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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na construção de um remake à portuguesa! Conversa com Patrícia Müller

Hugo Gomes, 25.07.22

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Nos bastidores de "O Pai Tirano" (João Gomes, 2022)

Uma das grandes apostas do cinema popular português deste ano é uma nova versão do clássico “O Pai Tirano”. Reconhecido por muitos como o mais “perfeito” das ditas comédias portuguesas, ou adquirindo hoje o pejorativo e contextual termo de "comédia salazarenta", o filme de 1941 realizado por António Lopes Ribeiro e com um dos papéis mais acarinhados de Vasco Santana e de Francisco Ribeiro transforma–se numa comédia de época de linguagem modernizada composto por um elenco bem apreciado pelo grande público; José Raposo, Miguel Raposo, Jessica Athayde, Diogo Amaral e Rita Blanco.

Entretanto, é sempre um risco remodelar memórias passadas e com alguma estima pelo grande público, mesmo que a anterior refilmagem de “O Pátio das Cantigas”, sob a "batuta" de Leonel Vieira, tenha revelado num estrondoso êxito, mas penosamente “atacado” pela crítica e por uma fatia grande de espectadores (não devemos esconder o facto que a qualidade do filme teve repercussões na descida dos dois capítulos posteriores no box-office), “O Pai Tirano” (dirigido por João Gomes) segue o desafio de trazer à luz do século XXI uma das produções mais queridas pelos portugueses.

A história de um vendedor de sapatos e aspirante de ator de teatro nas horas vagas, Chico, que tudo faz para conquistar a sua amada Tatão, uma amante de cinema, e que acidentalmente se vê envolvido em peripécias e um jogo de enganos que irá comprovar se o amor existe ou é somente uma alucinação sua, tornou-se matéria “espinhosa” para Patrícia Müller, um dos dois argumentistas do filme (ao lado de Miguel Viterbo). Com mais de vinte anos de carreira, especializada na televisão (de séries a telenovelas), contribuindo para uma nova ficção portuguesa que hoje próspera nos mais diferentes formatos, a guionista “aventurou-se” (talvez seja a palavra mais adequada) no cinema português.

O Cinematograficamente Falando … convidou-a a conversar sobre o processo do filme, mas mais do que isso, dar voz a um dos elementos mais desprezados da nossa “indústria” (as aspas adquirem aqui um tom ambíguo), as dos argumentistas. Entremos então na construção de um remake no prisma de quem o escreve.

Enquanto argumentista, como foi o processo de “transcrever” “O Pai Tirano” para uma nova e modernizada óptica? Quais foram os desafios?

A proposta partiu do produtor José Francisco Gandarez, da Sky Dreams, a mesma produtora da anterior trilogia [“O Pátio das Cantigas”, “O Leão da Estrela” e “A Canção de Lisboa”]. Só que “refazer” “O Pai Tirano” não seria uma tarefa fácil. Apercebi disso quando revia o filme, constatando que o enredo girava envolto do teatro e nos dias de hoje, no caso de uma modernização, seria muito difícil (ou até impossível) encontrar um correspondente a uma peça de teatro. Se a ideia era manter o teatro na intriga, não poderíamos modernizar a história, porque o teatro não possui o mesmo impacto que tinha nos anos 40 (a época onde o clássico decorria).

Ao estudar pormenorizadamente o filme, deparei com o seguinte: “O Pai Tirano” foi produzido em pleno fascismo, no meio da Segunda Grande Guerra, e como bem sabemos, Portugal estava a evitar entrar nela, factos curiosos que aproveitei para estabelecer uma ponte entre o presente e o passado. Foquei na importância das comunicações e na questão das Mulheres, salientada aqui na personagem da Tatão (uma feminista bem retratada pela Jessica Athayde), ou outras ideias que contribuíram para que o projeto ganhasse uma forma própria, abandonando a pensada atualização da história. Decidimos então seguir pela via do remake, até porque, logisticamente, o original de 1941 era um filme praticamente de interiores, barato digamos, e como não tínhamos dinheiro para reconstruir uma Lisboa à imagem da época, tínhamos aqui a solução ideal.

