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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Caretos e caretices

Hugo Gomes, 21.09.22

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Não menosprezando a “A Herdade” (2019), filme que por vários momentos parece atingir o teto da cinematografia portuguesa no que requer a contrair uma linguagem universal e intermediário nas duas “facções” (cinema comercial sem a capacidade alarvo-televisiva), é uma obra cuja narrativa corresponde ao formato quase aristotélico. Ou seja, de “A” passa para “B”, com o encaminhamento do “C” [o terceiro e último ato]. Esta equação, que devo salientar nada contra, atribuiu um tom convencional ao trabalho de Tiago Guedes, o que por sua vez não encontramos em muita da sua obra, de “Coisa Ruim” (2005) ao “Entre os Dedos” (2008), da “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019) e, o qual não devemos de todo esquecer, “O Coro dos Amigos” (2014) - essa curta-metragem que nos reservou um dos melhores split-screens do nosso cinema. 

Aqui, nesta nova jornada sob a alçada de Paulo Branco (colaboração que o levou a pisar a passadeira vermelha de Cannes na 'Sessão Especial') seguimos numa aldeia transmontana, de localização indefinida, na pisada de uma tradição pagã. O arranque demonstra esse serpentear por rituais, praxes e hinos à masculinidade tóxica legitimada por estas pregadas “entidades divinas”, um cerco de rapazes com rapazes para rapazes, sustentado por violência e desejo de posse. Este evento assume como a cerne dos homens daquela aldeia, uma herança milenar, um pacto de cuspo e sangue, de pauladas e de máscaras de serapilheira. Porém, a nossa introdução naquele mundo termina num acto de marginalização. 

Dá-se uma elipse, um corte abrupto e vários anos passaram num “ápice”, esses marginais, agora “homens feitos” adquiriram novas faces, e bem conhecidas para nós, aliás. Albano Jerónimo, o outrora latifundiário orgulhoso de “A Herdade” é despromovido a “louco da aldeia” (quase como uma peça vicentina, com direito ao seu lugar na Barca do Paraíso), um errante protegido por uma matilha de cães bravios de nome Laureano. Os seus possíveis amigos? Talvez. Do outro lado, mais bem-sucedido, deparamos com Nuno Lopes, Samuel, a figura-chave, de tom corleonesco, daquele sítio. Dois homens, distintos, unidos por uma tradição passada e que em breve serão confrontados pela mesma, reunidos por um crime, um misterioso “whoddunit” que despertará rituais há muito adormecidos. A hibernação terminou.

Os Restos do Vento” passeia-se num campo de minas, de géneros, bem poderemos dizer, aliciados perante nós como aromas primaveris. Ora o folk horror ali … sente-se … o thriller acolá … reconhece-se o tom … e o policial frustrado … soa quase burla, mas “andiamo”. O resultado é um filme resolvido em dar-nos um “universo” (que palavra tão em voga!) a ser explorado, sugerido e imaginado (que becos esconderá estas ruelas?), tal como fora “Coisa Ruim”, essa panóplia de lendas e de folclore num embrulho de cinema de género, cuja narrativa não parte do facilitismo, é uma criatura disforme, não linear, que simplesmente passeia pela sua mostra de “antiguidades”. Ambas as obras apostam maioritariamente no seu ambiente, ou atmosfera, criando um clima temperado e de fluidez moralista (mesmo em resquícios de ambiguidade quanto aos seus meios). Nesse aspecto, “Os Restos do Vento” afasta-se de “A Herdade”, não ansiando a convencionalidade, o novelesco como parece entender. 

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Digo até, que vamos ao (re)encontro da genuína essência de Guedes, do seu cinema de perguntas, e não de respostas, do seu “storytelling” camuflado na portugalidade (seja rural, seja urbana [“Entre os Dedos”], seja geracional [“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”]), espírito ruminado e pendurado como exibição. Como tal, a história, a sua percepção, é o que menos importa, porque os ditos encontram-se lá, entendidos nos silêncios, nas insinuações, no segredo levado a cabo e porventura decifrado por todos. Por outras palavras, o “whoddunit” que vos falei (“quem matou quem?”) é transcrito para segundo plano, é um elemento instigador da trama, o seu meio, mas nunca o seu derrame, o que interessa é saber de onde esta narrativa vem e para onde vai. Destino? À entrega de uma moral impiedosa. 

