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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Atrás do fantasma de Gaugin ...

Hugo Gomes, 20.02.25

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Por essa estrada fora, Hugo Vieira da Silva, depois de citar Joseph Conrad e o Congo colonial no muito apreciado “O Posto Avançado do Progresso”, regressa às adaptações de mato, tendo como farol uma graphic novel — “Loin de la route”, de Christophe Gaultier e Maximilien Le Roy - que por sua vez é inspirada nos escritos de Victor Segalen, médico e poeta que procura o rasto deixado pelo pintor Paul Gauguin no seu refúgio no Taiti, no início do século XX. Dessa mesma busca emergem encontros com fantasmas e uma aura espectral do pintor, do homem e da controversa figura que foi, e que se mantêm, Gauguin

Este projeto coincidiu com um momento delicado na saúde do realizador, levando à requisição da co-realização pelo seu habitual montador, Paulo MilHomens — cada vez mais dedicado a terminar projetos de outros (veja-se também o caso de “Axilas”, o último termo de José Fonseca e Costa) -, numa espécie de coordenação à distância, e o que nasceu dessa colaboração foi um filme de múltiplas vozes e visões, deixando-nos a imaginar como seria caso mantivesse um só maestro. Contudo, mesmo afastando-se por vezes da estrada que lhe fora traçada, a obra acaba por abrigar na sua própria posição: não apenas a de reimaginar os “quadradinhos” de “Loin de la route», nem sequer de reproduzir os escritos de Segalen (aqui interpretado por Antoine de Foucauld), mas também de humanizar Gauguin — figura de mau agouro neste zeitgeist a que convivemos, numa espécie de imposição moral e cancelamentos por via de um cânone ainda por entender. 

O filme faz dessa passagem algo fantasmagórico na sua tese, mesmo subliminarmente implantado à beira-mar, nestes trópicos que oscilam entre a decadência de um império e a mistificação ainda sustentada por crenças de gerações e gerações. Funciona como registo histórico, modesto na sua produção, sem nunca ter o devido golpe de asa. Para Hugo Vieira da Silva, as melhoras. Continuamos interessados na sua nova aventura pelo passado colonialista, seja qual for o prisma.

Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - Os Papéis do Inglês - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Os salteadores dos papéis perdidos ...

Hugo Gomes, 19.10.24

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Paulo Branco manifestou o quão pessoal este filme é, da sua experiência, e amizade para com o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), aos serviços “emprestados” na produção de um dos seus poucos trabalhos em cinema [“Móia: O Recado das Ilhas, 1989”], e a vontade que era em adaptar para grande ecrã a sua mais célebre criação literária, a trilogia “Os Filhos de Próspero”. Para tal necessitou encontrar um escritor/argumentista à altura dos seus calos nestas lides africanas, esse cargo calhou ao não menos talentoso José Eduardo Agualusa. Quanto à realização, segundo o produtor, a busca foi ainda mais exigente, pois era preciso encontrar um olhar que dignificasse e compreendesse a realidade subsaariana. 

O achado deu-se com Sérgio Graciano, que Paulo Branco viu num determinado filme (deste lado apostamos em "O Som que Desce na Terra", 2020), do qual o realizador demonstrou uma sensibilidade especial para com aqueles cenários e pessoas. Assim se formou a equipa: um realizador grosseiramente televisivo, um escritor que nos últimos tempos se tem aventurado no cinema ("Nayola", "Sobreviventes"), e um produtor conhecedor da obra de Carvalho, unindo forças para trazer este “Os Papéis do Inglês”, extracto memorial e temporal do eixo Namibe / Angola em ares coloniais. 

Debatendo não só essa identidade e como essas invocações do lusotropicalismo, o filme utiliza também um subtil “macguffin”, os ditos “papéis do inglês” (será um tesouro?) para “burlar” o espectador, e desta feito convidando-o a permanecer num tempo que parece estagnado, revisitado, poetizado em prol deste tributo a Carvalho. Curiosamente, Sérgio Graciano apresenta aqui o trabalho mais equilibrado da sua carreira, onde se notam os seus sacrifícios enquanto “autor”. Despojado dos vícios televisivos ou de o conceito de cinema “para todos os portugueses” (a tal trincheira comercial), através desse trato algo mefistotelicos (para com um produtor que por si é um autor por direito) reforça-se por diálogos ricos e interpretado de forma vigorosa por um elenco rico e multicultural, e adquire espaço e tempo do seu lado para induzir num ensaio de olhares e escutas, de histórias antológicas trovadas como painel multi-narrativo acima da eventualidade etnográfica e até antropológica. 