Estando agora o projeto finalizado, que grandes diferenças, ou aliás as mais fulcrais sobressaídas na escrita, que encontra nesta versão para com o original de 1941?

As grandes diferenças? O guião não é o mesmo, ou seja, somente aproveitei alguns elementos da história e as transformei em algo distinto. Por exemplo, enquanto o original é um comédia de enganos, este é assumidamente uma comédia romântica. Julgo que com esta mudança de tom, as personagens adquiriram mais espessura, motivações mais fortes e complexidades em comparação com a matéria-prima. Contudo, mantivemos a essência dos enganos, até porque é a matriz da história.

Depois temos as Mulheres, do qual concentrei as minhas forças em atribuir-lhe dimensão, coisa que não tinham na versão de ‘41, e é possível notar diferenças enormes entre a nossa Tatão e a encarnação de Leonor Maia. Acho que se não trabalharmos personagens femininas, adequando-las aos tempos de hoje, é um desperdício de uma oportunidade de ouro. Depois, outra diferença evidente, estás nas previsões da personagem do Ciriloff (no original interpretado por Eliezer Kamenesky, aqui por Jorge Mourato), porque em pleno 2022 temos a perspetiva de como o futuro de 40 seria.

Mas o mais importante deste projeto, e estava a falar disso no outro dia, é que estamos a viver tempos perturbantes, saímos de uma pandemia, entramos numa Guerra e estamos a lidar com os incêndios, ou seja, o ambiente está pesado, quer para Portugal, quer para o Mundo, e a ideia era criar um filme otimista, de bom coração, em que as pessoas saiam da sala bem.

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O Pai Tirano (António Lopes Ribeiro, 1941)

Houve alguma imperatividade na escrita deste projeto pela produtora? Por exemplo, manter certas piadas ou trocadilhos? Diálogos que eram impedidos de ser alterados ou “cortados” nesta transição?

Nada. Os trocadilhos que estão, foram aqueles quis manter, como a do “copinho de vinho branco”, do qual João Craveiro e Rita Blanco estiveram encarregues de o materializar. Tentamos não restringirmos ao original, dando espaço para nossa criatividade, por exemplo, nesta versão, a peça está em plena escrita e da autoria do Santana [personagem de José Raposo], no de ‘41, a peça já se encontrava escrita e a autoria era desconhecida. Mas esse processo em que o personagem se vê envolvido, é também ele um motor para dar-lhe mais espessura. É um artista com um bloqueio, ou vulgarmente chamado de “branca”, ou seja é uma personagem com um dilema … como também originará uma certa crítica ao cinema autor português.

Sim, quanto à "crítica ao cinema de autor português” já ia mencionar mais à frente. Mas já que falamos em mudanças, não foi só a personagem da Tatão a obter um “makeover”, a do Santana também é saliente. Senti uma personagem algo melancólica, longe do patusco e cheio de si do Vasco Santana.

Não diria melancólico, mas quis transformar o Santana num verdadeiro “artista português”, como aquela personagem do Herman José, mas com isto transmitindo a realidade de Portugal das dificuldades dos artistas em “fazer a sua arte”. O Santana deste filme, não só está a escrever a sua peça, como está a vender sapatos ao mesmo tempo. O verdadeiro artista português é aquele que dedica à sua arte à noite, onde todos dormem. Não diria, de todo, melancolia, mas talvez intensidade, porque esta personagem está determinada em transformar aquelas linhas em uma grande obra, é um homem de culto que conhece Platão, só que se encontra aquém dos seus desígnios.

Trágico? Talvez seja trágico a palavra que procurava para o descrever.

É um artista esforçado, aquele que não consegue realizar as suas ambições. Sim, concordo consigo nessa descrição - trágico - o homem que não se consegue concretizar.

Mas voltando ao novo tratamento da Tatão, e olhando para a sua longa carreira enquanto argumentista [as séries “A Rainha Bastarda”, “A Generala”, por exemplo], tem sobretudo destacado personagens femininas fortes nos seus trabalhos.