Contudo, Tiago Guedes em conformidade com o seu “cúmpliceTiago Gomes Rodrigues, apresentou-nos um argumento nunca cedido ao novelesco, mas que infelizmente trai a sua ideia base - o culto aos “caretos improvisados” como fulcral elemento para a “caçada” - o espectro da violência mundana levado a cabo como quotidiano e sistema de hierarquização. Para essa ligação com a “genese”, faltou-lhe a reencenação da simbologia da mesma, a espinha dorsal vinculada nessa ‘coisa’ de rapazes com os negócios destes agora formados homens. Portanto, a densidade com que esta comunidade rural subjugada a um animado ritual é também ele o nó na corda no clímax do filme. E a prova disso, é a previsibilidade do ato ao invés da sensação de impotência no espectador (caindo no conto do mártir).

É uma outra “festa na aldeia”, retirando o rural da sua ingenuidade ignóbil e ao mesmo tempo não mergulhá-la na selvajaria provinciana. Uma aldeia como tantas outras, onde Lisboa, esse prometido oasis, é adiado por via de tragédias que movimentam a sua obscura História. Novamente, Guedes procurou em “Os Restos do Vento” as “coisas ruins” de um Portugal oculto, sem com isto deixar-se encantar pelos mesmos. Género ou não, é a passagem como rito de emancipação, o filme que reivindica o cinema seu depois do “A Herdade”.

Quem não vê caras, vê corações ...

Hugo Gomes, 21.06.22

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De carreira errática (convém acrescentar que em Portugal são poucos os que filmam com regularidade e facilidade), João Mário Grilo estreia, num espaço de duas semanas, dois filmes nas nossas salas de cinema; o documentário “Vierarpad”, ou será antes “carta de amor” ao vínculo forjado entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, e este seu regresso à ficção - “Campo De Sangue” - adaptação do homónimo romance de Dulce Maria Cardoso. Mas antes de encher-nos com expectativa sobre um retorno em absoluto à cadeira de realização e a frequente direção de projetos, devemos sublinhar a natureza hoje detida por Grilo. Não um mero, mas um professor de cinema, demasiado fascinado à Ordem da mesma, do que inteiramente pela sua desordem. 

Portanto, dispensamos ilusões em encontrar uma produção interiorizada em desafiar os moldes canonizados de um cinema por si envolvido nesse estatuto, “Campo de Sangue” é, sem tirar nem por, um filme construído no prisma de um “professor”, de lições feitas e aplicadas a seguir, desde o seu relato minimalista bressiano até às referências de gestos de outros mestres (a transformação da Fonte Luminosa, por exemplo, numa Fonte Trevi possível). Há muito por onde olhar, mas também há muito por onde se queixar, primeiramente pela sua aproximação ao romance e a passividade para com o seu processo de conversação ao grande ecrã, por outras palavras, a sobre-literalidade da voz off que preenche-nos de palavras aquilo que as imagens nos traduzem independentemente, descrições ao óbvio, retalho de Dulce Maria Cardoso para perfumar ouvidos do espectador. Contudo, é essa vocalização que afasta o trabalho de Grilo no encontro da sua própria voz, um leito de terreno traído, como o bíblico Aceldama, o dito Campo de Sangue de Jerusalém que o filme / livro apropria-se como título, palco do saldo de 30 moedas de prata que fizera Judas Iscariote entregar o seu mestre. 

O realizador não pagou simbolicamente tal quantia, mas entregou de mão beijada a cerne do seu filme para o imaginário emprestado do romance, ao invés de assumir como seu, e é pena que tal aconteça, porque as vistas eram várias. Seja o distanciamento de Carloto Cotta à ação que lhe aufere tão identificado, desesperado e desalinhado protagonista-antagonista, ou a “pinup” Júlia Palha, que por breves segundos, de costas voltadas à ala balnear e de face ocultada à plateia, de ventre entregue ao horizonte longínquo de cor marinha, o objeto-fetichista e de obsessão que o nosso “psicopata” irá materializar em outros cantos, como manda o repertório truffauteano. 

