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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Capital humano desidratado

Hugo Gomes, 01.04.23

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Roma está à seca, literalmente. A capital italiana vive uma crise hidráulica sem precedentes que despoleta uma distopia social onde a água torna-se no maior dos luxos e um delimitador de classe, e a acrescentar ainda uma desconhecida e mortal epidemia. Enquanto isso, no leito seco do Rio Tibre, um torso de um colosso é redescoberto, levando em alvoroço um grupo de jornalistas perante a possibilidade de captar as “primeiras imagens” do achado, como muitos prometem, prontas para ser transmitidas em horário nobre nos respectivos noticiários. Porém, à chegada do telejornal é a escassez de água e todas as suas repercussões sócio-políticas que fazem as honras no pequeno ecrã. Ninguém quer mais saber de “faits divers”, e sim, de como “matar a sede”.

Evidentemente influenciado pela pandemia do COVID-19, Paolo Virzi revisita a sua fórmula vencedora de “Il Capitale Umano” (2013), recitando-a e ambicionando-a para além dos seus “nós interconectores”, este emaranhado de enredos e subenredos é uma vitrine decorativamente virtuosista. “Siccità” (“Seca”) é o “Don’t Look Up” em itálico, uma salada de temas contemporâneos aromatizado com sátira e de crítica social, tudo em todo o lado e mais alguma ‘coisa’, cuja sua pretensão revela na sua incapacidade de conduzir um cenário devidamente intrigante, visto que as suas histórias não passam de sugestões banhadas por uma tórrido e poeirenta atmosfera (a fotografia desértica de tons amarelados de Luca Bigazzi, um fiel colaborador de Sorrentino), representações ou símbolos, como bem queremos, dos identificadores “pecados capitais”. 

Virzi ostenta a megalomania em ser um cronista atual, sendo que a pressa dessa atualização o poderá trair com a efemeridade discursiva, mesmo que a universalidade da classe social seja por si uma aposta previamente ganha. Mas essa cegueira em querer tudo e “enfiá-lo” no mesmo filme-mosaico, cauteloso em não "desmembrar" o seu epifânico clímax (obviamente inspirado em “Magnólia” de Paul Thomas Anderson, o mais popular dos filmes-mosaicos), o seu “nó de marinheiro” à vista do Mundo, o condena aos mais prolongados “lugares-comuns”, até porque a audiência é outra, mais “informada”, aliás, saturadamente “informada” do seu respectivo ambiente (e sim, a ecologia também entra neste cardápio enquanto “fantasma apocalíptico"). 

Tendo em conta esta presente tendência em combinar críticas sociais e políticas num só frutado cocktail, felizmente não estamos perante noutro “Triangle of Sadness” de Östlund, Virzi não possui essa crueldade em caricaturar, ao invés disso, notamos em “Seca” a existência de personagens, mesmo que sedentas e impedidas de ser mais do que espécimes de montra. Essa, provavelmente detida por Monica Bellucci, a sereia de um rio seco. 

"Noites Mágicas" em que o cinema italiano seguia à boleia dos “maestros”

Hugo Gomes, 16.04.19

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Aquele que foi em tempos uma das maiores e mais respeitadas indústrias de cinema a nível global, é hoje convertida num espectro que tenta a sobreviver às custas de niilistas ou recicladores. Não é novidade que o cinema italiano está a sofrer uma verdadeira crise identitária e tendo em conta as suas já produzidas 14 películas (apenas longa-metragens), não será Paolo Virzi a salvá-lo. Porém, o grande júbilo deparado neste seu “Notti Magiche” (Noites Mágicas), é uma tendência de autojustificação e ao mesmo tempo um olhar de dentro para fora para tentar apurar a sua própria decadência.

