Paulo Carneiro: "precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas". Uma luta por Covas do Barroso e pelo cinema.
Rezam lendas e histórias de aura autoral, que é ao terceiro filme que um realizador se afirma no tipo de cineasta que pretende ser. Para Paulo Carneiro, porém, a questão é mais profunda do que simplesmente ser cineasta e de que tipo, colocando antes a interrogação essencial: o que é um cineasta? Sobretudo nos tempos que correm, em que a aceleração do nosso mundo se faz sentir em todas as esferas. Contra os malefícios dessas mudanças repentinas, resta o activismo, a luta, a câmara — como arma, como poder, mas também como aliada. Em Covas do Barroso, a poucos quilómetros de Bostofrio, onde Carneiro e as suas memórias inscreveram a sua primeira longa-metragem, encontrou uma população disposta ao combate contra um inimigo poderoso e multinacional: a Savanna Resources Inc., empresa britânica com intenções de explorar o lítio naquele território. Paulo Carneiro uniu-se a este povo, a esta aldeia, ergueu a bandeira do companheirismo e registou o seu duelo ao pôr-do-sol.
“A Savana e a Montanha”, depois de uma passagem pela Quinzena dos Realizadores no ano passado, chega às vésperas do 25 de Abril — sem coincidências… O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre o filme, sobre a resistência do cinema e, voltando ao ponto de partida, sobre o que é ser cineasta com “sangue na guelra”.
Começo por recordar que, na nossa última conversa, referiste que este filme surgiu a partir de outro projecto no qual trabalhaste durante três anos, mas cujo resultado final não te agradou, levando-te a regressar a Covas do Barroso e a desenvolver este “A Savana e a Montanha”. Que filme era esse? O que procuravas inicialmente nessa obra para, ainda assim, sentires que não estavas satisfeito com o que tinhas alcançado?
Um pouco dos outros filmes, mas com um engenho novo, um efeito especial. É complicado explicar agora, mas havia uma novidade na forma — nova no sentido do que vinha antes. Acho isso importante. Já não queria filmar da mesma maneira. Obviamente, nunca se colocou a hipótese de, do ponto de vista formal, filmar algo académico. Isso não interessa, não é desafiante, não acrescenta nada, e acho que, quando nos divorciamos da forma e trabalhamos apenas o tema, a história, parece-me que é menos cinema. É quase uma batota. Percebi rapidamente que o caminho não era esse … a que tinha proposto inicialmente.
Porque sentia que, no filme, o olhar da câmara, o gesto cinematográfico, não captava a força das pessoas. Era preciso encontrar um dispositivo para que essa força fosse sentida. Essa ideia do épico, que vem deles também, dessa ironia do Carnaval, ajudou. A mise-en-scène dialogada, tudo coreografado, permitiu que a câmara se posicionasse de forma a que as pessoas estivessem em relação a ela como queria que os espectadores as vissem.
Recordo que referiste também que o teu montador de som apelidou esta tua obra de “western social” … Portanto, quando foste atrás do olhar destas pessoas, optaste pelo género western para poderes, vou usar a expressão, injetar no teu filme as idiossincrasias do género. Aliás, faço a questão de outra maneira: o porquê do western? Ou é o género que mais se identifica com a questão do ativismo que queres trazer para o teu filme?
Não, e sabes porquê? Como havia dito, ia acontecer este desfile de Carnaval, e o que acontece é que observo os preparativos e depois a cerimónia dou-me de caras com todo aquele festim de cowboys e índios. Aliás, gosto do western, mas não sou um obcecado, não tenho essa coisa do cinema de género, nem do género drama, se quiseres, ou o género documental. Não tenho isso. Gosto de cinema, isso é o que me importa. Foi então que percebi isso, que ia haver este desfile, e peguei no tema e trouxe-o ao expoente máximo, no sentido de que a própria forma como a câmara se desloca, a ideia dos duelos, etc. Fazer um pouco esse jogo com o género, e, ao mesmo tempo, perceber que, com esta coisa do género, há uma relação muito próxima — não, muito longínqua — das pessoas com o que é fazer cinema em Portugal. Ponto.
Nos anos 80 e 90, na televisão, os filmes que as pessoas viam eram sobretudo westerns, muitos filmes norte-americanos, aquele cinema que ainda não era o dos planos de dois segundos, e, automaticamente, usando as ferramentas desse género, eles sentiam que estavam a fazer cinema. Havia também um lado social no próprio ato de fazer o filme, como o ativismo de luta.