Não recorre a clichés técnicos, não cede ao excessivo uso de drones (César Mourão estou a olhar para ti) ou outros artifícios banais de esquadrias narrativas (o filme detém uma força anti-natural ao tempo do seu desenrolar, como se requeresse a nossa paciência e atenção a uma demanda remota) e os seus atos raivosamente ditadores. No fundo é uma viagem para longe, quer de nós, quer das memórias da civilização, dos contos dos expatriados, e no seu interior a história de um homem, Ruy Duarte de Carvalho (aqui interpretado por João Pedro Vaz), na sua demanda pelo seu lugar. 

O escritor do Cinema, o Cinema do escritor

Hugo Gomes, 01.05.24

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Um Homem é feito de ignorâncias, e admiti-las é abraçar o seu trajeto de progressão nesta breve existência. Não, nunca li Paul Auster e daquilo que começo da sua pessoa vem do cinema, que o próprio sempre demonstrou fascínio e parte da sua influência literária. E foi através do seu Martin Frost (interpretado por David Thewlis, ator diversas vezes posto à margem) a fazer aproximar do que pode chamar de seu universo. “The Inner Life of Martin Frost” (2007) escrito e realizado pelo próprio escritor, um filme de como torturante (e desesperante) é um escritor lidar com a sua própria arte.

Paul Auster (1947 - 2024)

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores [Pico] contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Dois cinéfilos, um diretor de fotografia e Mário Soares entram num snack-bar ...

Hugo Gomes, 21.02.24

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"Soares é Fixe" (2024)

"Cumpliciamo-nos com a ideia de que o cinema português é dividido por duas grandes trincheiras: a de autor e a comercial, vulgo popular. O que me incomoda com tudo isto é: por que razão esses filmes que apelam às massas são visualmente ‘feios'?” 

Num jantar de puro acaso, numa sexta-feira, tendo um snack-bar/cervejaria à moda franchisada como escolha rápida, dois amigos reencontram-se, a conversa entre ambos vai ao encontro das suas experiências nos últimas dias, com paragens intermitentes no Cinema, o coração de tudo, o pensamento de todos. Entre imperiais, “lambretas” e "príncipes" (termo pelo qual o empregado foi questionado, para garantir que não fosse pedido por engano algo que não satisfizesse a sede por cevada a temperaturas polares), um cachorro do outro , uma francesinha de um lado com batatas fritas à parte- "Se quiseres, podes tirar batatas?" "Não, deixa estar, obrigado" - expondo-se em certo momento esta preocupação, uma discussão retórica, que vale o que vale. 

"E mais, se de um lado tens Acácio de Almeida, Rui Poças, João Ribeiro, Jorge Quintela..."

"Não te esqueças do Leonardo Simões."

"Como poderia esquecer? Já agora, adiciono a Leonor Teles... Mas do outro lado, na vertente 'popular', não tens ninguém que realmente se destaque; é como se esses filmes fossem tão homogéneos, televisivamente falando, e por isso, tão 'feios', nada cinematográficos." 

"E isto vem a propósito de..." 

"Vi 'Soares é Fixe', e para além dos seus defeitos... que não são poucos, um dos aspectos que me incomodou foi a sua fotografia. Não vi cuidado na luz, nem sequer coerência estética ao longo do filme, para além de uma falta de profundidade. Soou-me tudo tão enevoado. Não sei, talvez esteja a ser mesquinho. Procurei nos créditos, Miguel Manso, colaborador frequente do universo de Sérgio Graciano. Ele até pode ser 'bom', percebes? Mas não vejo qualidade neste tipo de trabalhos, o que havia demonstrado e acabou por o fazer neste, foi um tom que não o separa da qualidade televisiva. Facilmente olha-se para "Soares é Fixe" e encontramos uma sensação de conforto num pequeno ecrã