Estamos em 1990, Fellini acaba de filmar a sua última obra (“La Voce della Luna”, com Roberto Benigni) e os outrora grandes produtores italianos parecem depender do pequeno ecrã. Mas o Cinema não é mais assunto aqui e ninguém quer saber, até mesmo os da própria indústria. O Mundial decorre e a seleção italiana tem as suas hipóteses de conquistar o troféu. O seu obstáculo é a Argentina de Maradona e todos nós sabemos como acabou. E é durante esse crucial jogo que Soponaro (Giancarlo Giannini), um dos importantes produtores, mas ultimamente reduzido a um mendigo, é encontrado sem vida no Tibre. A polícia começa a investigação de um suposto homicídio, tendo como principais suspeitos três jovens argumentistas que se encontravam há poucos dias em Roma.

Um testemunho, ménage-à-trois ao jeito da clássica tradição cinematográfica, que vai colmatando os factos através de um piscar de olhos a um Cinema de postal. As referências são diversas (não vamos aqui enumerá-las), contraindo uma narrativa algo meta que indicia a saturação dos seus elementos como compensações de um mero whodunit. Virzi é em simultâneo; um fanfarrão que se coloca em bicos de pés para aprofundar a sua tese em forma ficcional e um engenhoso ocasional na sua própria narração. Até porque não existe ciência aqui, tudo ocorre como planeado na jornada dos três jovens, cada um deles formando a sua própria caricatura – prodígios na demanda de “triunfar” numa Roma em modo embuste que nega a passagem do seu tempo.

Pontuado com um humor calculista e de situações caricatas que despertam um ar escapista no espectador, uma brisa tão anos 90, assim em contexto com o cinema italiano da época, meloso e profundamente saudosista. A nostalgia está ao rubro em conjunto com as mistelas visuais no qual Sorrentino reina nesta atualidade. Será que o realizador de “La Grande Bellezza” e “Loro” é o modelo a seguir na difusão deste cinema? Contudo, são estes os códigos estéticos e expressivos que endossam a espinha dorsal deste projeto. 

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Mas pelos vistos, o grande problema em “Notti Magiche'' não é isolado, é uma anomalia que se habitua como um deserto. Por outras palavras, a sua falta de marca autoral. Não é Paolo Virzi o melhor ou o pior cineasta italiano no ativo, é somente um anónimo ser que respira o cinema dos outros com um certo rigor. Nesta sua obra, essa experiência advém da sua condição enquanto narrador e, por sua vez, vigilante dessa narração. “Vocês veem como argumentistas, ao invés de espectadores“, diz o inspector da polícia seguido por um travelling afora que nos vai revelar o “culpado”, como uma das mais criativas (formalmente) revelações de um plot twist. Em certa parte, esta declaração é como uma mea culpa a Virzi, que se aprofunda nas suas demandas pelo centro/caos da equação ao invés de se afirmar como um simples contador de histórias (o resultado é um filme que agradará mais quem está dentro deste universo do que ao público). 

Pode soar injusto estas inquisições à visão de Virzi, até porque o filme tende em lançar as suas certeiras ferroadas, com isso procurando a sua “salvação”, palavra que interliga este enredo de suspeitas e que é inserida nos mais diferentes contextos. Com isto, queremos salvar, por vezes até “abraçar” um cinema-fantasma que se desculpa pelas suas indulgências: “O que ‘matou’ o cinema italiano foi a vossa geração“. O sangue novo foi o culpado, diriam os velhos do Restelo, ou Pasolini, diria Gabriele Muccino, ou quem sabe o destino, a ordem natural das coisas … diria eu, sem querer reduzir-me a um mero pedestre do Cinema dos antigos maestros. 

Fugindo de um ninho de cucos

Hugo Gomes, 29.09.16

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Se caíssemos na esquematização superficial de muita da crítica norte-americana facilmente apelidaríamos o novo filme de Paolo Virzi, “La Pazza Gioia” (“Loucamente”), com a equação “Thelma & Louise meets One Flew Over the Cuckoo's Nest”.

