de detetives … [risos]

Mas quanto ao lado western de “A Savana’”, não será algo à lá Ennio Morricone, nem nada dessas fantochadas, será uma ‘coisa’ desconstruída, filmado a 16mm e em película.

Rotações por minuto em coração português ... ou como Paulo Carneiro nos aproximou da nossa identidade

Hugo Gomes, 09.05.22

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Aviso à navegação: isto não é um filme sobre "tunning" ...

À segunda longa-metragem, Paulo Carneiro mantém-se fiel ao seu processo de utilização dos objetos-estudos como pretexto para abordar um alvo latente. O mesmo procedimento no qual “capturou” a aldeia transmontana que faz do título do seu anterior filme - Bostofrio (2018) - uma busca dos restos memorialistas do seu avô e por sua vez redescobrir-se como garantia desse desenvolvimento.

Desta forma nasceu "Périphérique Nord” (“Via Norte”), cujo alvo transferiu-se para os automóveis, ora alterados, ora modelados à imagem do seu condutor, o património acarinhado por imensos imigrantes portugueses, essa paixão pela máquina que cobre todo um desejo de decifrar a condição desses “afastados da terra-mãe”. Tal como “Bostofrio”, Carneiro estabelece um filme expositivo quanto à sua própria construção (“os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”, parafraseando Jacques Rivette) surgindo em cena e assumindo como protagonista perante os entrevistados, grande parte deles filmados em planos gerais que reforçam um tom de “cinema verité”.

Porém, é também essa “fratura exposta” que o filme ostenta um lado aparentemente desajeitado como se estivesse em plena improvisação, intercalando com os momentos noturnos rompidos pelas luzes dominantes dos néons ou da iluminação que assinala a “presença” da bomba isolada, à lá Edward Hopper, o qual o realizador estabelece como paragem para uma segunda fase da sua demanda. São histórias que conhecemos, e como tal, a empatia é automaticamente instalada, pregando a fundo pela panóplia de sentimentos vividos por estes portugueses longe de casa, que invejam a terra que os viu nascer (e que em certos casos os renegam), e que tudo fazem para saírem sucedidos em relação aos seus sacrifícios. No fundo, Paulo Carneiro viabiliza a nossa “Portugalidade”, a identidade exaltada oriunda de um país isento de qualquer força-motora para desafiar o restante Mundo, da mesma forma, como tal repara, os Curdos, os sem-pátria, prevalecendo um feixe identitário, o património que lhes resta. O realizador faz esse paralelismo em um diálogo cuidadoso e simples como qualquer conversa de boleia, aliás, boleia essa que o guiará para o ponto de partida.

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Périphérique Nord (Paulo Carneiro, 2022)

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Gas (Edward Hopper, 1940) Pintura

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Fotografia de Graham Miller

E é então que entramos naquele último plano: o mercado da Pontinha deixado à sua mercê no breu da noite, cartazes sobre uma Revolução passada e de heróis hoje imortalizados como símbolos de uma liberdade com promessas de unir sobreviventes de um regime e "desertores" adornam a cobertura desse espaço. A câmara prossegue o seu agendado travelling, revelando, escondido em fora-do-campo e num “know-how” antonioniano (não pude deixar de pensar naquela façanha de Jack Nicholson em “Professione: Reporter”, o flashback integrado que resgata o travelling para além da mera ostentação, do artifício) uma viatura “quitada” num pensado “pião” que desfaz o silêncio até então inviolável.

É exatamente no momento em que antecede aos créditos finais que a avaliação pesa nestes ditos “novos autores do cinema português”, se por um lado Ico Costa falhou na sua primeira longa’ (“Alva”, em 2019), Paulo Carneiro acerta na “mouche”, resumindo a sua jornada numa só cena. O 25 de Abril e a liberdade de fuga representado nos venerados símbolos, o Portugal “vazio” figurado no mercado “abandonado” e o objeto-estudo no qual se esconde esse orgulho lusitano preste a “libertar-se” das suas amarras. As imagens são a língua própria do cinema e o realizador sabe bem disso.

Em 2018, apontei Paulo Carneiro como um dos nomes promissores do nosso cinema, ao segundo filme mantenho posição.

Lá para "Bostofrio", para além da memória

Hugo Gomes, 08.11.19

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As figuras alinham-se perante o horizonte paisagístico da aldeia de Bostofrio. O céu recorta o relevo montanhoso despido de qualquer indício de Humanidade; as vozes vindas deste mesmo coletivo amontoam-se; um eco intruja-se nessa sonoridade até se desvanecer no tempo. Tempo esse que Paulo Carneiro, que até então tinha exercido o cargo de assistente de realização e a estreia a solo numa curta / making of de uma das suas colaborações com João Viana (“A Batalha de Tabatô”), vasculha por todo o território deste pequeno ponto no mapa transmontano.