Aqui seria importante contextualizar o dia. Esta saída improvável ocorreu após uma sessão categorizada como warm-up [“Janela para o Arquivo”], aperitivo para a próxima edição do CINENOVA: Festival Interuniversitário de Cinema, na FCSH [Faculdade de Ciências Sociais Humanas, em Lisboa]. Uma sessão integrada por três filmes-escolas, oriundos de ante-câmaras para personalidades como hoje reconhecemos como a realizadora Susana Nobre ou o músico Manuel Fúria, a primeira numa aproximação performativa de um drag-queen [“Transformistas”, 1995 - 1996], o segundo mostrando uma aptidão para distopias numa Lisboa imaginada [“Os Bons Alunos”, 2004 / “Arquivo Geral”, 2006]. A partir daí, discutiu-se o processo, e mais do que isso, as equipas improvisadas e as alianças aí forjadas. Contextualizo porque é aí que o 'parceiro do crime' argumenta: 

"Como pudeste ver na sessão, muitas dessas alianças nascem dos tempos de escola, e para além disso, podem ser cumplicidades criadas ao longo da carreira. Orson Welles dizia que preferia trabalhar com amigos do que com os melhores atores da contemporaneidade, e o mesmo se deve aplicar a este aspeto. Uma questão de comparsas." 

"Sim, tens razão. Porém, estamos a falar de indústria, coloco aspas para não vender uma mentira. E será que nessa indústria, um produtor ou algo do género, não tem uma indicação ou requisito dos melhores no mercado? Por exemplo, nenhuma dessas produções contrata um Rui Poças?"

"Talvez o Poças prefira outros voos?" 

"Sim, e belos voos, o 'Zama' da Lucrecia [Martel] é um postal vivo. Aquela cena nas pampas com palmeiras ao fundo e uma cavalgada lenta tornou-se no papel de parede do computador." 

"Sim, concordo, parece um postal. E o João Ribeiro com o Ivo M. Ferreira?"

"Falas do 'Cartas da Guerra'?" 

"Sim, esse." 

"Não é bem cinema comercial dentro dos padrões convencionais." 

"Possivelmente... mas pronto, o que quero dizer é que este é um meio tão pequeno, os projetos são poucos e, no caso dos diretores de fotografia que mencionaste, possivelmente preferem trabalhar com o seu conforto ou, como integram um cinema que facilmente se estende a território internacional, são mais facilmente contratados por produções estrangeiras. O país é pequeno para a ambição de muitos."

"Faz lembrar o Eduardo Serra.

"Aí está! Fernando Lopes... belíssimo 'Delfim', a sensualidade de Alexandre Lencastre ali captada numa espécie de veludo estético... Luís Filipe Rocha, José Fonseca e Costa e depois, Carlos Saura, Patrice Leconte, Winterbottom e umas voltas em Hollywood." 

"Esteve por detrás de um dos Harry Potter, o do Cuarón, um dos mais interessantes do ponto de vista visual. Sabes, tenho um amigo que diz que ter um bom diretor de fotografia é meio caminho andado." 

"Talvez, conseguirias imaginar o duo do Canijo sem Leonor Teles? Mas mudemos de assunto, como foi o 'Soares é Fixe'?" 

"Há um senso de oportunismo neste filme, além do seu tom puramente televisivo. Já anunciaram uma segunda parte, sobre o Álvaro Cunhal." 

"É uma tentativa de fazer filme político em Portugal?" 

"É demasiado apolítico para isso, apenas descreve as turbulentas eleições de 1986, Mário Soares contra Freitas do Amaral, em termos simbólicos esquerda contra direita, de uma forma esquemática, quase como um fraco manual de História." 

"Para ser cinema político, tem de posicionar-se mais, claramente."

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"Soares é Fixe" (2024)

"Exato! Não se posiciona em nada, não digo explicar quem foi o Mário Soares a quem nasceu ontem, mas sim acreditar no filme e na sua consciência. Em vez disso, limita-se a apresentar factos e episódios, sem grande esforço para construir um cenário sociopolítico da época em que pudéssemos acreditar. É o mesmo problema que teve em 'Salgueiro Maia: O Implicado', apesar de este ter tentado ser um biopic nos termos mais convencionais e com a intenção de ser explorado como uma série televisiva. Aliás, Graciano tem demasiados vícios da sua carreira em televisão." 

"Não sei como continuas a acompanhar, eu desisti no 'Linhas de Sangue'..." 

"O 'Assim Assim' não era mau, tinha ideias e, acima de tudo, humildade, e no 'Njinga, Rainha de Angola', há uma sequência tão antoniana que me apeteceu perdoar o filme pelos seus pecados originais... agora, 'Linhas de Sangue' é outra história... Vejo, porque faz parte, quer se goste ou não do Cinema Português e da sua história, como também tenho o perverso desejo de ser apanhado de surpresa um dia destes." 