O próprio filme, a própria ideia de rodagem, de feitura do filme, conseguia, de certa forma, abstrair-nos daquilo que se estava a passar. Então, o filme tem esse lado social. Era quase como se estivéssemos a fazer um filme e a ouvir-nos, ao invés de irmos ao principal e filmarmos diretamente. Não queria tanto exagerar, e a coisa do género, esta coisa inteira, divertia as pessoas. Era uma maneira de conseguirmos trazer as pessoas para o coração do filme. No sentido de estarem a participarem nele, de ser também um filme deles.
Paulo Carneiro
É uma forma de trazer o filme, não apenas para estas pessoas, mas para o público e igualmente direcioná-los para esta causa?
Gostava, mas é muito difícil saber isso. Mas era bom que fosse. Daí também a questão do musical, este surgiu porque percebemos - quer dizer, basta olhar para a história - que houve momentos-chave, como na madrugada de Abril, com músicas, cenas … Toda essa carga histórica mostra que, através do entretenimento, da música, também se pode fazer política.
Sim, sim. Aliás, o Rui Simões diz algo como: “Todo o cinema é político, e o cinema de entretenimento também é político”
Pois, não sei se concordo totalmente, talvez daqui a 30 anos, quem sabe.
Mas sobre esse ativismo, esse lado de luta… há um certo zeitgeist no filme. Primeiro, porque estreia um dia antes do 25 de Abril. Foi uma data escolhida por ti?
Sim, havia outras datas possíveis, mas acho que a simbologia da data tem a ver com a proposta do filme. Fica ali bem, faz sentido.
Também senti isso. No “Via Norte”, no último plano em frente ao quartel da Pontinha, já havia uma porta aberta para toda essa simbologia. E por outro lado, o filme surge num bom timing — hoje fala-se imenso sobre as tarifas, a comercialização, a mineração na Europa e na América, especialmente com todo aquele clima político nos Estados Unidos. Questões ambientais, e o teu filme mexe com essa nova água.
Sim. Acho que é um filme que, como disse outro dia, quer tirar-nos da impotência política. Mas acima de tudo, não é um filme de números, de dados, nem sequer explicita qual é a dimensão das ambições da empresa. Isso foi intencional. O que me importava era esta ideia de que, sozinhos, não contamos. Se não houver um sentido de grupo, de comunidade, não se tem força. Estamos sempre a lutar contra algo invisível. Se formos só indivíduos, ainda somos mais transparentes. A ideia de comunidade pode tirar-nos dessa transparência. Porque, além disso, estamos sempre a lutar contra inimigos invisíveis.
Sim, é um pouco essa questão do ativismo nos dias de hoje.
Claro. Mas o filme quer mesmo passar essa mensagem: a importância da união. Acho que esse é o ativismo essencial e nem sei se tem de ser sempre uma luta ecológica.
Era isso que queria perguntar: se a luta destas pessoas é pela ecologia ou, antes, pela preservação do seu estilo de vida e do lugar onde vivem?
Acho que é pelas duas coisas. O filme tenta inspirar várias leituras. Também há uma luta pelo cinema. Em certos momentos, queria mesmo passar isso. Como naquele último plano, com o trevo e o som — pensar na relação entre o som diegético e não diegético, e como o fora de campo pode acrescentar significado. Isso acompanhado por um gesto muito austero. O plano dura uns três minutos... queria que o filme dissesse: “Isto também pode ser cinema.” Uma imposição de uma forma de filmar. Que não tenhamos de estar todos formatados. É também uma luta pelo cinema, pela sala de cinema, pela sua forma. Não quero afastar o público de ver filmes na televisão, claro, mas faço filmes para passarem no cinema. E o filme também quer ser uma arma de luta nesse sentido.
Mas voltando, sim, é uma luta ecológica, na medida em que se tenta defender um estilo de vida. Aquele estilo de vida, naquele lugar. Mas é também uma luta pelo cinema, e acho que isso pode inspirar outras lutas. Mostrei o filme noutros contextos, a pessoas confrontadas com projetos que, embora diferentes, também tocam questões ambientais — como a poluição sonora, por exemplo. O que quero dizer é: sozinhos, contamos pouco. E o filme repete isso muitas vezes: “Estávamos sozinhos, apanharam-nos pelas costas...” Temos de nos organizar. Como aquela cena em que se vêem as carrinhas e o tipo lá em cima desce e forma-se a aldeia: as pessoas começam a falar, a organizar-se. É essa ideia de que precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas.
