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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Uma mulher na conquista de Hollywood

Hugo Gomes, 15.12.20

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Erradamente induzido a um símbolo de emancipação feminina, “Wonder Woman” [o filme de 2017] conquistou uns impressionantes 800 milhões de dólares em bilheteiras de todo o Mundo, sem sequer apercebemos que a grande heroína neste cenário foi a sua realizadora, Patty Jenkins.

Não se tornou, outro erro comum que muitos caíram, na primeira mulher a comandar um filme de super-heróis, esse subgénero cada vez mais vincado (antes dela, Lexi Alexander e Karyn Kusama), mas fora a primeira a ter ao seu dispor uma produção com um orçamento acima dos 100 milhões. Por outras palavras, a mulher vinda da televisão e de uma longa-metragem telefílmica que levou Charlize Theron ao Óscar [“Monster”, 2003] assumiu-se como uma guerreira numa indústria ultra-capitalista ainda maioritariamente liderada por homens. Se existe toda uma Mulher Maravilha nisto tudo, é ela mesmo.

Portanto, como já havia referido, 800 milhões angariados dá direito a sequela, se não fosse o facto de este produto inaugural com Gal Gadot estar inserido num universo partilhado, aquelas novas denominações e definições de franchise. Contudo, com adiamentos vários, uma pandemia a ser vivenciada e um estúdio de mãos dadas com uma plataforma de streaming que, ao seu jeito, encontram uma solução para estacar (ou apaziguar) o prejuízo, eis que chega-nos “Wonder Woman 84”, um blockbuster num ano escasso deles.

Com Patty Jenkins novamente no poder, requisitou-se as simples leis da “sequelite” – “mais e melhor”- e em todo o seu esplendor, esta nova produção da Warner Bros é ela mesmo, exagerada, ambiciosa, mas nunca dependente da credibilidade, nem da simulação de tal. A realizadora tinha em mente uma invocação de um espírito longínquo, totalmente perdido neste boom do subgénero que tem variado entre a seriedade e alter-realismo ou o chico-espertismo e o extenso tom paródico, o estilo “camp”, o qual levará muitos adeptos aos tempos de Lynda Carter e as suas episódicas aventuras nos anos 70.

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Confere que a Warner Bros. / DC tem sorrateiramente estabelecendo essa via, basta recordar o tecnologicamente submarino “Aquaman” (James Wan, 2018), só que é na conhecidíssima super-heroína que o estilo é assumidamente erguido nos seus momentos de ação, ou na devolução da figura pedagógica e demagoga a estes figurinos de comics. Os dias atuais levam-nos a encarar com ceticismo e desconfiança à ingenuidade gratuita, ao ativismo utópico próprio de fantasias hollywoodescas, e ao propagandismo samaritano. Sim, há uma demanda ideológica e deveras moralista no sacrifício da nossa heróica mulher, nada de sobrenatural neste registo, nem sequer no subgénero, porém, é a sua devoção explícita que enaltece esse lado escapista e “arcaicamente devedor” da BD em si.

Wonder Woman 1984” funciona, mesmo que desigual, como um tributo à aura dos comics, uma espécie de regressão que o torna limitadamente “fora da caixa” perante a tendência produtiva. O resto, meus amigos, é Patty Jenkins a operar uma produção de grande escala, simbólica, e de coração pulsátil quanto ao seu senso de dever (segundos as mais recentes notícias, a realizadora irá envergar a galáxia “Star Wars” para a Disney, espera-se uma conquista a esta Hollywood megalómana ainda, muito, masculina).

Por fim, Gal Gadot continua muito mais que uma pin-up outrora vencida, dando o corpo a este manifesto, contra duas figuras antagónicas (Pedro Pascal e uma inesperada Kristen Wiig) que carregam o tom fabulista no filme. Porque no fundo, “Wonder Woman” é, isso mesmo, uma fábula à escala de Hollywood, com uma América idealizada e convicta para o Mundo ver.