"Achas que ele te vai surpreender de alguma forma?" 

"Tu próprio já usaste o caso Todd Phillips como exemplo, dizendo que é um realizador pouco interessante e, no entanto, certo dia pariu um 'Joker'. E dou-te o exemplo de Richard Kelly, 'Donnie Darko' foi um ‘one hit wonder’, por que não acreditar no oposto?" 

"Sim, mas..." 

"'Soares é Fixe' é um desperdício de oportunidade, é um facto. Tenho fé de que, num futuro próximo, Sérgio Graciano nos dará um bom filme. Quem sabe se será 'Os Papéis do Inglês'..." 

"Esse é o que terá produção do Paulo Branco?" 

"Sim, esse."

A noite prolongou-se com mais um par de cervejas até se perceber que só restava estas duas almas no estabelecimento, para além dos seus funcionários que lançavam olhares reprovadores - “quando é que pensam ir embora, estes” - devem ter pensado enquanto rogavam ‘pragas’. Uma espreitadela no relógio. A mínimos minutos para a meia-noite, a indireta de que deveriam seguir para as suas respectivas casas.. Algumas últimas notas sobre o quotidiano, planos futuros e promessas para uma próxima vez. Uber solicitado. A chegada ao ponto de recolher acompanhado com a devida despedida. “Deixa o ‘Soares é Fixe’ de lado, não vale a pena escrever sobre ele.” disse à medida que abria a porta do Tesla preto que o aguardava. “Olhe que não, olhe que não”, respondeu acenando o amigo.

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

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Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

"A Sibila", obra infilmável?

Hugo Gomes, 11.10.23

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(...) longe estava de imaginar que aquela mulher, intriguista, sorrateira e tão mesquinha de coração quando cismava uma vingança, intentava um lucro, sempre estuante de atividade e ambiciosa de considerações mundanas, ela, tão rasteira como o pó, fardo de malícia e de estultícia incríveis, ela, uma sibila: ela, alguém que sabia, com o único poder da prece, secar um jorro de pranto e soprar novos alentos numa alma esmorecida e gasta.” 

Sublinhamos que nem Manoel de Oliveira, um colaborador de longa data em atribuir imagética aos escritos de Agustina Bessa-Luís, se atreveu a adaptar o que muitos consideram a sua obra-prima - “A Sibila” [publicado em 1954]. Portanto, quatro anos após a morte da escritora, o tão desejado romance finalmente é alvo de uma adaptação cinematográfica, estando Paulo Branco na alçada da sua produção (quem mais?), confiando o projeto a Eduardo Brito, um realizador que, até então, apenas se aventurou em formatos curtas’. Assim, salta para a sua primeira longa-metragem (uma manobra arriscada e, sem dúvida, um tanto suicida), com um argumento trabalhado e idealizado pelo próprio, um episódio pseudo-biográfico de Agustina (como se acredita) e a ascensão e queda de uma mulher, Joaquina Augusta, que, abraçando o extra-natural e fazendo da sua solidão numa impenetrável fortaleza emocional, emancipou-se até adquirir o título de “dona”. 

Carinhosamente ou respeitosamente apelidada apenas de Quina, é uma mulher dotada de um calculismo frio, rígida na forma como mantém relações até perder a crença no terreno, contrastando com uma ideologia própria situada algures entre a charlatanice e o paranormal. Uma personagem e tanto, poderia ser a vilã de muitas histórias, mas é encarada como uma improvável heroína num mundo (e sobretudo num país) dominado por homens. Talvez seja assim que nos é apresentada e realçada: no meio de homens, com a exceção do seu admirado pai, que são ridículos e imberbes, criaturas animalescas e humilhadas pelo peso do estatuto que ostentam na sociedade. O livro, escrito com uma riquíssima prosa, é um relato detalhado da passagem desta “dona” pelo mundo dos vivos, sugerindo as suas afinidades com os mortos, apresentando uma narrativa que percorre episodicamente ponto a ponto nesta vivência, sem com isto assumir-se convencional ou pormenorizadamente esvaziada.

