Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Tentamos a outra fase da moeda dos 70's". Alvalade Cineclube novamente nos trilhos da América da década de 70'

Hugo Gomes, 21.11.23

MV5BYWU1M2JkNjgtOTE2YS00MTM1LTg4ODMtMTJjNjFkNzZhYz

Wanda (Barbara Loden, 1970)

Tão distante, tão perto. A década de 70 afasta-se cada vez mais da nossa contemporaneidade, contudo nunca se falou tanto, ou igualmente se repescou, aqueles anos como agora. Saudosismos, reavaliações, ou as lições embutidas que as promessas do amanhã anotam como suas, este período, marcante para várias artes além do cinema, refletiu numa subversão e consequentemente numa ruptura das velhas fórmulas e estéticas acompanhadas pelo teor “Novo Cinema” que difundiria pelo mundo afora desde os 60. Nos EUA, a sua nova vaga foi entardecia para a década seguinte, abraçada por “movie brats” e denominada por “Nova Hollywood”, a frente contra a decadência do velho sistema e a imposição de novas vozes, personagens e historietas, assim como novas preocupações, quer sociais e políticas, desencantando a ficção tida cinematográfica. Apesar da relevância desta onda, o cinema norte-americano não viveu apenas de “Novas Hollywoods”, mas dificilmente mesmo é ignorar essa sua influência nos mais diferentes quadrantes. 

Sendo assim, voltamos ao Alvalade Cineclube, que ano passado nos presenteou com uma rota ao cinema dessa década. Nesta sequela, tendo arrancado no passado dia 8 de novembro com “Wanda” de Barbara Loden, seguimos pela Nova Hollywood e as suas ramificações, com tempo para “truques” de kung fu e pesadelos paternais. Com quatro sessões, e desta vez decorrendo no Cinema Ideal, o ciclo “América ‘70” prossegue nesse cenário cinematográfico de outros tempos e de novos entusiasmos. Falamos novamente com o programador Bruno Castro sobre a mostra, eventualidades e possibilidades.  

Voltamos à tão aguardada segunda ronda pela América dos anos 70, aqui, ao que parece, ocasionalmente nos desviamos da trilha da Nova Hollywood que estava tão presente na primeira parte. Como foi feita a seleção dos filmes para esta "sequela" e qual a razão por trás da escolha destes títulos específicos?

Ficamos a pensar nesta questão da sequela depois de, há um ano atrás, teres perguntado especificamente se fazia sentido voltar a repetir. Foi algo que ficou em cima da mesa. A ideia desta vez foi, em primeira instância, manter a possibilidade de contarmos com uma visão feminina dentro do programa, e é aí que surge o “Wanda", da Barbara Loden. Quando há um ano tínhamos passado o filme do Cassavetes - “Mulher sob Influência" - constatamos que deveríamos ter esta possibilidade de termos um olhar feminino naquela década, e achámos “Wanda" a escolha totalmente óbvia, até porque não é um filme muito visto em tela em Portugal, apesar de ter passado algumas vezes, não é muito disseminado … não é fácil também devido a questões de direitos e afins. E a cópia que existe habitualmente em Portugal é em película, não foi o nosso caso que contamos com uma cópia digital. 

A partir daí, desta vez, a intenção foi de facto fugir um bocadinho da ideia da Nova Acrópole, daí surgindo títulos como o “Enter the Dragon", do “Eraserhead", e , por fim, do “Blue Collar". Tentamos a outra fase da moeda dos 70's. Não insistir apenas nesta ideia da Nova Hollywood, ou seja, não fazer uma sequela direta, mas encontrar dentro da década de 70 pistas para aquilo que aconteceu depois. E daí também, por exemplo, a questão do “Eraserhead”, o início de carreira do David Lynch, que nós possivelmente não associamos o próprio Lynch aos 70's, mas as ‘coisas’ começaram daí. 

