Silvio e os outros "sósias"
Loro (Paolo Sorrentino, 2018)
Il Caimano (Nanni Moretti, 2006)
Silvio Berlusconi (1936 - 2023)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Loro (Paolo Sorrentino, 2018)
Il Caimano (Nanni Moretti, 2006)
Silvio Berlusconi (1936 - 2023)
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Le conseguenze dell'amore / The Consequences of Love (Paolo Sorrentino, 2004)
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Toni Servillo em "La Stranezza" (Roberto Andò, 2022)
O nosso "Jep Gambardella"! Com um charuto entre os lábios e uma expressão descontraída, talvez influenciada pelo clima ameno, antecipando o verão em pleno abril, ele recebeu-me a mim e ao jornalista Roni Nunes na sala de reuniões do Hotel D. Pedro. A sua visita coincidia com a celebração do Festival de Cinema Italiano, onde iria apresentar as sessões do seu mais recente filme - "La Stranezza" - novamente dirigido por Roberto Andó ("Viva La Libertà"), onde interpreta a icónica figura do teatro italiano, Luigi Pirandello, e na do filme que marcadamente fora seu primeiro protagonismo no grande ecrã. Curiosamente, este foi o primeiro trabalho em conjunto com Paolo Sorrentino, numa obra intitulada "L'Uomo in Piu" (2001), que viria a ser o "início de uma bela amizade", para citar Claude Rains num célebre clássico americano.
Toni Servillo tem sido cobiçado desde a primeira edição do festival, e não é para menos, pois é atualmente um dos atores mais requisitados e prestigiados do panorama cinematográfico. Aproveitando o convite, ele presenteou o público do Teatro Maria Matos com uma interpretação de Dante, da autoria de Giuseppe Montesano. Servillo é um homem dividido entre o teatro e o cinema, alcançando grande popularidade com o filme "La Grande Bellezza", onde interpretou o jornalista Jep Gambardella, que nas noites tórridas de Roma buscava o que havia perdido ao longo da sua jornada pela vida. Este filme foi aclamado em Cannes e conquistou o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, tornando-se hoje uma referência na carreira tanto do ator como de Sorrentino. No entanto, gerou amores e ódios, especialmente entre aqueles que o veem como uma pretensiosa aproximação a Fellini.
Mas "La Grande Bellezza" possui um espírito audaz e tumultuoso, moldando Servillo numa espécie de Jep amado e desgastado. Tudo o que se seguiu está de alguma forma enraizado nesse registo, assim como no afastamento desse papel. Depois disso, o ator foi Silvio Berlusconi num ambicioso projeto do seu amigo Paolo ["Loro", 2018], interpretou um detetive pouco convencional no thriller "La ragazza nella nebbia" (Donato Carrisi, 2017) e deu vida a dois ícones da dramaturgia italiana: Eduardo Scarpetta em "Qui Rido Io" de Mario Martone (2021) e agora, Pirandello na sua busca pelo autor na nova colaboração com Andó.
Segue-se a conversa gerada a partir do nosso encontro:
Em “La Stranezza”, Luigi Pirandello é descrito como um homem austero, um pouco melancólico e vivendo uma crise criativa. Como surgiu a composição desta personagem?
Pirandello era, sem dúvida, um homem austero, e embora eu não saiba se ele era melancólico, certamente era profundamente inquieto. Essa inquietação tinha raízes tanto em sua vida pessoal quanto em sua vida intelectual. E é exatamente essa jornada criativa desse homem, que tinha em mente o que ele chamava de "verdadeira estranheza", antes mesmo de transformá-la em sua célebre peça "Os Seis Personagens à Procura de um Autor" ("Sei personaggi in cerca d'autore"), que quisemos explorar neste filme.
Pirandello concebia um mecanismo dramatúrgico novo, revolucionário e nunca antes visto. A ideia brilhante de Roberto [Andó], juntamente com seus co-argumentistas [Ugo Chiti e Massimo Gaudioso], foi desenvolver esse mecanismo inédito a partir do encontro com uma companhia de teatro amador, que o convidam para assistir a uma de suas apresentações. Ao observar esse espectáculo, Pirandello contempla uma mescla entre o que acontece no palco e o que acontece na vida real.
Outra das características do filme é que a fronteira entre o dramático e o cómico é muito ténue e, de facto, no filme trabalha com uma conhecida dupla de comediantes [Salvatore Ficarra e Valentino Picone]. Como correu esta mistura de tons?