Isso é mais forte do que eu. Quando vi a original Tatão, encontrei rasgos dessa força. Ela tinha lá isso. Há uma sequência em que a personagem revela opiniões assertivas sobre cinema, ou seja, se não fosse a época, os envolvidos do “O Pai Tirano” fariam muito mais com ela. Ou se não puderam, ou não quiseram, ou não sabiam, conforme tenha sido o motivo na altura. Era nossa obrigação devolver esse estatuto à Tatão. Alto e em bom som, a Tatão era uma feminista. Era uma mulher completamente fora do seu tempo, e o engraçado é que nós podemos brincar com o tempo, então a Tatão do nosso filme, apesar de estar em Portugal de 1940, não é uma mulher de 1940, enquanto que o Chico é de 1940, é um clássico. E isto foi importante para o “background” das personagens, fazer esta divisão, é mais conceito do que propriamente história de vida. Queria uma Tatão feminista e moderna, um Chico conservador e um Santana artista genuíno com um bloqueio, foi assim que começamos por conceber estas personagens, a trabalhar nos seus conceitos. São arquétipos que achei fazer sentido neste filme, jogando um ping-pong entre 1941 e 2022.

Mas por mais progressista que tenha-a concebido, tal como no original, ela acaba por ceder ao “conservadorismo” do Chico.

Porque ela é “boa miúda”. Ela não cede ao conservadorismo, ela cede ao romantismo. Por isso é que encarei isto como uma comédia romântica. O primeiro encontro com a Tatão, temos a percepção de estar perante uma “sanguessuga”, mas não a conhecemos verdadeiramente, assim como as personagens do filme … nomeadamente o Chico … isso tem a ver com o feminismo, a sua descoberta enquanto mulher, a coragem de “tirar as meias”. Sim, porque naquele tempo “estar sem meias” em público é um arrojo, um statement contra o patriarcado, e na Tatão é uma demonstração da sua força como mulher, emancipada e distante da sua época. Há um desenvolvimento na personagem ao longo do enredo, e apesar do romantismo, nada disso a faz subjugar, ela perdoa e persiste no amor sozinha. É a sua vontade, a sua prova de coragem.

Considera-se uma argumentista romântica?

Tenho um gosto variado. Recordo que na altura do meu livro “A Rainha Bastarda”, o Miguel Real escreveu uma crítica para o Jornal de Letras, o qual gosto muito, afirmando que tenho um “pendor para o grotesco”, naquele leque de personagens o romantismo não habita. Neste filme quis trazer essa veia romântica pontuada num tom light, até porque este filme foi escrito e rodado em plena pandemia, era importante não invocar um “ambiente pesado” para os espectadores, constantemente “bombardeados” com más notícias. E visto o original ter essa ternura, decidimos transpô-la para os dias de hoje, e nesse processo fomos enriquecendo as personagens, nomeadamente a das mulheres.

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O Pai Tirano (João Gomes, 2022)

Antes de começar a escrever “O Pai Tirano”, já havia alguma decisão quanto ao elenco?

Nada. Mas obtivemos algumas surpresas.

Olhando para a sua carreira, maioritariamente televisiva, e tendo começado com a série de êxito “Os Morango com Açúcar” …

Por acaso a minha estreia com os “O Triunfo dos Porcos” [em 2001], mas sim “Os Morangos com Açúcar" foi o meu boom. Digam o que disserem, foi a minha grande descoberta na ficção.

Certo. O que queria perguntar é que, tendo em conta que esteve por detrás de imensas produções de êxito em Portugal como “Os Morangos com Açúcar" e várias novelas, e hoje testemunhando um outro tipo de ficção em televisão, nomeadamente a elogiada série “A Luz Vermelha”, como vê a produção nos dias de hoje e o seu desenvolvimento ao longo destes anos?