28382id_109_w1600.jpg

Eraserhead (David Lynch, 1977)

É uma evidência da década de 70 ser um espaço de liberdade criativa, ou seja, não só do ponto de vista formal, não só desta possibilidade de surgirem novos realizadores com novas abordagens, fora daquilo que eram os mecanismos normais dos estúdios e da forma de fazer cinema, como também do ponto de vista artístico, se quisermos. Este espaço enorme de liberdade onde parecia não haver grandes convenções: e quer o “Eraserhead”, quer mesmo o “Enter The Dragon”, são bons exemplos dessa ideia de liberdade e, portanto, focamos nessas possibilidades, não fugindo da ideia das personagens e das narrativas, e deparando com outras linhas de discussão e, devido a isso apresentamos outros tipos de convidados desta vez.

No caso do "Eraserhead" vamos contar com Vasco Araújo, artista plástico, pintor, precisamente porque queremos olhar para os filmes de outra perspetiva e de não estagnar num sítio tão cinéfilo puro e duro. 

Ao explorar novamente esta América, descobrimos que existe um público interessado nas propostas e no cinema deste período. No geral, como correu o primeiro ciclo de exibições? As expectativas foram cumpridas?

Sim, foram aliás cumpridas e ultrapassadas. Em primeira instância o conceito da década de 70 era que era uma premissa muito nossa, mas foi muito interessante perceber que há vários tipos de público para este tipo de iniciativa e por exemplo, no ano passado, na sessão do “Taxi Driver” deparamos com jovens de 16, 18 anos que nunca tinham visto o filme e muito menos em tela, e cinéfilos infiltrados com 60 anos, que não só viram o várias vezes, como ainda desejavam lá voltar. 

E, portanto, eventualmente a cinematografia americana de 70 tem esta capacidade, esta elasticidade de chegar a públicos muito diversos e de os "resgatar" por uma abordagem de cinema que é bastante diferente. E isso significa que de facto, aquele ciclo correu muitíssimo bem e como tal decidimos regressar a ele. Era uma aposta sedutora, nós gostamos sempre de correr alguns riscos depois e ao mesmo tempo perceber a existência de audiências possíveis para este tipo de iniciativas.

Confesso que fiquei surpreso por ver “Enter the Dragon” nesta mostra, não porque não faça parte do cenário cinematográfico americano da época, mas porque parece destacar-se em termos de estilo e perspectiva política-social, em comparação com os outros filmes. Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?

Olhando para o “Enter the Dragon” … Bom, em primeira instância, a ideia de surpresa, nós gostamos sempre de ter um joker no meio destes ciclos. Ter algo que de facto nos aufere aquele sentimento WTF. No ano passado foi através do "Car Wash", um filme muito diferente dos restantes do ciclo, este ano acontece com o caso “Enter the Dragon", até porque o trabalho do Bruce Lee está completamente associado ao Hong Kong e aqui contamos com uma produção americana, devido à possibilidade da América de 70s acolher produções que não tinham necessariamente a ver com o seu próprio contexto, sendo outro espaço de liberdade que não sabemos se voltou a repetir depois. 

Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?

Temos dúvidas, ou por outra, o Bruce Lee claramente podia justificar um ciclo de artes marciais, temos dúvidas se existiria público para esse efeito. Parece existir um goodwill muito grande relativamente a este tipo de filmes o que não reflete necessariamente em público, e portanto, dificilmente olharemos para essas questões, sobretudo as questões de género ou de subgénero que colocas na ótica de importância cinematográfica. Tem mais a ver com a possibilidade da sua contextualização, mais do que outra coisa. 

AFI-Catalog-Spotlight-ENTER-THE-DRAGON-Bruce-Lee.j

Enter the Dragon (Robert Clouse, 1973)

Não temos a certeza de que o cinema de artes marciais seja um subgénero cinematográfico, sinceramente, mas estamos seguros de que ele teve, em certa medida, um contexto específico, bastante concentrado, apesar de existirem exemplos ao longo do tempo. Existe um período muito específico desse ponto de vista, no qual havia a capacidade de integrar a dimensão das artes marciais com outras componentes narrativas, entre outras abordagens. Isso, de alguma forma, foi-se diluindo ao longo do tempo ou viu surgirem outras abordagens um pouco distintas, algumas mais plásticas e visuais, outras mais focadas na tradição asiática, o que não era o caso das propostas que referi, e assim por diante. Mais adiante, temos alguns exemplos ligados à comédia slapstick.