Foi precisamente essa ideia que fez deste filme o mais visto em Itália no ano passado, alcançando uma receita de 5.600.000€ nas bilheteiras. Este feito foi um marco pós-pandémico extremamente importante para o cinema italiano. O público ficou surpreendido pelo facto de termos um filme cujo centro é uma figura incontornável da literatura italiana, Pirandello, e que conta com dois dos nossos comediantes mais carismáticos. Este facto quebrou o preconceito de que o "cinema de autor de festivais" não é acessível ao público em geral.
Acredito que essa surpresa tenha conferido ao filme uma imprevisibilidade e, consequentemente, despertado uma curiosidade benéfica, equilibrando o seu apelo tanto para os amantes do cinema mais culto como para o público em geral. Acima de tudo, trata-se de uma obra contemporânea, capaz de unir esses dois elementos de uma forma única.
Toni Servillo em "La Grande Bellezza" (Paolo Sorrentino, 2013)
Visto que interpretou Eduardo Scarpetta no filme de Mario Martone [“Qui rido io”] e agora Pirandello, além disso apresenta uma longa carreira teatral, gostaria de saber como se sente ao interpretar estes grandes vultos do teatro italiano, e se leva a sua experiência teatral para a produção desses mesmos filmes?
Bem, essa coincidência surgiu do facto de ter trabalhado com dois realizadores que, tal como eu, são devotos do teatro. Foi uma verdadeira honra fazer estes filmes sobre duas figuras tão distintas, mas de extrema importância para a história do Teatro Italiano. Mais do que isso, foi uma alegria imensa, pois amo o teatro e continuo a praticá-lo ao mesmo tempo que me envolvo no cinema contemporâneo.
Ambas as artes sempre estiveram presentes na minha vida, especialmente após a pandemia. A emoção de ver as salas de cinema e teatros gradualmente a encher novamente, como nos velhos tempos, é indescritível. Para mim, o teatro representa uma oportunidade de encontro entre pessoas, de debate, uma celebração dos sentidos e da inteligência. Foi, sem dúvida, a mensagem mais bela que nós, homens do teatro e do cinema, pudemos transmitir ao público através destes dois filmes.
Na Festa do Cinema Italiano apresentou a sessão de “L'Uomo in Più”, o filme inaugural de Paolo Sorrentino e o início de uma conhecida colaboração que ainda hoje perdura. Que impacto o filme teve em si, e na sua carreira? E já agora, é mesmo você que canta?
Sim, canto [risos]. Lembro-me, em primeiro lugar, que essa foi a primeira vez em que assumi toda a responsabilidade de ser o protagonista de um filme. Recordo com imenso prazer e carinho essa experiência. Desde o início, senti o apoio e testemunho dos pensamentos do Paolo [Sorrentino], que me incentivou a expressar minha própria face, minha forma de me movimentar. Durante a realização desse filme, essa conexão foi muito intensa e, acima de tudo, após o entusiasmo que ele gerou no Festival de Veneza, sendo a estreia de um autor jovem e talentoso, e posteriormente em Cannes, com 'Le conseguenze dell'amore', onde o filme competiu. Foi nesse momento que percebi que estava iniciando uma grande aventura..
Nessa aventura deparamos com “La Grande Bellezza”, o maior êxito da vossa colaboração. O que mais recorda desse filme? Imaginou que teria o impacto que obteve?
Olha, o que mais me recordo deste filme é que a vida nunca deixa de nos surpreender. Quando o fizemos, nunca, absolutamente nunca, imaginávamos que ele teria tanto sucesso. É fascinante como a vida sempre corre mais rápido do que o cinema, do que as nossas intenções, e nos surpreende continuamente. Foi realmente um presente que a vida nos concedeu, mas acima de tudo, uma enorme surpresa, uma surpresa gigantesca. Sentimos que estávamos a fazer algo que amávamos com alegria, mas jamais poderíamos imaginar que impressionaria tanto o público ao redor do mundo.
Mas porquê esse filme fascinar tanta gente?
Digamos que ao usar Roma, com todo o seu encanto antigo como cenário, e ao simbolizar o fumo, com o seu encanto tão antigo, estamos representando uma perplexidade geral. E acredito que seja uma das razões que contribuíram para o sucesso deste filme. Ou seja, ao manter Jep Gambardella e Roma unidos em um sentimento de perplexidade, de oportunidades perdidas, de vidas cheias de beleza para aqueles que também estão ligados ao passado e à memória.