Tive sorte, porque quando saí da SIC, há 7 anos, depois das “Poderosas”, foi na altura em que a RTP teve um novo diretor de ficção, Virgílio Castelo, que implantou uma nova política de constantes produções fictícias sem ser telenovelas. Então, de 7 anos para cá, não faço outra coisa sem ser escrever séries e livros. Portanto, isso significa que a minha experiência (acredito que isto é tudo experiência e teste) é muito grande. Considero-me sortuda nesse sentido. Quanto à produção, e verdade seja dita, a pandemia ajudou a fomentar esse “boom” produtivo, sabendo que antes já havia a febre das séries, incentivada pelas plataformas de streaming, mas o que aconteceu é que Portugal não ficou atrás. Ainda não competimos com outros países, entretanto não estamos indiferentes.  

Em conversas recorrentes com um dos seus colegas, uma das grandes “queixas” acerca do cinema português, é o total desprezo pelo argumento, e consequentemente pelo argumentista.

É verdade, mas isso tem a ver com a eterna luta do cinema de autor. Nós vimos de um historial de uma cinema de autor do Maio de 68, uma influência de França como bem sabemos, o qual se considerou o argumentista inexistente. Ao invés disso, era o realizador, independentemente da sua comunicação com o público, dizia o que queria. A sua visão era dominante. E nós viemos daí … ou seja, não havia argumentistas, apenas realizadores que escreviam, o autor.

Só que com o boom da televisão, há que perceber que muito deste cinema não atrai o público para tornar o nosso panorama numa indústria sustentável. O que temos que entender é que este cinema de autor é um cinema de festivais, um cinema mais artístico, não um cinema de grande público. Atenção, isso não faz mal nenhum, esse cinema está tudo certo, o que acontece é que isto provoca uma clivagem entre o público e o cinema. O tal público que “consome” este tipo de cinema não é o “grande público”.

É curioso falar da indústria cinematográfica portuguesa, porque nunca acreditei realmente que temos uma indústria.

Esse é o problema. Devido a isso continuamos a depender do Instituto de Cinema - e graças a Deus que existe e que faz um excelente trabalho, diga-se de passagem - em garantir a existência desse cinema mais cultural e de cunho autoral. Trazer o público ao cinema português interessa-me verdadeiramente. Levá-los de volta ao “escurinho” do cinema, essa experiência incrível, e para tal é preciso também conceber cinema popular que atraia esses espectadores. Admito que gosto bastante do streaming, mas a sala de cinema é única e insubstituível.

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O Último Banho (David Bonenville, 2020)

Mas os números que têm saído em relação ao cinema português este ano … são bastante “maus”.

Completamente, tenho visto os números e é de temer. E é uma pena porque existem filmes muito interessantes do nosso panorama, e atenção, apesar daquilo que disse, gosto bastante de cinema de autor português. Eu vejo tudo. Olha, este ano, “O Último Banho”, o filme do David Bonneville que ganhou os Prémios Sophia, é extraordinário, assim como muitos outros filmes que produzimos recentemente. Infelizmente, o público não chegou lá.

Gostaria de perguntar, visto ter experimentado o cinema português neste “O Pai Tirano”, não teria disposta a experimentar outras aventuras sem ser a do argumento? O Tiago R. Santos, colega seu, conseguiu este ano lançar a sua direção numa longa-metragem - “A Revolta”. Teria interesse, por exemplo, em apostar na realização?

Nada. Tinha já falado com o Tiago, o qual conheço há muitos anos, sobre isso mesmo, mas o meu interesse em aventurar na realização é zero. Contudo, existe algo no qual desejo arriscar - na direção artística. Interessa-me completamente, o de estar envolvida ainda mais no processo de produção. Julgo que estou na fase certa para isso, possui a experiência necessária para seguir a produção criativa dos projetos.

Já que fala no futuro, que novos projetos tem em mente?

Concorri tudo que tinha para concorrer no ICA, e agora encontro-me a escrever um novo livro, o qual planeio lançar no final deste ano ou no princípio do próximo. Estou 100 % concentrada na minha demanda literária. É algo que me dá, sobretudo, muito prazer.