Não estamos inteiramente seguros que isso possa fazer sentido. Pode fazer sentido sim encontrar objetos que, num outro contexto como este específico, podem encaixar e fazer sentido para audiências, mas não enquanto proposta muito concreta. Portanto é uma ideia que eventualmente não fica assim tão a pairar. 

É inegável que Paul Schrader continua a desempenhar um papel direto e indireto neste prisma cine-americano, como demonstrado por um dos seus filmes mais reavaliados, "Blue Collar".

Nós queríamos ir ao Paul Schrader há algum tempo. Interessa-nos a sua faceta enquanto realizador, visto que Schrader argumentista, encontra-se mais visível, o seu trabalho está muito revisitado. Interessou-nos ir a uma visão direta de realização, e mais antiga, claramente, até porque o Paul Schrader recente não estamos a avaliar qualitativamente, é diferente. 

Este “Blue Collar” tem uma série de características muito interessantes, a questão do dilema moral dos personagens. O próprio Richard Pryor, que acaba por ser uma espécie de grande figura ali no meio, que se foi perdendo depois ao longo do tempo de outra forma, interessou-nos esta lógica também ligada a um movimento sindical e a forma como ela era vista e trabalhada, e portanto também vamos ter na sessão do “Blue Collar”, Manuel Carvalho da Silva, ex-dirigente da CGTP, para a conversa e trazendo com isso um ângulo muito laboral, um outro olhar para este “Blue Collar” e isso interessou-nos mais do que outra coisa.

O que poderá dizer sobre os convidados? Que tipo de dinâmica espera criar através dessas interações?

Sobre os convidados … o que tentamos sempre é ter convidados, até este ano mais que a do ano passado, e com poucos especialistas. Não gostamos da ideia de especialistas, tentamos fugir dela como o “Diabo da cruz”, o que pretendiamos era procurar vozes que tenham opiniões diferentes sobre os filmes.  

Como já referido, no “Eraserhead” vamos ter o artista plástico Vasco Araújo, com uma visão claramente diferente sobre aquilo e, portanto, não nos interessa a ideia de género, por exemplo, ligado a terror ou a bizarria, mas outro tipo de abordagem. E na última sessão, para além de outro convidado, o Carvalho da Silva, também com uma visão sobre mais a ideia do mundo laboral do que cinefilia. Interessa-nos sempre haver esse tipo de discussão, sair do filme e não ficar fechado dentro dele. O ano passado conseguimos isso em espaços. Dependeu um ‘bocadinho’ dos convidados. Neste caso específico fizemos um esforço claramente maior para que isso aconteça.

blue-collar-de-paul-schrader-avec-yaphet-kotto-ric

Blue Collar (Paul Schrader, 1973)

Finalmente, teremos o desfecho da trilogia?

A resposta permanece a mesma que há um ano: não temos certezas. Tudo dependerá da avaliação que faremos disso e também muito do contexto do próximo ano, se se adequar. Não apreciamos a ideia de um festival ou de uma mostra cíclica que se repete. Isso significa que, muito possivelmente, há casos em que até podemos realizar uma vez ou duas, mas não necessariamente transformar isso numa iniciativa que ocorre anualmente e se consolida. Dependerá muito do que acontecer na programação ao longo do ano e do que pretendemos fazer também em torno desta questão dos anos 70. Isso pode implicar assumir outra abordagem, explorar diversas direções ou integrar-se em outros tipos de iniciativas. Esta é uma questão que estará claramente em discussão, mas, por enquanto, ainda é muito precoce para fazer essa avaliação.