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Pitadas ali e pitadas acolá que resgatam o filme da sua diegese, lentamente como existisse uma resistência maior, e é então que acontece o terceiro ato, o clímax, academicamente falando, a conjugação de todas as pontas. “Campo de Sangue” não delira mas repousa ao lado dessa emanada loucura, ostenta carta-branca a Cotta para transportar o filme noutra dimensão, esgueirando-se entre o físico e o espiritual, a narração, por sua vez, deixa de descrever o projetado e se encanta com o que não é visto, não apenas em fora de campo (de sangue, gostaria de ter feito este trocadilho) e sim, fora do possível campo terreno. A ação intercala em dois estados, em dois tempos, os gestos de um dialogam com os gestos do outro, para no final se consolidar com uma valsa macabra. É neste tido como terceiro ato que “Campo de Sangue” vislumbra o seu norte (e morte), a sua pujança, submissa ao peso dos seus legados, e João Mário Grilo por fim, rasga a pele de pedagogo, e vilipendia o seu sedentarismo, sem com isso romper a estética formal. É pena que o filme não tenha-se configurado todo nessa vertente, poderíamos estar perante na presença num dos grandes do seu rol cinematográfico, ao invés disso, fiquemos pelo exercício do poderia ter sido. 

João Mário Grilo jurou a pé juntos, nas suas notas de intenção, que não pretendia simplesmente adaptar e sim transladar a “vertigem” sentida no romance para o grande ecrã. Infelizmente a vertigem levou-o ao medo de avançar do que impulsivamente à atração pelo vazio.

Perdido ao "KM 224" ...

Hugo Gomes, 20.04.22

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Ana Varela em "KM 224"

Em todas as vezes que António-Pedro Vasconcelos é convidado a discursar, tertuliar ou meramente expressar, paro e ouço com agrado, mesmo que parte daquilo que será eventualmente dito seja posteriormente contestado. Atualmente, mais que nunca, esse lugar cativo é constantemente reservado, até porque APV (carinhosamente abreviado) é um sobrevivente de um tempo que nos é cada vez mais distante. Contudo, existe uma diferença no homem cronista, cinéfilo e com vontade de “queimar as bases” de sensos-comuns cinematográficos (“‘Oito e Meio’ de Fellini marcou o início do fim do cinema de autor europeu, porque foi a primeira vez que um autor colocou o seu nome no título”, uma das suas teses), e no homem por detrás da câmara, e é sobre esse último que vos trago.  

Popularmente conhecido entre o grande público (um dos poucos que responde às “massas" com alguma “dignidade”), APV é um devoto do cinema com que nasceu e cresceu (Hollywood, Neorrealismo Italiano ou Nouvelle Vague), e nisso reflete nas suas intenções ao invés dos seus atos. Por entre ensaios mais felizes que outros (sou dos poucos que defende “Call Girl” como uma subestimada vénia à série B americana), é com “KM 224”, uma espécie de “Kramer vs Kramer” à portuguesa, que notamos esse estrangulamento de referências com uma vontade de agradar “fregueses”. É um cinema que fala e apela aos sentimentos comuns, o qual faz uso das peripécias de um irresponsável pai (José Fidalgo), uma apropriadamente do muito padronizado arquétipo “child-man” [“homem-criança”], em contraste com a assertividade de uma mãe fria (Ana Varela), como o centro do conflito de um litigioso casos de custódia. 

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José Fidalgo e as crianças [Gonçalo Menino e Sebastião Matias] em "KM 224"

Bebendo do modelo americanizado no tratamento destas personagens, mas nunca restringindo a drama de tribunal, em alternativa assume-se como uma dramédia com sede zeitgeist (APV sempre demonstrou essa ‘tentação’ de ser atual, custe que custar), “KM 224” perde o registo da possibilidade do seu cinema, ou por outras palavras não invoca o suficiente para que aquelas imagens mereçam o privilégio do grande ecrã (em oposição, os drones já se normalizam em demasia no audiovisual que as telenovelas utilizando-as exaustivamente). Com excepção do plano-zenit ao som de Leonard Cohen e o seu “Dance Me to the End of Love”, uma sequência que imprime os sentimentos daquelas personagens e do seu condutor fio narrativo como se a intriga não tivesse essa capacidade de expressão, ou um ou outro travelling, o restante resume-se a uma pobreza técnica, agravado por personagens pouco apetecíveis na sua construção e desenvolvimento (até pouco interessadas nesse aspeto), e uma guarda - essa suposta guerra infernal - que automaticamente escolhe a sua trincheira.

Por um lado é isto: “façam apenas o que eu digo, e não o que faço”. Apesar de tudo, continuarei a ouvir António-Pedro Vasconcelos. Por vezes tal acontece, vermos realizadores mais interessantes que os seus filmes.