Estamos cada vez mais sozinhos, e parece que, em vez de nos ajudarmos uns aos outros, andamos a puxar uns para baixo.
Sobre essa questão do “inimigo invisível”, até porque recusas filmar o “inimigo”, digamos assim, deste povoado. Temos aquela carrinha branca, obviamente… mas não passa disso. Porquê esta decisão?
Não estava interessado nele, apenas nas pessoas que o ‘combatiam’, como também queria transmitir algo, por exemplo, podes estar descontente com certas políticas culturais, mas tu nunca chegas ao Ministro da Cultura.
Exato. Ou seja, há uma sensação de impotência.
Exatamente, uma impotência real. Estamos constantemente a ser confrontados com essa impotência, com a impossibilidade de ver, de tocar o inimigo. “Inimigo” no sentido das pessoas que estão sempre a impor decisões. Não são auto-imposições, são imposições externas. É essa impotência constante que acho que o filme quer mostrar. Muita gente não entende isso. Ficam frustrados por não “verem” o vilão. Mas essa é precisamente a proposta do filme. Poderia filmar a Savannah, claro. O Frederico, por exemplo, não filma os tipos a abrir buracos. Eu também não filmo isso. Não me interessa. O que me interessava era mostrar como é que as pessoas vivem com isso.
Para referência, estás a falar do Frederico Lobo?
Sim, mas atenção, o filme dele [“Quando a Terra Foge”] é outra coisa.
Voltando à questão da impotência — e agora passando também para o cinema como tema — deixa-me perguntar-te isto, só para esclarecer: este teu filme não foi apoiado pelo ICA?
Não, não.
Era só isso que queria confirmar. Porque falas disto também como sendo um filme sobre cinema e quando trazes à luz estes temas da impotência, isso não é também uma impotência enquanto cineasta?
Epá, tem sido. Tem sido muito difícil. Não sei bem o que dizer mais... mas tem sido mesmo difícil. Não sei se é inglório, mas sim, difícil. É um problema geral em Portugal. Quer dizer, são três filmes estreados em sala [dia 24 estreia em sala além de “Savana e a Montanha”, “O Palácio de Cidadãos” de Rui Pires e “Camarada Cunhal” de Sérgio Graciano], um percurso longo, muitos projetos cuidados… Mas no fundo, não há muito mais que possa fazer. Só posso continuar a fazer filmes.
E falando nisso, do “só posso continuar a fazer filmes”, como vai esse projeto de detectives em Cabo Verde?
Está quase pronto... ou mais ou menos pronto. Considera-se.
A minha parte está feita, agora é tentar perceber como é que vai ser. É tentar perceber onde é que o filme pode estrear... sei lá, seguir o processo normal. Mas as coisas estão cada vez mais difíceis. Em tudo. O cinema está a transformar-se noutra coisa. Quando em 1993 … foi aí que passou o “Vale Abraão” [de Manoel de Oliveira], não foi?
Sim, correcto, em ‘93.
Naquela altura, as pessoas iam ao “Vale Abrãao” e achavam aquilo uma obra tremenda. Hoje em dia, ninguém aguenta mais um plano acima dos 15 segundos. É complicado. Ou seja, já não estás a trabalhar numa coisa complexa. Está mesmo difícil. Concordo que o cinema se democratize — mas não é essa a questão. É cada vez mais difícil porque vivemos nesta cultura digital, de toque, de estímulo rápido, dos 5 segundos. Claro que também temos de nos adaptar. Hoje em dia, as redes sociais influenciam muito a produção dos filmes, e nós acabamos por nos adaptar. Mas esta cultura digital, em que estamos constantemente a ser bombardeados com imagens, com som, com essa facilidade toda, está a fazer com que os jovens, que ainda são um dos grandes públicos do cinema, tenham cada vez menos interesse em ir à sala. Quando fazes cinema para sala, começas a perceber que tudo se está a afunilar.
Tenho notado isso cada vez mais. Até estudantes de cinema me dizem que já não vão ao cinema.
Pois. Tens pessoal que anda aí em cursos de cinema e que não põe os pés numa sala. Como é que é possível? Mas o problema é deles. Eles é que perdem. Porque ver um filme assim, numa sala, é completamente diferente. É outra coisa.