Toda a informação sobre o ciclo aqui

Cresce e aparece! Close-Up recorda infâncias e adolescências na sua 8ª edição

Hugo Gomes, 12.10.23

Collage Maker-12-Oct-2023-10-16-PM-4548.jpg

O tema pode ser "Infância e Adolescência", mas, ao contrário do que indica, o Close-Up está bem "crescido" nesta 8ª edição. A decorrer de 14 a 21 de outubro na Casa de Artes de Famalicão, o Observatório de Cinema apresenta-nos mais uma galeria cinematográfica que orbita em torno desse território familiar, expandindo-se para eventos e diálogos, novamente pontuados com convidados de honra para enriquecer as sessões, concertos, leituras e sobretudo, amor pelas imagens, digamos, e à boa maneira, um amor bem "adolescente". Sobre a programação, ninguém melhor do que o programador, Vítor Ribeiro, para nos falar dela. Através deste convite do Cinematograficamente Falando ... chega-nos um teaser para este tão esperado "coming-of-age".

Gosto de pensar no Close-Up como algo animado, com vida própria, aproveitando os seus temas, títulos digamos assim, que fortalecem essa imaginada existência. Depois da viagem, o Observatório de Cinema assentou, constituiu família e agora recomeça sob o mote da Infância e Adolescência. Gostaria que me falasse do tema e de que forma enquadra-se na mostra deste anos, e já agora, sem querer revelar os ‘segredos’, como funciona a escolha destes temas, se esta narrativa é só da minha parte ou existe mesmo intenção de dar vida própria ao Close-Up?

Sim, a tua abordagem é correcta: há uma tendência dos motes se entrelaçarem com os anteriores, como se fossem sequelas de um filme que começamos a rodar em Outubro de 2016. O tema Infância e Juventude esteve no Close-up desde a primeira edição, inicialmente como secção. O cinema ao longo da sua história sempre integrou esta temática e permitiu apresentar olhares complexos sobre um dos períodos mais desafiantes da nossa existência, em que em simultâneo nos desafiamos na conquista da autonomia, enquanto assistimos à transformação do nosso corpo e das tensões que isso provoca com o contexto familiar e social. Curiosamente, nos últimos anos estrearam vários filmes de autores que trabalham esta temática, em que destacamos Jonas Carpignano, do qual exibiremos “A Chiara, o que permite uma boa mescla com filmes de autores importantes da história do cinema que revelaram habilidades particulares a lidar com a infância e juventude, como Abbas Kiarostami ou Maurice Pialat.    

É difícil falar de Infância no Cinema sem sequer mencionar o trabalho de Abbas Kiarostami, evidentemente o santo padroeiro do “Close-Up”, na programação o escolhido para representar essa filmografia é “Onde Fica a Casa do Meu Amigo” (“Where Is the Friend’s House?”, 1987). Sabendo que Kiarostami tem vasta obra sobre infância, crescimentos e até mesmo escolaridades, como recaiu a escolha deste determinado filme?

Onde Fica a Casa do Meu Amigo” é um filme muito importante dentro deste tema e também quando se olha para a obra de Kiarostami. Por um lado, não é possível fazer uma genealogia de um cinema sobre a infância sem incluir este filme, sem pensarmos nesta criança, em Ahmed, e na sua jornada para cumprir a missão de devolver o caderno do amigo. Uma criança que conquista a autonomia a pulso, que percorre uma larga distância num território difícil, analogia também de um regime político opressivo, o do Irão. É também o filme que abre a Trilogia do Terramoto, que permitiu a Kiarostami começar a desenhar a estrada da sua filmografia com a descoberta do seu cinema na Europa, premiado com o Leopardo de Ouro em Locarno

historia-tragica-com-final-feliz.webp

História Trágica com Final Feliz (Regina Pessoa, 2005)

Reparei que esta edição seja provavelmente das que menos acompanha a “espuma dos dias” em relação aos filmes, temos este ano uma programação que reúne, não só Kiarostami de ‘87, mas como também John Cassavetes, Glauber Rocha, Maurice Pialat e a obra-prima de Vittorio de Sica [“Ladri di Biciclette”].  