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em “Ramiro” de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

Takes Roterdão 2022 (1): as diferentes condições humanas

Hugo Gomes, 29.01.22

A Human Position

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Vai ficar tudo bem”. Quem não se recorda dos arcos-íris e das mensagens positivas nos momentos em que boa parte do Mundo confinou-se no medo de uma pandemia diversas vezes anunciada?

A Human Position” do noruguês Anders Emblem, não é de todo um filme pandémico nem contextualizado no confinamento, mas sim uma heresia perante ao positivismo crónico trazido por uma sociedade que faz “vista grossa” à nossa condição psicológica. São “desgraças de primeiro Mundo”, dirão muitos, capsuladas num tédio embelezado e planeado até ao último pormenor, Emblem resolveu enfeitar um filme com um artificialismo solarengo e virtuoso, uma aparente harmonia onde o silêncio, as palavras nunca proferidas convertem-se em patologias no estado emocional de Asta (Amalie Ibsen Jensen), jovem mal-amparada numa profissão acima da precariedade e vivendo uma relação (novamente surge-nos o “aparentemente”) feliz com a sua parceira.

A Human Position” fala-nos da saúde mental por via de uma sinalização estética, guiando-nos a uma  anomalia no colorido do filme, ou no “poker face” da protagonista e as distrações constantes trazidas pelo seu “bichano”. A mensagem é perceptível, a viagem, essa, demora a desempacar. Entre subidas e descidas nas ruas familiarizadas que explicitam uma rotina martirológica, Emblem construiu um filme o qual desejamos abraçar, mas de difícil comunicação. Contextualizado ou não, esse é sim, o seu “calcanhar”.

Secção: Bright Future

 

Yamabuki

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Segundo a lenda, quando deixadas na montanha, as moedas de ouro transformam-se numa flor de cor amarelada denominadas de “yamabuki” (que significa em bom japonês de “brisa da montanha”). Quanto ao homónimo filme, seguimos a história de um antigo jóquei olímpico sul-coreano que vive como manobrador de máquinas numa pedreira ao largo da pequena cidade de Maniwa (a oeste do Japão), e é nele que a mitologia é apropriada, ora através do macguffin do "dinheiro esquecido” o qual o protagonista encontra acidentalmente, ou da sua nacionalidade fluida e contestada.

Juichiro Yamasaki dirige e escreve um inconclusivo filme-mosaico de uma abordagem simples à condição do imigrante em terras japonesas, porém, é de notar um terrível medo da convencionalidade e com isso, uma requisição de embarque à sensibilidade perceptiva quanto a uma narrativa voluntariamente fragmentada. É uma obra que conserva potencialidades, seja através das temáticas, seja visualmente (uma fotografia granulada que nos remete ao conforto dos imperfeitos filmes caseiros) ou na emocionalidade invocada. Coração não lhe falta, o que falta é mesmo rígida estrutura para sustentar tais sentimentos.  

Secção: Tiger Competition

 

A Criança

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Com os sucessos de “A Herdade” (Tiago Guedes, 2019) e “Mosquito” (João Nuno Pinto, 2020), era de esperar maior ambição por parte de Paulo Branco e a sua façanha enquanto produtor. Infelizmente voltamos à estaca zero com esta longa-metragem da jovem dupla Marguerite de Hillerin e Félix Dutilloy-Liégeois, livremente inspirado no livro “Der Findling” de  Heinrich von Kleist. Aqui o espectador é automaticamente cavalitado para um enredo do século XVI, uma espera desesperante em cenários decadentes e filmado com uma miopia disfarçada.

Todavia, o mais decepcionante é encarar uma narrativa propícia a fantasias e desejos ardentes quase edipianos, mas que nada disso parece-se traduzir em imagens. É que para além da sua falta de identidade fílmica, é lhe acrescida uma ausência de lascividade que pudesse transportar esta história para mais longe do que o mero “faz-de-conta”.

