Entre as novidades desta 22ª edição do Doclisboa, a maior de todas é claramente a presença da mexicana Paula Astorga, ex-produtora e ex-diretora da Cinemateca do México a assumir a liderança do festival neste 2024, cheio de riscos, despedidas e comitivas de boas-vindas a frescos olhares e autores e os habitués. O Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa recorda o crítico e programador Augusto M. Seabra, voz e corpo da secção de Riscos, uma das mais badaladas da história do evento, e que semeou os rumos que vingariam no formato, a homenagem é sentida e garantida, e até mesmo Astorga, não o conhecendo pessoalmente, dirige-lhe com uma respeitosa vénia ao seu legado.
Há Paul Leduc (1942-2020), o cineasta mexicano e experimental nas diferentes vias cinematograficas, que tem uma das raras retrospectivas fora do México, e o brilho dos olhos na diretora ao referir a sua obra é por si só uma conquista, os habituais cantos da casa; Heart Beat, da Terra à Lua, Competição Nacional e Internacional, Verdes Anos e Harmony Korine com o bizarro “Agro Dr1ft”, o futuro do cinema? Enquanto oportunidade única.
Paula Astorga recebeu o Cinematograficamente Falando … no “quartel general “ do festival na Culturgest, numa longa conversa sobre filmes, secções, autores e beleza cinematográfica. As seguintes vinhetas são extractos desse mesmo encontro, para alimentar o apetite nestes próximos 10 dias de janelas para o Mundo. Aquele que é de facto um dos mais importantes festivais de cinema da nossa praça.
Paula Astorga
A Tocha … depois de Seabra
Esta não é a primeira vez que dirijo um Festival, e no fundo, adoro o conceito de Festival de Cinema que são espaços necessários que articula, cada vez mais pertinentes e integrados naquilo que encaramos como o ecossistema da vida dos filmes.
Para mim receber o Doclisboa foi com grande prazer, porque é um festival de uma identidade bastante definida. São 22 edições e é um momento maravilhoso, porque ainda é um evento jovem mas com este número de edições já requer uma certa responsabilidade, um jovem adulto que sabe o que é e o que deseja ser. Um festival com uma audiência construída e claramente sabe o que quer dizer.
Nestes 22 anos, o Doclisboa atravessou e testemunhou imensas mudanças, seja da indústria, de uma pandemia que vivenciamos recentemente, ou geracional. Nisto vemos um festival que pede renovação frente às abordagens frescas incentivadas pelas redes sociais, com as plataformas e com o surgimento de novas linguagens cinematográficas, sempre mantendo o rigor da programação que sempre nos habituou. É isso que significa ser um festival adulto.
Um festival que proponha Cinema, que fale-nos de política, do social, do Mundo em nosso redor, mas que não tenha medo do poético, que crê na beleza, no cinema enquanto arte. Isso são pontos intocáveis no Doclisboa.
Portanto, receber o legado deste festival é também uma grande responsabilidade, e como tal devo manter e proteger os seus valores. A minha chegada deu-se com a despedida de Augusto M. Seabra, uma voz predominante neste festival e fundador da secção Riscos, o qual sem essa secção não haveria Doclisboa. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas parece-me que o seu pensamento crítico e a sua aposta nas equipas de programação tornaram esta despedida muito contundente para as estruturas do festival.
Como tal, chego numa altura em que se solicitava novos rumos, novas ideias sem nunca perder a sua personalidade tão vincada. O meu papel é consolidar a ideia de um legado.
Reed, México insurgente (Paul Leduc, 1970)
Paul Leduc, "nuevas miradas"
Quando estávamos a discutir a retrospetiva deste ano, pareceu-me evidente, e em certa parte um statment politico e não só, apresentar um cineasta mexicano. Mas mais do que ser mexicano, Paul Leduc a condizer com esta nova ideia de festival, porque não só experimentou os mais diferentes cantos, quer documentais, quer ficcionais - e até animação ["Los Animales", 1994]! - como também era um homem de esquerda, bastante político, sem nunca descartar o seu lado artístico.
Foi autor de um dos primeiros retratos da artista plástica mais importante do México com "Frida, naturaleza viva" (1984), demonstrou as revoluções sócio-culturais, o seu latino-americanismo, o seu pensamento político e artístico, a geografia e a etnografia como foi o caso de "Etnocidio. Notas sobre la región del Mezquital" (1976), em que segue para território indígena. Em "Historias prohibidas de Pulgarcito" (1980), aborda a guerra civil de São Salvador sob o olhar do poeta Roque Dalton e do seu homónimo livro, ou por outro lado, na ficção, adaptaria os contos do escritor brasileiro Rubem Fonseca com "Cobrador: In God We Trust" (2007), com o ator Peter Fonda, que estreou no Festival de Veneza.