O programa do Close-up procura sempre o cruzamento entre cinema do presente e história do cinema, na concepção de que o desenho de uma programação pode acrescentar importância e singularidade a cada um desses filmes, que assim conversam uns com os outros. Se há algo que define o cinema é a sua capacidade de incutir memórias, de as transmitir entre gerações. Procuramos aproveitar um crescente e positivo movimento na distribuição, na disponibilidade de títulos da história do cinema com obras restauradas digitalizadas. E procuramos retirar peso à ideia de história do cinema, e fazê-la chegar aos vários públicos, incluindo a população escolar, na exibição de “Ladrões de Bicicletas”, que para além de se constituir como um objeto incontornável do neorrealismo, é também uma narrativa sem tempo, uma história universal, a relação entre um pai e um filho. Quando juntamos Cassavetes a Glauber Rocha, procuramos um diálogo possível, estabelecido numa barra temporal, mas também num discurso e num conjunto de ascendências comuns a estes dois cineastas. 

O que me pode dizer sobre os convidados deste ano, e do foco da animação portuguesa (especialmente a retrospectiva a Regina Pessoa) neste Close-Up.

Na secção Fantasia Lusitana procuramos distinguir um cineasta ou uma corrente singular do cinema português. Num ano em que se assinala o centenário da animação portuguesa, Regina Pessoa foi a escolha imediata para esta edição. O percurso premiadíssimo dos seus filmes não é suficiente para definir a importância de uma obra dentro do cinema de animação, que estabelecerá por certo uma influência nas próximas gerações. Regina Pessoa convoca para o seu trabalho um conjunto de temas, arriscaria obsessões, que a tornam uma artista única e que deve ser vista também fora dos festivais de animação e por vários públicos, incluindo o escolar e quem está a aprender a trabalhar com imagens, animadas ou outras. 

Este ano temos Paul Schrader e terror à portuguesa, mas em leitura. Pergunto desta forma, cinicamente ingênuo, o Cinema também se lê?

Os livros começaram a aparecer naturalmente no programa do Close-up, quando criamos a rubrica Café Kiarostami, que permite desenhar tangentes com a sala de cinema, através de outras disciplinas. Os livros sobre cinema são um contributo indispensável para uma relação privilegiada com o cinema, no âmbito da crítica ou da estética. Os exemplos desta edição ajudam a esclarecer as nossas motivações. O livro do Paul Schrader – “O Estilo Transcendental no Cinema”– auxilia a relação com um dos autores importantes do cinema americano, primeiro como guionista e cronistas dos anos setenta, para depois se impor como realizador, um autor que mantém a sua relevância no presente. O caso da edição de “O Quarto Perdido do Motelx", ajuda a descobrir filmes e autores do cinema português, com várias vozes que nos orientam nesse labirinto. 

image-w1280.webp

Where Is the Friend’s House? (Abbas Kiarostami, 1987)

40 Anos de Sétima Legião … Comemoração, ou urgência de reavivar a banda de sucesso, hoje, digamos, muito discreta?

Um dos destaques de cada edição do Close-up são os cruzamentos artísticos, principalmente entre cinema e música, que conduziu em anos anteriores a respostas a encomendas da Casa das Artes que resultaram em filmes-concerto em estreia por Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Mão Morta ou Orquestra Jazz de Matosinhos. É uma forma, também, de dialogar com a história do cinema, que foi o que proporcionou esta relação com a Sétima Legião, com quem queríamos há muito colaborar. Esta apresentação da Sétima Legião abrirá com a música em diálogo com “Um Tesoiro” (1958), uma curta-metragem de António Campos, um autor com quem a Sétima Legião encontrou fortes afinidades temáticas neste trabalho conjunto. O concerto que se seguirá, celebrará de forma viva quarenta anos de canções, de uma das bandas que melhor preenche o património das nossas memórias.  

Tendo em conta o percurso do Close-Up, para o ano estará a viver os primeiros romances?

Daria um bom mote. Mas para o episódio 9 ainda não o definimos, até porque ainda estamos a pensar nas réplicas do episódio 8, três momentos de programação (Janeiro, Março e Maio) onde voltaremos ao tema Infância e Juventude, e às obras de John Cassavetes e Glauber Rocha. O mote de cada edição, além dessa preocupação de se relacionar com as edições anteriores, depende em grande medida dos filmes e dos autores que queremos mostrar e associar. Como um bom treinador, que define a sua equipa não tanto através da obsessão de cumprir uma táctica ou um sistema, mas antes na preocupação de colocar em campo os melhores jogadores.