Secção: Tiger Competition

 

Madrugada

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Um filme de transformações de quem a vida parece já não lhe pertencer. Leonor Noivo tem sido apontada como um dos nomes emergentes do cinema docuficcional português (“Tudo o que Imagino”, em 2017, é um exemplo a ter em conta) e em “Madrugada” leva-nos novamente à experimentação desses diferentes veículos em conformidade a um só tom. Para muitos, a realizadora integra uma tendência de uma certa autoralidade portuguesa, mas convém sublinhar a destreza quase arquitetónica de Noivo em montar um filme na consciência dos seus mundos enraizados (palavra que não é convocada em vão), memorialista, surrealista e metafórico (uma sintonizada metamorfose). Pegando no seu anterior “Raposa” (2019), eis a continuação do estudo e da apropriação dos corpos, das suas capacidades e das suas conquistas. Sim, é um gesto contínuo, mas por vezes é isso mesmo que define um autor.  

Secção: Ammodo Tiger Short Competition 

 

Malintzin 17

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Depois da morte do seu irmão documentarista Eugenio (falecido em 2017), Mara Polgovsky assumiu o seu espólio e a produtora Tecolote Films. Nessa herança, encontra e adquire filmagens pessoais do mesmo com a filha (na altura com cinco anos) e transforma-as num filme. Com este conhecimento, somos envolvidos a um véu de intimidade e tributo neste cerco com vista para o exterior. A criança que debate o seu olhar em desenvolvimento com a percepção experiente do seu pai, lecionar e sendo lecionado, e sobretudo expondo a sua relação para com o mundo que os rodeia. “Malintzin 17” é um exercício de tempo e de aprendizagem do mesmo, figuramente depositados no pássaro que aninhou-se a poucos metros da janela, ou na rua movimentada e aprisionada à sua própria rotina e (ecos)sistema.

Esculpindo o espaço físico e temporal, obviamente num gesto inconsciente e posteriormente transformado pela sua irmã (co-realizadora que abdica da sua assinatura para induzir um póstumo e derradeiro filme-homenagem), somos questionados a entender o que é o Cinema e como o relacionar. Esta obra levou-me a recordar Béla Tarr (um encontro que aocnteceu 2016 na esplanada da Cinemateca Portuguesa) que questionado com a questão das questões  - “O que é o Cinema?” -  de jeito sisudo e apontando para a mesa do lado, ocupada por jovens que tagarelavam uns com os outros, responde asperamente (bem ao seu jeito digamos), “Aquilo ali é Cinema”. Em “Malintzin 17” há um momento que se aproxima, Eugenio pergunta ao seu “rebento” - “O que é filmar para ti?”. A voz off da menina é reveladora. “Para mim … é copiar algo.

Secção - Tiger Competition

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Na balada dos brancos cabelos de Maria Adelaide

Hugo Gomes, 10.09.20

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O filme abre com uma ode de admiração aos escondidos cabelos brancos de Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira e dona do Diário de Notícias em 1918, que se depara no espelho estes sinais evidentes de envelhecimento, para mais tarde, tal cena ser replicada como uma determinação perante um ataque orquestrado por homens de poder ou simplesmente de influências insufladas.

Estes assuntos capilares não são mais que uma prolongada analogia de um sufoco feminino num país reinado por um patriarcado profundo, onde os romances são só apenas escândalos de alta sociedade no lado delas e que o desejo da mulher é automaticamente encarado como sintoma para uma eventual patologia mental. É assim, que a vida da não consinta Maria Adelaide é ditada por um universo médico e científico enraizada em esquemas de conservadorismo e ideologias machistas, o qual tenta perpetuar a sua luta através de peças teatrais com blasfémias fontes de prosa e poema qualificado.

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O regresso da dupla criativa, o realizador Mário Barroso (“O Milagre Segundo Salomé”) e o argumentista Carlos Saboga, resulta numa biopic à portuguesa de nome “Ordem Moral”, que retalha as inspirações de Agustina Bessa-Luís no seu romance “Doidos e Amantes”. A história já havia originado uma obra de Monique Rutler em 1992, “Solo de Violino”, hoje de paradeiro desconhecido, e é sob o cunho da produção de Paulo Branco que assenta num efeito de produto de luxo, composto por elencos de estrelas do circuito e um retorno esperado ao nosso cinema – Maria de Medeiros.

Aliás, é através da veterana e celebrada atriz (“Adão e Eva”, “Capitães de Abril”) no qual concentra a grande força, e quiçá resistência, desta produção. A sua condução a leva a uma voluntária miopia quanto ao seu mundo, para reforçar a sua causa, quer pessoal que se via transmitir em algo universal e de efeitos revitalizadores à sociedade portuguesa da época. Por outras palavras, “Ordem Moral” é um dos poucos filmes que vem colmatar um enorme vazio de grandes protagonistas-femininas na nossa “indústria” (sob aspas porque ainda debatemos se realmente temos ou não), e o faz sobre a classe irreconhecível de Medeiros, que parece secar tudo à sua volta, até mesmo com João Pedro Mamede, que por vias da sua própria resistência, tenta aguentar a partilha de palco com a atriz.