O meu papel seria traduzir o que transmitia o Doclisboa, quer no seu pensamento político, papel social, estético, um festival que celebra autores e memórias, por exemplo, há uns anos tivemos uma retrospectiva do colombiano Luis Ospina o qual consolidava todas essas ideias, Leduc não estava longe disso, aliás dialogava com todos esses pontos. A Cinemateca após ter recebido a proposta deste ciclo - um dos mais completos do autor e e a primeira a ser realizada na Europa, com cópias restauradas - reagiram com bastante agrado.
Posso garantir que é um ciclo alucinante, Paul Leduc era um autor ecléctico e prolífico no contexto completamente adverso para o cinema mexicano. Julgo que não haveria espaço melhor para honrar a sua memória do que o Doclisboa.
Sempre (Luciana Fina, 2024)
Competições, diálogo ao invés de concorrência … a cinematografia portuguesa como parte do Mundo
Em relação à Competição Internacional posso, antes de mais, revelar a minha surpresa e gratidão com a equipa de programação e artístico do Doclisboa. Este anos contamos com Cíntia Gil e Justin Jaeckle enquanto programadores associados, mas a Competição Internacional passou por todo nós, e foi uma seleção difícil de ser consolidada, porque o festival tem um sentido muito particular de encontrar quais os filmes que integrar o espírito do nosso espaço, fugimos do temático e do manipulador, e construímos pontes com a beleza, com as possibilidades de Cinema.
Quando olho para esta selecção vejo isso, um cinema contemporâneo que persegue os horrores, os cantos tenebrosos, mas que mesmo assim encontra beleza na maneira de transmitir as suas histórias, mesmo sob cargas dolorosas, e o nosso ponto era ter uma linha de filmes que celebram, mais que tudo, o Cinema e com alguns autores não estranhos por este festival. Esforçamos para entregar aos espectadores uma seleção que dialoga entre eles, que vale a pena descobrir.
Em relação à Nacional, enquanto mexicana os meus anteriores contactos com o cinema português foram em curadorias minhas, digo minha mas obviamente tive uma equipa de programadores associado, a retrospectiva de Miguel Gomes na Cinemateca Nacional ou o ciclo de Pedro Costa quando dirigia Festival Internacional de Cinema Contemporâneo da Cidade do México, distribui o "Tabu" de Miguel Gomes com a minha empresa e mais tarde o seu "Mil e uma Noites". Mas o meu relacionamento com o cinema português, o qual ia entendendo através dos grandes importados, tem um lado mais íntimo que para mim foi um prazer em descobrir. Na Competição Nacional temos seis co-produções, o que para mim é um sinal importante, porque demonstra um cinema que está a relacionar com o restante Mundo, e que está pactuando com uma visão global.
Já fora da Competição, gostaria de referir "Sempre" de Luciana Fina [Filme de abertura] e a minha experiência enquanto mexicana. O que é a História de Portugal Contemporânea a ser recontada de uma maneira que me faz querer saber mais. Vejo uma sociedade com os problemas do Mundo, os feminismos, as revoluções, os ideais, e vindo de uma país latino-americano como o México, essas imagens é como experienciar um parte da minha própria História, mas como não é realmente é aí que alimenta a minha curiosidade a partir da própria ideia do cinema numa investigação que quanto a mim, é impecável. E no ato consolidador para com novas visões, revisitando a sua História, apropriando-as e contextualizando-as, portanto, as suas memórias recentes, é algo que vibra com a razão do Mundo e que tem uma coerência maravilhosa.
Agro Dr1ft (Harmony Korine, 2023)
“Agro Dr1ft”, Harmony Korine (ar)riscado …
Esse é o futuro! Sim, tem uma linguagem videogame, é a desconstrução do código da violência nesta contemporaneidade e sem filtros, e falando em nome do Doclisboa, estamos inteiramente satisfeitos com a possibilidade de o projetarmos em sala de cinema. “Agro Dr1ft” é toda uma experiência visual, evidentemente, não necessariamente gratuita, porque infiltra-se em ti e a tela grande é literalmente uma oportunidade para o experienciar. Acredito que é uma obra que conflui, digamos, de todas as distorções da ideia da pós-verdade, da pós-violência, dos tratamentos e da intervenção da imagem até à última consequência. Além do mais, o Doclisboa tem uma relação com o cinema de Harmony Korine, portanto, seria imprudente deixar escapar esta secção especial.
Doclisboa arranca hoje (17/10), prosseguindo até dia 27, na Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal e Cinemateca, a programação completa poderá ser consultada aqui.