387852742_702479348586691_343512918877944977_n.jpg

Ver toda a programação aqui

The Card Counter: Uma mão cheia de manias, rotinas e "cinema confortável"

Hugo Gomes, 16.11.21

4rxYTwzfkOYVHpi6jCwLuxlkh5G.jpg

Em 2017, surpreendido, defendi contra as muitas vozes opostas à genialidade de “First Reformed”. Na altura entreguei o peito às balas como garantia de apreciação a uma atípica obra de um argumentista que constantemente tenta-se demonstrar como cineasta que cujo resultado tem sido uma acumulação com projetos imprecisos (uns mais interessantes que outros, é um facto).

Após esse “sucesso”, chamemo-lo assim ao fenómeno que virou este ateu num crente epifânico, Paul Schrader recorre à sua vencedora fórmula com este “The Card Counter”, uma evidente citação e recitação do cinema com que ama e porventura ousa em invocar, é uma “mão segura” ao invés de uma arriscada aposta. Perante tal recolhi-me à minha própria angústia e inicio uma autoflagelação enquanto castigo de purificação dos pecados que cometi (diria à ingenuidade de ter acreditado na sua capacidade de seguir na frente de outras linguagens, formas e abordagens neste meio), Schrader voltou ao seu anterior estado, à construção somente envolto de filmes alicerçado à sua noção de “confortável”, piscando, friamente, os olhos à cinefilia (que partilha com outros) com confiante mimetização.

Em parte é “mais do mesmo”, a reconstrução do “Taxi Driver” por vias de equações e somas de diferentes partes como o “blackjack”, esse jogo que o protagonista (Oscar Isaac sobressai nisto tudo com um homem arrastado nas suas criadas profundezas) é rei, “baseado em eventos dependentes, o qual um passado significativo afeta as probabilidades do futuro”. Ou seja, andamos em círculos na criatividade de Schrader, que tinha boas probabilidades de sair-se Grande.

Os Melhores Filmes de 2018, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 02.01.19

Depois de uma colheita minimamente dececionante [2017], seguimos para um lote frutado e recheado de cinema diversificado, de temáticas de difícil digestão e até estéticas que primam pelo classicismo e o progressismo. Assim sendo, 2018 foi propicio às trevas que habitam no coração dos homens, aos amores escaldantes nas diversas “juventudes” e até mesmo à Disney como imagem do novo “sonho americano”. Este foi o ano em 10 filmes ...

 

#10) Jusqu'à la Garde

custody01.jpg

“Uma histórias de “monstros” que se confundem como figuras paternais durante uma batalha campal. A separação, a custódia e a disputa pelo prémio em forma de primogénito leva-nos a um suposto drama de contornos realistas que transforma-se, à velocidade de um estalar de dedos, num tremendo thriller psicológico. É como se The Shining (o de Kubrick e não os escritos de Stephen King) fosse transportado para a sua “pele” mais mundana. Que rica primeira longa-metragem do ator Xavier Legrand.

 

#09) ROMA

Roma-de-Cuaron-e-da-America-Latina-900x506.jpg

“Um filme de detalhes e de ecrãs dentro de ecrãs (e assim sucessivamente) que persiste na vitalidade cénica com que Alfonso Cuáron deseja ser reconhecido. É um choque de classes e de géneros, que ao invés de contrair uma pobreza desencantada como muitos que anseiam filmar a precariedade, encontra no seu rigor estético uma beleza formal de quem deseja salvar estas personagens de um certo vampirismo miserabilista.”

 

#08) The Project Florida

the-florida-project-estreia.jpg

“Um anti-filme da Disney filmado às portas do tão omnipresente “parque encantado”, com as personagens marginalizadas por esses “autênticos” contos de fadas a obter os seus respetivos holofotes. O realizador Sean Baker parte para o naturalismo deste mesmo leque que goza da sua pitoresca paisagem de motéis e lojas XXL, um reino fantástico aos olhos das crianças que anseiam perder na Terra do Nunca para se afastarem da irresponsabilidade dos adultos. A juntar à equação, um Willem Dafoe que se camufla com este ambiente de náufragos.”