Para trazermos aquele tema recorrente das nossas conversas: o “cinema de rua”. Como disseste uma vez, o cinema com “sangue na guelra”. Porque quando se fala de “cinema de rua”, pensa-se logo numa abordagem estética muito concreta — o cinema espontâneo, do momento, uma coisa quase documental, quase crua. Mas como disseste e bem, ninguém hoje aguenta um plano de sete minutos, e ao ver os teus filmes, especialmente este, algo que me saltou à vista no visionamento foi: “ele sabe onde pôr o tripé”. Ele sabe quando e onde deve estabilizar uma câmara. Ou seja, há uma certa escola, uma certa “old school” na tua forma de filmar — de pensar as imagens — mas, ao mesmo tempo, consegues ser moderno, encaixar nesta vaga do cinema mais espontâneo e realista, talvez muito marcado pelo digital.
Foi bonito ter lido a entrevista entre o André Gil Mata e o Vasco Câmara — e ele [Gil Mata] tem toda a razão quando diz: talvez se não fosse o Oliveira, nós não estivéssemos aqui a fazer filmes para cinema. Há uma herança portuguesa, mas não só, também uma certa seriedade no ato de fazer cinema. E é essa seriedade que respeito muito — na ideia de filmar, no olhar para o ato de filmar. Isso também passa para a forma como filmo.
Mas ao mesmo tempo, o filme se liberta disso. Não porque queira necessariamente libertar-se, mas porque acompanha a minha forma de estar, a minha maneira de trabalhar com as pessoas. Essa forma precisava desse lado mais ... espontâneo. Não no sentido de “documentário”, mas espontâneo no sentido de leveza, de mobilidade da câmara, de poder adaptar-se às circunstâncias. Porque muitas das pessoas tinham o tempo contado e quando há pouco tempo, tens de inventar vários planos dentro de um único plano, e aí, a câmara tem de ser mais “enxuta”, no sentido de se poder mover, de acompanhar mais ações dentro do mesmo enquadramento.
Sim, e acho que o filme distingue-se nesse aspeto dos teus anteriores, precisamente por esse movimento — e também por ir mais para o lado da ficção.
Sim, e por trabalhar com animais, por exemplo, que não se controlam. Isso também foi importante para mim. Sabia que podia usar zooms, criar vários enquadramentos, mas desta vez usei mais o movimento da própria câmara.
E isso ajuda, porque os animais não se coreografam. Nós não tínhamos treinadores, nem me interessava ter. Não é isso que procuro. A câmara, nesse processo, acaba por se libertar de uma certa “muleta”, que é filmar tudo muito fixo. Claro que ainda há planos fixos, muitos até, mas há também esse movimento. É um desafio.
É isso que me leva a fazer filmes — desafiar-me. Não só na narrativa, mas também na forma e nas fórmulas. Tento sair daquilo que tenho vindo a fazer. Cada filme é um desafio e cada território obriga a encontrar uma nova fórmula para filmar. Porque os filmes são sobre os territórios.
Sobre os territórios, exatamente. Parece-me uma ideia muito Raul Ruiz.
Sim, os filmes são todos sobre o lugar. Há uma ligação muito forte ao território. Isso, para mim, é fundamental. A câmara também tem de respeitar isso. Tem de se adaptar.
E agora, à terceira longa-metragem... já te consegues ver enquanto cineasta? Que tipo de cineasta és tu?
Não sei se isso quer dizer muito. “Que tipo de cineasta”? Sou um tipo com duas pernas. [risos] Sei lá, faço os meus filmes. É para isso que estou aqui.
O que é que é “ser cineasta”? Gostei dessa pergunta.
Será que interessa esse título? Ser cineasta? Não sei... É tudo tão frágil. Continua a ser frágil. É difícil. É como tu, que escreves — sentes isso na pele também. Tudo é tão precário e pensar nessa ideia de cineasta enquanto figura...
O mais importante é continuar a trabalhar. Fazer filmes. Porque aquela ideia da “obra do artista” está a desaparecer, pelo menos em Portugal. Acho que estamos a ir por esse caminho. Cada vez mais. O artista já não é o “autor”, é um fazedor. Alguém que tenta dominar os meios, que são sempre escassos.
É esse cinema que tem sobrevivido: o da reinvenção. Procurar outras formas, outras portas, mesmo que ‘pequeninas’ e mais arcaicas. Se se quer filmar com frequência, já nem interessa tanto filmar “bem” — interessa filmar com urgência. Com sentido. Ter algo a dizer. Não andar à procura de histórias para contar, mas sim ter mesmo algo para dizer.