Em destaque, ainda, está a atriz Júlia Palha (outro regresso à grande tela depois da revelação em “John From”, de João Nicolau) que funciona como uma espectadora dentro do próprio filme, assim como uma objetora de consciência. Porque no final, a consciência nasce, cresce e morre (esperemos que não) do próprio espectador, não cabe às personagens (essas figuras históricas) decidir o rumo ou a prescrição da nossa “moralidade”.

«Roman Porno»: Onde o sexo tem lugar ...

Hugo Gomes, 20.06.20

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Lady Karuizawa / A Senhora Karuizawa (Masaru Konuma, 1982)

Em alturas de desconfinamento, a grande questão lançada no mercado de audiovisual é como voltar a incentivar os espectadores a frequentar as salas? Como estratégia, há quem reveja a História para extrair lições de como demarcar as salas das propostas do confinamento, sejam elas serviços televisivos, streaming ou tudo o que esteja ao alcance de um dedo. Foi o que fez a Leopardo Filmes / Medeia Filmes, gerida pelo produtor Paulo Branco, e a solução a que se chegou chama-se "roman porno".

O termo nasceu do crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger, referindo a um nova abordagem produtiva dos estúdios Nikkatsu, um dos mais antigos do Japão (produziu filmes de todo o género desde 1912), virada para o “porno romântico”. Com a queda abrupta da afluência de público às salas, no início da década de 1970, que levou a uma decadência na indústria nipónica frente à cada vez mais abrangente televisão, o estúdio, que também enfrentava uma iminente falência, radicalizou-se e criou um novo esquema produtivo, que passava por invocar sexo “semiexplícito” em filmes de baixo-orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia (para que fosse exibido em "sessões duplas").

Na altura, o Japão estava dominado por uma forte censura, o que condicionava a própria ideia de sexo no grande ecrã, sendo explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital. Isto levou os realizadores a exercitar a sua engenhosidade criativa para não acanhar as imagens lascivas. Durante este período, vários nomes surgiam nestas “páginas” de erotismo transgressivo, passando por Masaru Konuma, Noburu Tanaka, Toshiharu Ikeda ou Tatsumi Kumashiro. Respondendo aos pedidos da produtora, eles preenchiam estes ensaios com evidentes referências e presunções cinematográficas, ao mesmo tempo em que focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.

Não fiquemos no equívoco de encarar estas obras como somente pornografia: o “roman porno” alcançou mundialmente uma conotação artística que os separava dos contemporâneos “pink films” (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo oriundas de pequenos estúdios independentes, normalmente de consumo interior), resgatando uma produtora veterana na “cruel” mudança dos tempos. O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário do “porno romântico” dos estúdios Nikkatsu, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos, e o resultado foram obras marcadas por diferentes abordagens e transposições do estilo até então estabelecido. 

Voltando agora aos estratagemas de apelo ao público “confinado”, a proposta da Leopardo Filmes / Medeia Filmes é a de seduzir com as mesmas armas dos estúdios Nikkatsu, apresentando um ciclo especial no Cinema Nimas, em Lisboa, sobre este género salvador-da-pátria e obcecado pelas tentações do corpo. Serão no total dez obras (cinco clássicos e cinco modernos). A primeira sessão será composta por "A Senhora Karuizawa" (“Lady Karuizawa”) e "O Lírio Branco" (“White Lily“).

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Na rodagem de "Lady Karuizawa" / "A Senhora Karuizawa" (Masaru Konuma, 1982)

 

- O VERÃO CHEGA-NOS QUENTE E HÚMIDO -

Já no arrefecimento da carnalidade do “roman porno”, nos primeiros anos da década de 1980, surgiu-o "A Senhora Karuizawa" (“Karuizawa fujin”, 1982), que adapta livremente o romance de Stendhal “O Vermelho e o Negro", contextualizando com as desigualdades sociais nas terras do Sol Nascente.