 

#07) Hereditary

MV5BMDdmNjhmNmUtNmUyMy00NjY3LTlkOWMtODQzYTMwYzI3OD

“O terror é hereditário. Está no sangue daqueles que são marcados desde a nascença e que não conseguem escapar aos desígnios do género. Ari Aster é um desses “amaldiçoados”, pelo que consegue nesta sua primeira longa-metragem executar um dos ensaios mais estetizados, sinistros e atmosféricos que este território tem para nos oferecer nos seus mais recentes anos. E não é todos os dias que evidenciamos uma Toni Collette explosiva que (literalmente) sobe as paredes.”

 

#06) Shoplifters

Film-Review-Shoplifters-A-masterfully-heartbreakin

“A subtileza quase melosa é a arma furtiva para que as personagens se submetam aos ditos experimentos … e o espectador também. Depois seguimos na pista de outros “lugares-comuns” do cinema de Koreeda, entre as quais a inclusão social que já se encontrava presente no seu primordial Maboroshi (1995) ou as constantes críticas ao sistema judicial e prisional nipónico visto e revisto em Air Doll (Boneca Insuflável, 2009) e The Third Murder (O Terceiro Assassinato, 2017). Elementos para racionalizar e sobretudo sentir com a sensibilidade de alguém que sobressaiu do formato reportagem e documental, evidenciando com isso o detalhe da tendência observacional de Koreeda pelo seu redor e do invisível.”

 

#05) Happy End

happy-ende-01.jpg

“Meticulosamente, Haneke vai construído o seu ambiente, uma atmosfera de iminente catástrofe. Sentimos isso, essa faca aguçada que nos ameaça. Somente ameaça. E é então que chegamos às festas; a primeira ao som de um angelical violino e um discurso de boas-vindas pela nossa Isabelle Huppert; somos convidados a um cruzar de olhares, a um clima de suspeita, ao nascer de um "monstro", a relações proibidas secretamente vividas no ar, às conversas soltas que nos confundem mais e mais. Saímos a meio, e partimos para outro festejo. O caos já é elevado, as consequências são fatais, fazemos corar as implantações de Luis Buñuel, os burgueses "estão em maus lençóis".”

 

#04) Cold War

cold-war-696x392.jpg

“Se Ida era considerado um filme frívolo, Cold War vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos.”

 

#03) Der Hauptmann

72bc498d-8760-4600-bb91-b24231f4b0d6.jpg

“Não se trata de hora marcada com a raiz do mal, a farda não descreve o nazismo fechado a conceito implantado (mesmo que fascínio entre uniformes e alemães seja algo mais interiorizado e já citado no Cinema, a ter em conta O Último dos Homens, de F.W. Murnau). Sim, as divisas de capitão funcionam como o mais recente acordo do demónio Mefistófeles, oriundo do romance de Goethe. A sua escapatória e, ao mesmo tempo, a agendada descida aos infernos existencialistas, o animalesco da sua própria vivência.”

 

#02) Call Me By Your Name

call_me_by_your_name_trailer_1050_591_81_s_c1.jpg

“Não se trata de um “somente” filme queer, mas sim de um amor de verão adjacente a um certo bucolismo, jovial e proustiano que se atenta nos desempenhos naturalistas dos seus atores (um promissor Timothée Chalamet e um sedutor Armie Hammer). Apesar de centrar nas paixonetas de um adolescente na descoberta da sua sexualidade, é um joguete maduro por parte de um realizador versátil, que por sua vez procura o seu próprio gesto autoral. Uma obra que não merece de todo ser desprezada.”

 

#01) First Reformed

first-reformed-schrader-633x356.jpg

“Enquanto que Taxi Driver resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, First Reformed olha para o mundo deixado por Taxi Driver, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).”