No pelotão das minorias segundo Hollywood

Hugo Gomes, 06.06.17

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Esta não é a primeira vez que os super-heróis seguem a batuta feminina, mas é um marco que um deles atinja os 100 milhões de dólares de orçamento o que, tendo em contas as notícias que surgem, trata-se de uma repercussão positiva. Lexi Alexander e Karyn Kusama (citando duas) arriscaram neste mundo ainda plenamente masculino, e os resultados foram, em todo o caso, infelizes. Porém, Patty Jenkins (cuja primeira obra garantiu um Óscar a Charlize Theron) vem provar que é possível quebrar as barreiras estranhamente estabelecidas, fazendo-o da mesma maneira que uma Kathryn Bigelow faria: jogando o mesmo jogo tendo como objetivo superá-lo.

Wonder Woman”, o quarto filme do universo partilhado da DC, a meio-gás em comparação com a concorrente Marvel, não chega como um apogeu do seu subgénero, nem como desestabilizar os mesmos códigos. Trata-se somente de uma evolução industrial que simpaticamente exibe alguns dotes valiosos do chamado cinema-espetáculo. Em entrevista, Jenkins afirmou que trabalharia com esta Mulher-Maravilha da mesma maneira que Richard Donner operara com Super-Homem de Christopher Reeve, ou seja, convencer inteiramente que um homem pode realmente voar, neste caso, que uma mulher se assumiria mais, em palco de Guerra, que uma espécie de pin-up bélico, e sim, um catalisador do seu fim.

E é verdade, que com a mistura de uma mitologia grega disfarçada e o mundo vivendo a sua Primeira Grande Guerra como se fosse o eterno apocalipse, “Wonder Woman” consegue envergar por uma maior transparência da sua personagem feminina, assim como as minorias que compõem este esquadrão de “inglourious basterds“. Não há que fingir, Jenkins está interessada, dentro dos vínculos de limitação do produto, em erguer uma espécie de statement sobre a discriminação de género e racial, usufruindo das influências de Edgar Rice Burroughs (o autor de Tarzan e John Carter) para se disfarçar num simples filme de aventuras.

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Em Gal Gadot encontramos os traços desenvolvidos de uma personagem em constante descoberta. A atriz foi capaz de separar os flashbacks como uma essência temporal manipuladora da sua figura. Aliás, o tempo tem um papel importante nesta intriga, visto que será o mesmo em que o espectador se interiorizará por épocas vividas e desvanecidas na memória. “Wonder Woman” joga com o tempo de duas maneira: na primeira, todo o enredo central é integrado num extenso flashback, narrado pela própria Gal Gadot. Neste duo temporal é possível o espectador assistir a uma metamorfose posicional, assim como emocional, das duas figuras. Segunda, o tempo opera como uma jornada de criação, neste caso, um híbrido de mitologias, expostas de forma dimensional uma com a outra. A paradisíaca ilha helénica onde amazonas, mulheres emancipadas, vivem subjugadas às histórias e leis, e a “civilização”, que vive num extremo conflito. Aqui as mulheres vivem em plena transição dos seus iguais direitos sociais (como podemos ver na baixinha suffragette Lucy Davis nas sequências londrinas).

Contudo, o tempo atraiçoa o filme e quando este chega ao ponto em que já não existe mais nada para provar (a batalha de No Man’s Land leva-nos a essa linha de fim criativo), “Wonder Woman” cede aos lugares-comuns desta “linha de montagem”: cai na previsibilidade amorosa e no estapafúrdio da batalha final, onde os efeitos especiais protagonizam pela enésima vez e a moral sobre a natureza da Humanidade vem à baila como um slogan. É o impasse desta maravilha que não funciona de todo maravilhosamente, mas nota-se: Patty Jenkins é sempre uma rebelde na sua cadeira de conforto e, desafiando a própria convenção de Universo Partilhado, o filme tende em abrir e a fechar plenamente, sem a necessidade de ganchos, previous episodes ou cliffhangers.