Eu e Toni Servillo
Foi Giulio Andreotti em “Il Divo” e Silvio Berlusconi em “Loro”, ambos de Sorrentino, a juntar ainda as variações políticas de Roberto Andó, como “Viva La Libertà" e “Il Confessioni”, com isto pergunto, considera-se um ator político?
Não, discordo desse estatuto de ator político. Embora eu acredite que qualquer pessoa que escolha estar em público, independentemente da arte ou forma, assume uma responsabilidade política, como mencionou. Os filmes que citou estão ligados a uma tradição de cinema com um caráter político, proveniente de cineastas como Francesco Rossi ou Elio Petri, que conseguiram manter uma linguagem cinematográfica moderna e, ao mesmo tempo, influenciaram fortemente o debate político na época. De certa forma, estou inserido nessa tradição italiana bastante marcante. Além disso, é um prazer para mim fazer parte de filmes como esses, ou até mesmo como "Gomorra" de Matteo Garrone, que não foi referido, que é um exemplo bastante politizado na minha carreira. São filmes que levam as audiências a refletir e como acréscimo, sentir.
Já agora, anda por aí um rumor de que é um “workaholic” … [risos]
Nada disso, embora a minha mulher pense que sim! [risos] Na realidade, sinto-me privilegiado, sortudo em conseguir trabalho, o qual tenho colhido alguns frutos saborosos.
E quanto a novos projetos?
De momento, em cartaz em Itália, tenho o novo filme de Gabriele Salvatores - “Il ritorno di Casanova”. Vou protagonizar o próximo título de Marco D’Amore, “Caracas”, ator da série “Gomorra” que se tem aventurado na realização, e ainda trabalhar com Stefano Sollima num filme chamado “Adagio”.
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Antes de começar com a previsível justificação da minha seleção, queria mencionar um filme que apesar de se encontrar ausente desta listagem, foi importante e reflexivo para com a virada da década, e quiçá, desenhando aquele que diríamos ser o cinema das próximas gerações.
Essa obra é nada mais, nada menos, que a “The Social Network” (A Rede Social), de David Fincher, que acertou contas com um dos possíveis vórtices da nossa identidade do século XXI, enquanto individual, enquanto coletiva. Não poderemos negar que os nossos dias são demasiado dependentes desse dispositivo - o de trabalhar a nossa imagem para o exterior e moderar a exposição do nosso (não) íntimo. Digamos, que foi através desses pensamentos perante tal “futilidade”, do qual se tornariam o espelho narcisista da nossa modernidade, que Aaron Sorkin inspirou-se para escrever esta fictícia trama (na altura apontada como “cedo demais”) que operaria como pontapé de saída para os filme que reúno aqui – intimidade expositiva e a imagem fabricada da nossa existência.
Por isso, passeamos pelo último gesto de cineastas incompreendidos (The Other Side of the Wind, The Turin Horse) até à possível previsão do futuro do cinema (Holy Motors, The Congress), a nossa exposição sentimental como instalação artística (Elena, Before We Go, L’ Vie d’ Adèle), a identidade ou existência como demanda de natureza várias (La Grande Bellezza, La Piel que Habito, Django Unchained). Mas no seu todo é uma “mixórdia”, como muitos deverão salientar, de velhos autores em reunião com outros nomes sonantes e promissores que aguardam pelo seu tempo. Porque o cinema tem destas coisas - o de esperar para ver.
1 -The Other Side of the Wind (Orson Welles, 2018)
2 – Holy Motors (Leo Carax, 2012)
3 – Elena (Petra Costa, 2012)
4 – La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)
5 – The Turin Horse (Béla Tarr & Ágnes Hranitzky, 2011)
6 – Before We Go (Jorge Léon, 2014)
7 – The Congress (Ari Folman, 2013)
8- La Grande Bellezza (Paolo Sorrentino, 2013)
9 - Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012)
10 - La piel que habito (Pedro Almodóvar, 2011)
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Mais que uma sátira, “Loro” (“Silvio e os Outros”) é um filme-sátiro, em alusão à mitológica criatura, metade bode, metade homem corresponde à natureza desta ficção de um dos incontornáveis vultos da política italiana.