Este romance erotizado centra-se na chegada de um jovem estudante pobre, Junichi (Takayuki Godai), à região de Karuizawa, local escolhido pelos afortunados como estância de férias, para trabalhar num serviço de "catering" de um restaurante da área. Após um acidente na mansão de uma das importantes famílias de Karuizawa, Junichi é despedido, mas acaba contratado por Keiko (Miwa Takada), a matriarca da tal família, como tutor do filho de cinco anos. Durante o serviço, ambos aproximam-se, afetiva e carnalmente, consumindo o desejo nesses tempos quentes quase animalescos.

Dirigido por Masaru Konuma, este é, notavelmente, um filme sobre o desejo impregnado como força animal. Diga-se que a própria construção visual é deveras alusiva a essa bestialidade interiorizada, sendo que a fauna e flora assume um papel fundamental nos registos de passagem e transformação das personagens, assim como as suas mais profundas fantasias. Veja-se por exemplo o canto dos animais noturnos como “vozes de aprovação” ao magnetismo sexual do par, com Keiko tentando resistir à mais perdida tentação (“Não me obrigue a despi-lo”). Esse apetite sexualizado é também rompido pelo onirismo de uma dendrofilia confessada pela protagonista aos espectadores, estendendo a ideia de um perverso apetite não apenas facultado pelo corpo de Junichi, mas de todo este lugar Karuizawa sob o sol escaldante e o cantar das cigarras em pleno verão (“Os invernos são rigorosos em Karuizawa, mas... o verão sempre volta!”).

O trabalho de Masaru Konuma persegue o calor dessa mulher à espera de ser libertada das amarras matrimoniais, tentando escapar do sexo bruto quase violatório por parte do autoritário marido para correr para os braços do jovem amante, onde o contato entre corpos é um ópio incorporado.

A grande infelicidade de "A Senhora Karuizawa" está na (não) coesão do argumento, que não passa aqui de um dispositivo para embarcar nesta jornada sexual e do retrato algo sádico da diferença entre classes, da subjugação dos mais baixos sob os aristocratas e da emancipação da mulher para fora do mero símbolo de estatuto social.

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White Lily / O Lírio Branco (Hideo Nakata, 2016)

 

- O PERPÉTUO DESEJO DO PODER -

Hideo Nakata foi um dos grandes impulsores do chamado "j-horror", um esquema de filmes de terror que conquistaram o Ocidente (tendo sido brindados com a variedade de "remakes", "reboots "e refilmagens em Hollywood). Da sua filmografia contam-se obras como “Ringu” (que originou o sucesso “The Ring – O Aviso” nos EUA) e “Águas Passadas”, mas antes dessas aventuras por espectros e maldições correntes, Nakata foi assistente de realização de Masaru Konuma, o que lhe garantiu legitimidade para invocar os seus gestos de sugestão e fabulação sexual durante a homenagem dos 45 anos.

O Lírio Branco” (“Howaito rirî”, 2016) é uma fantasia lésbica vigorosa no elo entre mestre e pupilo, neste caso de uma artesã e professora de olearia com a sua subserviente aluna/amante precária. Uma relação equilibrada entre o desejo e a necessidade que será abalada com a vinda de um terceiro elemento e um triângulo amoroso que se acerca e se estatela em territórios psicológicos e obsessivos.

Hideo Nakata comete a vénia da suscitação através de um embelezamento apropriado nas sequências sexuais entre as duas mulheres, tentando equiparar com isto o espírito proposto do legado “roman porno” dos estúdios Nikkatsu. As brancas flores dos lírios adquirem aqui um segundo sentido, um atalho visual que faz contornar o puro explícito, enquanto o barro moldado e os constantes focos nos dedos em plena operação atribuem um senso erotizado e afrodisíaco que inspira não só o ato sexualizado em si, mas também a moldagem desta relação perante a sua “oleira”.

Nakata consegue um trabalho saudosista e referencial, mas infelizmente cai como prosa numa teoria metaforizada, e como tal, em modo castração, impedindo-o  de transgredir para territórios próprios e ainda mais perversos. Em comparação com “A Senhora Karuizawa”, onde o sexo é quase uma imposição mística e quente como o verão que cita constantemente, em “Os Lírios Brancos” o contacto entre corpos é agressivo, animalesco e em recorrente conflito para estabelecer um domínio.