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Já em “A Sibila” [o filme], a narrativa, ao seguir de perto a falsa passada do livro, assume um registo quase trovadoresco, desprovido de conflitos ou clímax (sublinhando, cinematograficamente convencionais). A obra termina da mesma forma como começa, como uma fábula narrada por entre balanços de uma “rocking-chair” (Agustina Bessa-Luís não traduziu no seu romance, como tal, não irei contrariá-la), evocando um tempo distante à beira do esquecimento, cuja única materialidade remanescente, o "império angariado por Quina", funciona como referência desses encontros. Em outras palavras, tudo nos soa como um flashback prolongado e onipresente pela voz de Joana Ribeiro, aqui interpretando Germa, moça sofisticada, observacional e snob graças aos aos ares de uma certa intelectualidade citadina, relegada a um papel secundário na sua própria história. Portanto, há uma tendência de resumo Europa-América na transição de “A Sibila” para o grande ecrã, um mordiscar aos lugares onde esta Quina (Maria João Pinho) enraizou e “apropriou-se” terreno a terreno, até construir o seu domínio tendo como a Casa da Vessada o epicentro da sua influência.

O filme presta-se apenas a servir como acompanhamento visual do próprio livro, não ostentando vida própria para além da espectralidade da sua ligação. Contudo, há dois tópicos pessoais nesta ilustração, sobressaindo a mão de Brito (resistindo em não se revelar anónimo) do que o escrito de Bessa-Luís. O primeiro, e mais evidente (talvez mais estetizado), é o retrato de família, o único, constantemente diagonalizado na sua esquadria, a imagem-chave de uma família nunca linear, marcada pela tragédia, uma maldição, uma profecia ou algo mais banalizado, possivelmente uma simples “estranheza”. A fotografia de reunião é endireitada, contemplada por olhares melancólicos ou de afirmações, por gerações e gerações. 

A segunda vontade encontra-se no vazio cénico, novamente requisitado por Eduardo Brito como um prodigioso veículo para a história contada. Neste aspeto, extraindo do que dele sugere; os corredores apenas percorridos por correntes de ar, aquela cadeira solitária em amplo salão, a casa decadente, a um passo da ruína, sem antes atravessar o seu esquecimento genealógico. É o regresso a "Penumbria", a sua curta de 2016 onde imagina através do nada um ponto geográfico, uma esquecida Atlântida. Em “A Sibilia”, com um cenário sem vivalma, esse “toque” presta-se a ser mais narrativo do que a própria narração. 

Infelizmente, essas marcas não chegam para aliviar o atlante fardo. Poderemos considerar "A Sibila" infilmável? Até agora ... afirmativo.

Fica a minha homenagem: Os Filme!!

Hugo Gomes, 14.06.23

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A Filha da Mãe (João Canijo, 1991)

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Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989)

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Pesadelo Cor de Rosa (Fernando Fragata, 1998)

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Rosa Negra (Margarida Gil, 1992)

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O Sangue (Pedro Costa, 1990)

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O Convento (Manoel de Oliveira, 1995)

 

Teresa Ferreira (1940 - 2023) colorista 

Caretos e caretices

Hugo Gomes, 21.09.22

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Não menosprezando a “A Herdade” (2019), filme que por vários momentos parece atingir o teto da cinematografia portuguesa no que requer a contrair uma linguagem universal e intermediário nas duas “facções” (cinema comercial sem a capacidade alarvo-televisiva), é uma obra cuja narrativa corresponde ao formato quase aristotélico. Ou seja, de “A” passa para “B”, com o encaminhamento do “C” [o terceiro e último ato]. Esta equação, que devo salientar nada contra, atribuiu um tom convencional ao trabalho de Tiago Guedes, o que por sua vez não encontramos em muita da sua obra, de “Coisa Ruim” (2005) ao “Entre os Dedos” (2008), da “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019) e, o qual não devemos de todo esquecer, “O Coro dos Amantes” (2014) - essa curta-metragem que nos reservou um dos melhores split-screens do nosso cinema. 

Aqui, nesta nova jornada sob a alçada de Paulo Branco (colaboração que o levou a pisar a passadeira vermelha de Cannes na 'Sessão Especial') seguimos numa aldeia transmontana, de localização indefinida, na pisada de uma tradição pagã. O arranque demonstra esse serpentear por rituais, praxes e hinos à masculinidade tóxica legitimada por estas pregadas “entidades divinas”, um cerco de rapazes com rapazes para rapazes, sustentado por violência e desejo de posse. Este evento assume como a cerne dos homens daquela aldeia, uma herança milenar, um pacto de cuspo e sangue, de pauladas e de máscaras de serapilheira. Porém, a nossa introdução naquele mundo termina num acto de marginalização. 