E já que falamos em caprinos, porque não passar para uma casa ao lado da taxonomia animal e espreitamos o ovino (ovelha) que abre este filme de uma forma metafórica e crítica a todo um conformismo político por parte do eleitor. Induzido num tom jocoso e satírico (não foi de propósito), o animal hipnotizado pelas transmissões televisivas (a televisão italiana, à imagem de muitas, é forte nessa continência populista) sucumbe face à visível ameaça. Hoje, com a ascensão do populismo e dos partidos extremistas, é evidente decifrar todos os símbolos desta abertura, até porque Paolo Sorrentino (cineasta que motiva amores e ódios, todos eles extremos) não é dos cineastas mais crípticos em relação a mensagens subliminares.
Não sendo um campo estranho, visto que já penetraram na política por via de “Il Divo – La Spettacolare vita di Giulio Andreotti” (2008), o realizador alia-se novamente ao ator Toni Servillo para o “camuflar” em mais um animal politizado, neste caso Silvio Berlusconi. O retrato trazido nesta duologia (em Portugal só nos será disponibilizada a versão norte-americana que une os dois capítulos num só) confere todo o caminho de excessos tão habitués para Sorrentino, a criação de uma fábula artificializada de uma Itália que sonha acordada. Através, e repescado a essência do sátiro, há aqui um gesto anedótico de paródia à própria figura central ao mesmo tempo que incentiva um tom humanista no mesmo.
Servillo funciona com o carisma que nos tem grudado desde então (incrível como o filme melhora a olhos vistos apenas com a sua introdução) para nos trazer esta personagem “mascarada”, nunca cedendo nas complexidades que a esquerda teoriza nem a superficialidade própria do moralismo norte-americano (Sorrentino sempre sonha vingar em Hollywood). Aqui todo um espólio e distorção da realidade em prol de uma desconstrução da personalidade, vetor de um filme que esquematiza, não a ascensão política, mas a queda iminente da mesma. Assim, como o protagonista questiona porque não existe um museu em sua honra, Sorrentino sorrateiramente responde com um filme – Berlusconi é um artefacto de exposição, o espectador é assim o visitante. “Loro” é então esse evento que magnetiza em prol de um homem, e que todo o seu biótopo é essencial na compreensão do mesmo.
Só que nesta obra de Sorrentino, assistimos a essa cumplicidade para com o populismo televisivo italiano, desde as demandas pelo videoclipe e a tendência pop do luxo de poucos, “Loro” enverga-se num híbrido entre o comentário político e a modernização de moda. Sim – como gosto de voltar aos tópicos anteriores! – é o sátiro, o meio, meio, o filme que se desdobra em diferentes vontades e gestos. Se por um lado temos a acidez dos diálogos, com mão aberta preparada para a eventual chapada, por outros temos o exibicionismo técnico e o fascínio do grotesco narrativo para o minar, assimilando a complexidade inexistente que a personagem apontou como falha da esquerda.
Obviamente que não há um vórtice político de caras como outra incursão berlusconiana (“Il Caimano”, de Nanni Moretti). Contudo, "Loro" detém alguma compaixão pela figura o que arrasta e igualmente acelera por territórios vastos. Sim, é o tal meio, meio.
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“Intellectuals have no taste”
É verdade que todos esperavam que Paolo Sorrentino fosse reciclar o estilo vencedor de “La Grande Bellezza” num filme próximo, e ei-lo: “Youth” (“La giovinezza”), o seu olhar luxurioso à segunda juventude de cada um, onde Michael Caine e o “ressuscitado” Harvey Keitel compõem um par de amigos de longa data (a caminhos dos 80) que passam férias num requintado hotel situado nos Alpes. Entre spas e saunas, “Youth” converte-se gradualmente numa poesia industrializada sobre a velhice e a confrontação com o passado, num registo que por si já parece “velho” no grande ecrã.
Mas Sorrentino revela-se ainda, aquilo que já fora considerado na obra anterior: um VJ, apostando num filme sob um visual estilizado e de uma riqueza acolhedora. Se o realizador filma bonito, isso já se sabia, mas em “Youth” revela-se mais livre, confiante e sim … egocêntrico. Porém, nem tudo o que vemos é realmente dispensável. É fácil emocionar com “Youth” (até certo momento uma das personagens expressa o quão subvalorizado estão os sentimentos) com toda aquela revisão dos nossos medos íntimos desconhecidos, mas sobretudo devemos louvar o facto do nosso realizador, que é também o argumentista, acertar com as suas cartadas nos diálogos, surgindo frases deliciosas, alguns dos quais incutindo uma filosofia popularmente identificável, talvez mesmo concentrando aí a única sinceridade da obra.