O pretexto é simples: a procura de uma identidade de um dos desconhecidos da sua sina – o avô. Mas sob esse trabalho de campo, uma investigação por entre narrativas e mais que narrativas, existe a clara afirmação de um realizador emancipado, que aproveita o jogo deixado por muitos para implementar as suas próprias regras. Como já parece ser hábito, ou quase praxe dos formandos cinematográficos, o meio rural tem sido uma peregrinação bucólica e plebeia na sua imagética.

Paulo Carneiro através de um território comum provoca uma insurreição alicerçada no seu rigor técnico, isto enquanto joga-se pela exposição, quer a nível de “know-how“, quer a nível sentimental. Sem medo de desvendar a sua face sensível, assumindo-se como um “infiltrado” na ilusão do seu Cinema, o realizador e protagonista identifica-se como um “one-man-show“; o investigador como o caso de estudo, descortinando preconceitos e explorando o secretismo de uma comunidade propícia a tal.

Em Paulo Carneiro encontramos ares de António Reis e Margarida Cordeiro, previsivelmente as suas demandas pelas terras transmontanas e ao mesmo tempo pelo documentário intimista com rasgos para cometer as suas ilusões. Mas dentro dessas mesmas sugestões, que funcionam como uma aura que espreita e pressente e da exposição que o realizador não possui problemas de “exibir”, o filme encerra-se na sua própria dignidade, até porque Carneiro faz um Cinema seu, a ser partilhado por todos, mas sobretudo a ser abraçado e acarinhado pelo próprio.

Obviamente, encontramos aqui razões para sorrir perante a simplicidade do registo, e não devemos com isso menosprezar o gesto. Dentro do dito documentário luso, a sua contenção, o seu foco no tema e o sentimento, valorizam-no perante muitos desta mesma colheita. Como escreveu certa vez Jacques Rancière, e o qual não canso em citar: “o cinema é arte do sensível“. E há sensibilidade nos cantos remotos de Bostofrio.

Atrás do "cinema de rua", atrás do cinema com "sangue na guelra". Uma conversa com Paulo Carneiro e o seu "Bostofrio"

Hugo Gomes, 03.11.19

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Paulo Carneiro foi assistente de realização e montador de alguns dos filmes de João Viana (“A Batalha de Tabatô”, “Our Madness”), tendo se estreado na realização com a curta “Água para Tabatô”, a qual expunha a rodagem de um dos filmes de Viana. Segundo consta, foi depois da produção de “Our Madness” que Paulo Carneiro, com uma equipa bem reduzida e um orçamento limitado, parte para a terra que acolhera a sua génesis, para iniciar genuinamente o seu percurso pelo Cinema. É lá que procura as informações do seu mais conhecido desconhecido. Simultaneamente, emancipa-se enquanto pessoa e cineasta.

Bostofrio” atenta-nos como um pequeno filme que revela um nome a reter nas aventuras e desventuras do documentário português, e não só. Tive o prazer de conversar com Paulo Carneiro sobre as suas ideias de cinema, ouvindo atentamente às suas declarações do chamado “cinema da rua”.

Deixa-me começar pela pergunta básica e revista. Como surgiu a ideia para este “Bostofrio”? Porquê a escolha da demanda pelo paradeiro do seu avô para o primeiro filme?

O que dá mote ao filme existe antes de existir o Cinema na minha vida. Por que no fundo, os meus filmes são sobre questões que tenho na minha cabeça e que me concedem a mim. No fundo, sempre quis saber do meu avô. Perguntava constantemente por ele, mas o meu pai simplesmente não queria falar disso. Era um tema sensível na minha família e compreende-se. E se o meu pai não respondia às minhas questões, encontrei no Cinema uma forma de as responder.

A todos nós importa conhecer as nossas raízes, a nossa identidade. O Serge Daney tem uma citação curiosa, ele dizia que no Cinema toda a gente anda à procura do pai.

Mas no fundo, esta procura por conhecer mais sobre o seu avô é um pretexto para conhecer mais sobre si?

Completamente. Apesar do mundo servir-se do Cinema para isso. Eu próprio tive a ideia de criar com este primeiro filme uma identidade. O que acontece é que no Cinema estão sempre a pôr-nos em caixas, mas eu não quero estar dentro de uma caixa. Há a caixa da “Escola de Cinema”, a caixa dos “Alunos do Paulo Rocha” ou a caixa dos “Alunos do António Reis”. Estão sempre a colocar essas questões … No fundo, o que quero ser é apenas “eu”.

O que pretendo realmente fazer é “cinema da rua“. Atenção, não é cinema que tenta passar por “cinema da rua“. Quero fazer o cinema que me dá na telha. O Cinema com sangue na guelra, com uma força. Não o Cinema hipócrita, não o que tenta falsear, mas o que assume o que é.