Grândola, Vila Morena

Hugo Gomes, 25.04.20

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Uma das mais fortes e recentes menções sobre o 25 de Abril no Cinema Português, é aquela demonstrada em A Herdade, onde as personagens interpretadas por Albano Jerónimo (João) e Sandra Faleiro (Leonor) cada vez mais temendo pela preservação do seu paraíso embatem-se num inesperado “milagre” no escuro breu da noite, após saírem de um improvisado “refúgio das velhas tradições”. A rádio ligada transmite sonoridade o qual nunca tinham ouvido antes, ao mesmo tempo em que as chaimites “peregrinas” cruzam-se nos seus caminhos. A partir daqui, é história feita, nada seria como dantes, nem mesmo Portugal, país sufocado pelo seu estado de estagnação, regressaria à inicial forma.

Tiago Guedes abordou os fantasmas desse país em ruína, o seu interiorizado patriarcado presente na gestão de uma terreno alegórico às causas e devaneios sociopolíticos, girando envolto à decadência do seu rei no seu pequeno “castelo”, o senhor da ilha que o cerca do exterior antagónico e que o faz ser grande durante a sua verdadeira pequenez. A Herdade é um filme sobre essas cicatrizes que adquiram uma força de negação perante novos ventos populistas. Um conto do passado com ecos no nosso presente.

Que "cinema português" habita na "A Herdade"?

Hugo Gomes, 15.09.19

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As vozes mais otimistas mencionam “A Herdade” como um culminar de décadas de um cinema que sempre se distanciou do seu público, quer pelo (seguindo o senso-comum) panorama autoral algo umbiguista, quer pelas tentativas de aproximação, que resultaram numa espécie de amadorismo, não apenas no sentido técnico e estético, mas também semiótico. Não tentaremos aqui reduzir todo o cinema nacional a uma “barriga de aluguer” para esta produção certeira de Paulo Branco, nem indicar o filme-encomenda de Tiago Guedes como o exemplar seminal: "A Herdade" é um filme litoral, nem tanto à terra (pelos traços do facilitismo e comercialidade tendenciosa), nem tanto ao mar (dando a liberdade total ao seu autor).

Joga pelo seguro de uma forma confiante e, acima de tudo, não menosprezando a sua natureza – a de estar inserido no cinema português. Talvez seja por isso que esta história que atravessa gerações ostenta um trabalho invejável quer na "mise-en-scène" por vezes idílica, quer nas cartilhas político-sociais que enriquecem o ambiente envolto deste conto moralista e metafórico no qual o seu protagonista, João (um Albano Jerónimo de garra) se insere com estranheza. Tiago Guedes, realizador que tem desafiado o estigma com o culto de “Coisa Ruim” (co-realizado com Frederico Serra, 2005) ou do atípico (e não para todos os paladares) “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019, com estreia futura nas nossas salas), incorpora essa segurança, planificando esta trama, que facilmente cairia em contornos novelescos, através de um acordo com o memorialístico da cinefilia profunda.

O "travelling" que não quebra na boda, como o duelo de recordações e saudosismos enterrados no salão de baile de “Il Gattopardo" de Luchino Visconti, ou o jantar de família onde o fervor patriarcal será embatido, espelham em certas ocasiões um classicismo digno dos padrões cénicos de uma Hollywood hoje preservada nas nossas raízes (destaque para a fotografia de João Lança Morais).  Tiago Guedes configura toda uma obra ditada pela excelência e perversão do seu guião, ao mesmo que se concentra em distribuí-las por uma narrativa igualmente visual e virtuosa para o olhar.

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A única “erva-daninha” em toda esta colheita encontra-se em departamentos limitados que não se conseguiu contornar, nomeadamente o sector da caracterização e maquilhagem, que evidencia anomalias para envelhecer as personagens. Ou no dispositivo entranhado "à lá Eça Queiroz", que atrasa mais o ritmo do que o dinamiza. Seja como for, apesar das semelhanças, a nível estrutural e na convergência do argumento, “A Herdade” supera o seu afastado primo e pastelão “The House of the Spirits” / “A Casa dos Espíritos” (a Argentina filmada no Alentejo por Billie August) graças à familiaridade com os elementos que joga e pela regulamentação da sua pomposidade para os nossos devidos encaixes.

Contudo, voltando a afirmar, Tiago Guedes constrói um filme de respeito na nossa cinematografia, que faz boa figura perante produções maiores da indústria internacional. Um conto que desmonta o patriarcado num tom de passividade crónica, detido por uma linguagem que venera o cinema universal.