Dá-se uma elipse, um corte abrupto e vários anos passaram num “ápice”, esses marginais, agora “homens feitos” adquiriram novas faces, e bem conhecidas para nós, aliás. Albano Jerónimo, o outrora latifundiário orgulhoso de “A Herdade” é despromovido a “louco da aldeia” (quase como uma peça vicentina, com direito ao seu lugar na Barca do Paraíso), um errante protegido por uma matilha de cães bravios de nome Laureano. Os seus possíveis amigos? Talvez. Do outro lado, mais bem-sucedido, deparamos com Nuno Lopes, Samuel, a figura-chave, de tom corleonesco, daquele sítio. Dois homens, distintos, unidos por uma tradição passada e que em breve serão confrontados pela mesma, reunidos por um crime, um misterioso “whoddunit” que despertará rituais há muito adormecidos. A hibernação terminou.

Os Restos do Vento” passeia-se num campo de minas, de géneros, bem poderemos dizer, aliciados perante nós como aromas primaveris. Ora o folk horror ali … sente-se … o thriller acolá … reconhece-se o tom … e o policial frustrado … soa quase burla, mas “andiamo”. O resultado é um filme resolvido em dar-nos um “universo” (que palavra tão em voga!) a ser explorado, sugerido e imaginado (que becos esconderá estas ruelas?), tal como fora “Coisa Ruim”, essa panóplia de lendas e de folclore num embrulho de cinema de género, cuja narrativa não parte do facilitismo, é uma criatura disforme, não linear, que simplesmente passeia pela sua mostra de “antiguidades”. Ambas as obras apostam maioritariamente no seu ambiente, ou atmosfera, criando um clima temperado e de fluidez moralista (mesmo em resquícios de ambiguidade quanto aos seus meios). Nesse aspecto, “Os Restos do Vento” afasta-se de “A Herdade”, não ansiando a convencionalidade, o novelesco como parece entender. 

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Digo até, que vamos ao (re)encontro da genuína essência de Guedes, do seu cinema de perguntas, e não de respostas, do seu “storytelling” camuflado na portugalidade (seja rural, seja urbana [“Entre os Dedos”], seja geracional [“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”]), espírito ruminado e pendurado como exibição. Como tal, a história, a sua percepção, é o que menos importa, porque os ditos encontram-se lá, entendidos nos silêncios, nas insinuações, no segredo levado a cabo e porventura decifrado por todos. Por outras palavras, o “whoddunit” que vos falei (“quem matou quem?”) é transcrito para segundo plano, é um elemento instigador da trama, o seu meio, mas nunca o seu derrame, o que interessa é saber de onde esta narrativa vem e para onde vai. Destino? À entrega de uma moral impiedosa. 

Contudo, Tiago Guedes em conformidade com o seu “cúmpliceTiago Gomes Rodrigues, apresentou-nos um argumento nunca cedido ao novelesco, mas que infelizmente trai a sua ideia base - o culto aos “caretos improvisados” como fulcral elemento para a “caçada” - o espectro da violência mundana levado a cabo como quotidiano e sistema de hierarquização. Para essa ligação com a “genese”, faltou-lhe a reencenação da simbologia da mesma, a espinha dorsal vinculada nessa ‘coisa’ de rapazes com os negócios destes agora formados homens. Portanto, a densidade com que esta comunidade rural subjugada a um animado ritual é também ele o nó na corda no clímax do filme. E a prova disso, é a previsibilidade do ato ao invés da sensação de impotência no espectador (caindo no conto do mártir).

É uma outra “festa na aldeia”, retirando o rural da sua ingenuidade ignóbil e ao mesmo tempo não mergulhá-la na selvajaria provinciana. Uma aldeia como tantas outras, onde Lisboa, esse prometido oasis, é adiado por via de tragédias que movimentam a sua obscura História. Novamente, Guedes procurou em “Os Restos do Vento” as “coisas ruins” de um Portugal oculto, sem com isto deixar-se encantar pelos mesmos. Género ou não, é a passagem como rito de emancipação, o filme que reivindica o cinema seu depois do “A Herdade”.