 

Menções honrosas: The Phantom Tread, The Other Side of the Wind, The Isle of Dogs, Girl, A Simple Favor

"First Reformed" e a epifania do autor incompreendido

Hugo Gomes, 29.06.18

First-Reformed-Review.webp

Paul Schrader sempre fora estudado como um curioso caso isolado. Cinéfilos de gema e com profundos conhecimentos da natureza cinematográfica, por norma, nunca geram grandes cineastas e o invocado é exemplo disso. Por mais esforços que cometa (até mesmo o próprio admite), será relembrado no fim dos seus dias como o argumentista ao invés da sua carreira a solo, esta diversas vezes subestimada na indústria que insere.

Em todo o caso, Schrader é um "outsider'' duma Hollywood que não acredita em si própria, e os seus filmes [dirigidos] são a prova de uma total descrença no sistema como na emanada cinematografia. Contudo, eis que nos chega “First Reformed”, que diríamos ser o fim de uma dificultada maratona, uma corrida de resistência que culmina numa fadiga constante de um autor decepcionante perante os obstáculos que sucedem a (ainda) outros obstáculos. Provavelmente esta é a sua epifania, a desilusão ao tomar conta da figura, e esta projetada no destino da Humanidade por via da sua ferramenta mais íntima.

Sob o protagonismo envolvente de Ethan Hawke (possivelmente o seu papel mais visceral, inerentemente falando), “First Reformed” nos leva, como as palavras indica, a passos cuidadosos para uma igreja secular, o travelling de espera na passagem dos créditos iniciais nos transmite um efeito de reconhecimento perante o cenário que servirá mais que template da narrativa, uma aura fantasmagórica, a ponte invisível entre mortal e o divino imortal. Nela, Hawke, um “pároco” (reverendo Ernst Toller) que perdera o seu filho na Guerra, fustigado por uma angústia silenciosa somente tranquilizada pela fé pregada, ou sem rodeios, uma espécie de analgésico espiritual. Mas é ao encontro de um dos seus “cordeiros”, um ambientalista desesperado pela descrença na tão negligenciada humanidade, que Toller despertará para uma nova realidade, um fosso que parece interligar o seu luto que se revolta para com o estado das coisas que o rodeiam.

Por mais referências que encontremos neste espiritualismo mutilador, de Bresson a Ozu (passando por Dryer e Bergman), que transcrevem os planos e os movimentos destas personagens suicidas, é a autorreferência de Schrader que “First Reformed” triunfa como uma meta atingida. É o “Taxi Driver” do novo século, inserido num mundo no qual têm que partilhar com os imensos “rebentos” do mundialmente conceituado filme de Martin Scorsese (que o próprio Schrader escreveu). É a estrutura intacta a servir de fortalecimento a este grito de ajuda, tal como a igreja que assume -se como vetor narrativo, é a reconstituição moderna perante um “esqueleto” de outros tempos, assim, “First Reformed” sob um tremendo ar bafiento de ’70 (não com isto insinuar que o Cinema precisa diariamente de lufadas de ar fresco) ergue-se numa ousadia modernizada.

Enquanto “Taxi Driver” resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, “First Reformed” olha para o mundo deixado por “Taxi Driver”, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletarismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).

Não saindo da temática das causas, “First Reformed” liberta-se do filme-ficção para endurecer como a causa que Paul Schrader fervelhava no seu negro íntimo. E sob o reflexo das suas paralelas criações (First’ e Taxi’), eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então).

Atenção, daqui fala um anterior cético (à imagem da descrença absoluta de Ethan Hawke) que, também graças à bênção divinal nos braços de Amanda Seyfried, tornou-se num crente. Devastador e destemido. Existem atualmente poucos filmes assim.

O novo Taxi Driver?

Hugo Gomes, 02.09.17

36323979_10211848297579741_8754412726832332800_o.j

A fragmentação espiritual leva First Reformed aos caminhos reconhecíveis de Taxi Driver. Contudo, se o filme de 1976 resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader na realização remete-nos ao ativismo dos sábios. Eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então). E daqui fala um anterior cético que tornou-se num crente perante a descrença absoluta de Ethan Hawke. Devastador e ousado.