Três anos depois de transfigurar a verdade nas suas variadas ramificações com o filme-mosaico "Il Capitale Umano”, Virzi centra-se no drama road-trip longe das euforias coming-to-age. São duas loucas, para resumir a intriga, “engaioladas” que encontram a liberdade na primeira oportunidade. Durante esta escapatória que se arrasta até ao seu desfecho, Valeria Bruni Tedeschi (atriz que trabalhou com Virzi em o Capitale’) e Micaela Ramazzotti (do muito subvalorizado Anni Felici) tentam reconciliar-se com a vida que haviam “perdido” após os respectivos “enclausuramentos”.

O realizador incide no espectador um autêntico mundo de loucura, não no sentido onírico e surreal, mas quanto ao seu ritmo que parece ganhar velocidade tremenda até a uma eventual colisão. Porém, o percurso faz-se com agrado, sob um tom agridoce que nos envolve e as atrizes que dão o melhor de si para atribuir uma humanidade digna a este duo de personagens, que tão bem residirem num conto de Gil Vicente. Mas, obviamente, que a viagem leva-nos a estradas de terreno batido, altamente caminhadas pelos seus antecessores e rodeadas por paisagens rotineiras, essas, para quem não entendeu esta linguagem viajante, são os dramas secundários que entrelaçam com o destino das protagonistas, o macguffin que as fazem mexer numa jornada ao encontro dos seus fantasmas.

Mas o drama não é suficiente forte, diria mesmo desequilibrado, visto que a personagem mais interessante é diversas vezes confundida como um comic relief, sim, falo de Valeria Bruni Tedeschi, essa diva desvalorizada do cinema italiano, numa variação paranóica de Norma Desmond (“Sunset Blvd.”, de Billy Wilder). Ela é a tragédia em pessoa, infelizmente, pouco explorada nesta “ópera” que termina sob abruptos acordes melosos e no “choradinho” do costume. Tal como acontecera com “Il Capitale Umano”, Paolo Virzi tem uma fraqueza enorme, o seu talento é por vezes superado por uma tendência suicida de crowd pleaser.

Toda a vida tem um preço!

Hugo Gomes, 04.05.14

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Quanto é que valerá uma vida humana para as seguradoras? Um sentimento? Um gesto ou um acto? Talvez apenas meras probabilidades para o cálculo matemático de um "bem maior" - a dita indemnização e o seu preço. E é sobre esse pretexto que surge “Il Capitale Umano”, baseado no homónimo livro de Stephen Amidon e adaptado por um realizador acostumado a comédias populares - Paolo Virzi - uma fita que emaranha o thriller num tom descontraído, porém, ao contrário do seu objectivo de crítico, não é inerte às emoções das suas personagens.

Centremos-nos na história de duas famílias que representam duas classes sociais distintas e interligadas através de um misterioso acidente, o grande atrativo da sua narrativa, exposta como um exercício de género. São três capítulos envolvente a três perspectivas diferentes, sendo que cada uma delas desvenda à sua maneira a intriga "sequestrada" por um "whodunit" premiado. E é sob o olhar dessas cruciais personagens da trama que “Il Capitale Umano” torna-se inerentemente diversificado, tecendo estilos, teores e todo um conjunto de ênfases dramáticas e cómicas equilibradamente conjugadas. Mesmo tendo como principal atração e interesse a maneira como a narrativa é exposta, as interpretações são uma mais valia neste conto de sinistro, gerando personagens complexas que nos fazem amar, odiar e até julgar. Nesse aspecto vale a pena sublinhar os desempenhos de uma frágil Valeria Bruni Tedeschi (“5X2, “Munich”) e de Fabrizio Bentivoglio (“Scialla!”), como o sujeito que queremos a todo o custo evitar.

“Il Capitale Umano” é assim um drama trágico-cómico que nos remete ao “valor da vida humana”, interceptando o oportunismo e salientando de maneira interveniente o processo de cálculo das antagónicas seguradoras. O relatório-simbólico é antes de mais um filme cativante, elaborado e plenamente construído. Vale a pena entrar nas encruzilhadas de “Il Capitale Umano”.