Nessa questão das “caixas”, e por ter trabalhado diversas vezes com o João Viana como assistente de realização, não o vemos inserido numa secção de “Alunos do João Viana”?

Julgo que não. Não sei se os espectadores irão ver algo de João Viana no meu filme, mas não é a minha intenção. Atenção, acredito que os filmes que tu fazes são os filmes que vês e os livros que lês, ou seja, pode existir alguma influência pelo facto de trabalharmos juntos, mas não foi o João Viana que me ensinou a fazer filmes.

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Quer falar-nos mais sobre esse “Cinema de Rua”? O que realmente pretende ao afirmar isso?

O “cinema de rua” é um statement, não é propriamente um cinema filmado no espaço urbano. É um cinema de vontades, um cinema de gestos. É um cinema que afirma aquilo que sou (…) É um cinema que não é sonso, no sentido em que penso na sua própria feitura, nos próprios métodos de produção e não a quem devo agradar.

Existem muitos realizadores que aproveitam a estadia no meio rural para filmar os seus filmes, e por vezes encontramos neles uma espécie de técnica desengonçada. Em "Bostofrio'', por outro lado, o Paulo possui um certo rigor no plano e no que quer realmente mostrar ao espectador.

Sim, é rural, é bonito.” [ironiza]. Eu conheço aquela localidade, passei imensas férias lá quando era pequeno e tudo aquilo o qual chamamos de rural, por exemplo, o campo, as vacas, etc., nada disso me deslumbra. No meu filme existe um romantismo, mas não um deslumbramento, nem sequer uma tentativa de romantizar a aldeia. Aquilo é assim, as pessoas são assim, mas não é “sujo” como muitos anseiam mostrar nessas romarias ao meio rural. E quando refiro a “sujo”, menciono aquele lado desengonçado.

Conheço aquelas pessoas e senti-me no meu dever de fazer um filme verdadeiro, achando que deveria glorificar aquelas pessoas. Agora, se consegui ou não, isso já não sei. O que não queria era assumir aquela atitude de: “vamos filmar na aldeia porque na aldeia é que é bonito“.

Acerca do processo de filmagem? Filmaram muito material? Se sim, como o selecionaram?

Nada era planeado. As primeiras reações das pessoas quando as encarava com as questões do meu avô são precisamente as que vês em "Bostofrio''. Claro que primeiro informava as pessoas que estava a fazer um filme. Eu sabia que me interessava filmar daquela maneira e era dessa maneira que prosseguia. No outro dia, perguntaram-me o facto de estarem creditados quatro montadores e qual seria a relação com eles? O facto de estarem quatro montadores tem a ver com as características de cada um. Este não foi um filme resolvido na montagem. Aliás, era impossível este filme ser resolvido na montagem. Ele deve ser previamente montado na tua cabeça. Não há soluções, não se filmam soluções.

Isto tudo para dizer que há pouco material de filmagem. “Bostofrio” foi filmado, cerca de 80%, por ordem cronológica. Sabia que era um risco, mas queria respeitar a cronologia das conversas de forma a preservar a sua evolução. “Cada conto acrescenta um ponto”. Mesmo para mim, esse seguimento é parte do meu próprio processo.

O meu filme é muito objetivo, muito formal, e sendo montador tenho medo de filmar muito. [risos] Porque mete medo. Imagina filmar 200 horas! Às vezes aparecem realizadores com 100 horas e tu [montador] tens que visionar tudo. [risos]. O truque é conhecer e perceber muito bem o espaço antes de começar a filmá-lo, para depois chegares e saberes enquadrar. Para mim é importante esta ideia de não ter medo de onde meter a câmara. O Oliveira dizia isso mesmo: “para cada plano existe um ponto de vista”.

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Mas voltando ao rigor técnico que menciona, para além dos planos e enquadramentos pensados, existe em Bostofrio um certo lado nu, uma exposição do processo de rodagem?

Porque não há medo de mostrar a imperfeição. Ou seja, há um formalismo técnico, mas não há nenhum problema com a imperfeição.

Nesse sentido, pensa em seguir a ficção?

Sinceramente, não digo nunca, mas para já não me vejo a fazer ficção. O meu problema com a ficção é dirigir atores. Lidar com atores é complicado e isso não me interessa e para já não tenho esse fetiche; o de encenar; o de trabalhar com eles.

Quanto a novos projetos, pensa continuar por este cinema pessoal?

O meu próximo projeto é também ele pessoal e já vai em fase avançada na montagem. O que posso dizer é que é um filme sobre carros. [risos] Calma, será um filme que usará os carros para falar de outras coisas, assim como em "Bostofrio'' usei o pretexto do meu avô para referir outra coisa.

Penso que este filme será menos consensual que o “Bostofrio”, pois, darei ênfase à minha causa do “cinema da rua”. Deixe-me só frisar: é o cinema que está à flor-da-pele, mas não está relacionado com a criminalidade.