Existe ainda outra aposta vencedora neste novo filme de Sorrentino, o seu humor digno de “buddy movie“, como que – de certa maneira – Caine e Keytel fossem reencarnações antípodas de Jack Lemmon e Walter Matthau. A química transmitida por ambos pode ser demasiado rígida para os parâmetros estilísticos do filme, mas mesmo assim eles respondem com exatidão aos requisitos. Salienta-se ainda as participações de Paul Dano, que demonstra novamente o seu talento de difícil reconhecimento, sendo o responsável por uma das sequências que revela o quanto “infantil” podem-se também tornar essas filosofias de Sorrentino, que aqui reflete sobre os horrores da vida na personificação de uma óbvia personagem histórica.
Por outro lado, eis que também surge Jane Fonda (no melhor papel em anos), que encoraja, ao lado de Keitel, a inserção de um dos diálogos mais acutilantes e frontais deste “Youth”, um debate irónico sobre um tema bem atual , a proclamada morte do cinema e a “vingança” da televisão no futuro. Sim, há muito por onde gostar nesta obra de fragrâncias vaidosas, nem que seja para matar as saudades de uma certa “beleza”. Desde o desempenho de Michael Caine, ao bom regresso de Harvey Keitel, passando pelo hedonismo, até chegar ao glorioso momento final, acompanhado por uma música que assombra a narrativa: “The Simple Songs“.
"Youth" pode não ser a obra que se esperava de Sorrentino depois de “La Grande Bellezza”, e até seja de (mais) fácil apelação, mas para todos os efeitos é pura e sedutora viagem ao ego de um realizador contra o Mundo.
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É com algum atraso que revelo aqueles que foram para o Cinematograficamente Falando …, as 10 melhores obras cinematográficas de 2014. Distopias alternativas, relações complicadas, passeios pela História e visões únicas do Mundo em que vivemos, são estas os derradeiros filmes, tendo como base as obras estreadas comercialmente em Portugal nesse mesmo ano.
#10) Her
"Talvez seja um pouco herege enunciar Her como um dos melhores romances dos últimos 5 anos, porque mesmo sentindo a sua vertente romântica e deliciosamente encantadora há que reconhecer a sua discreta, mas mesmo assim, determinada faceta negra. Com uma banda sonora daquelas que fascina qualquer um, The Moon Song de Karen-O é um prazer lírico e poético, em Her de Spike Jonze é um prazer apaixonar, contudo refletir sobre os caminhos que o nosso mundo social segue a fortes passos."
#09) Enemy
"Em Enemy, Denis Villeneuve aposta e vence, um thriller de atributos invejáveis ditado por um estilo único e labiríntico. E voltando à questão inicial, sim, Saramago era bem capaz de adorar esta visão libertina e simultaneamente inerente da sua criação literária, uma tese de autor sobre outro autor. O regresso do cinema provocador num filme para quem acredita que o cinema pode ser profundo e ao mesmo tempo, esteticamente cativante."
#08) Nightcrawler
"Jake Gyllenhaal veste a pele de um "abutre humano" em cenário desumano de oportunidade e hipocrisia. Nightcrawler é o Taxi Driver da nova geração, porém, mais agressivo, negro e sem um ponta de esperança numa humanidade cada vez mais regida à fama imediata e aos enclausuramentos estabelecidos pelos tempos televisivos."
#07) Ida
"Ida é um filme diatómico, um projeto amargurado e melancolicamente simbólico que nenhum país gostaria de ostentar na sua filmografia, mas que por um lado este é um trabalho de união que a Polónia tão bem concretizou. Uma jornada ao passado isentes de glória e drama digno hollywoodesco, existem poucos filmes assim."
#06) The Grand Budapest Hotel
"Depois desta demanda, talvez a mais próxima da perfeição por parte de Wes Anderson, será difícil ultrapassar-se sem cair na limitação do seu estilo (fazendo lembrar o misterioso Terrence Malick). Enquanto não chega essa futura obra que irá ditar o rumo enquanto cineasta verdadeiramente acarinhado na indústria, Grand Budapest Hotel é uma fantástica aventura que nos remete ao misticismo do cinema, algo que parecia perdido.
#05) Mommy
"(…) em Mommy nem nos interessamos em salvações musicais, porque neste mundo confinado à entrega de um aos outros, Dolan é um "Deus" nada misericordioso, que não executa castigos divinos nem sequer recompensas. O magnetismo maternal, os fantasmas por trás desse mesmo deslumbramento, fazem de Mommy um filme de linguagem, de respostas sem perguntas e da afirmação de um realizador que por direito merece ser relembrado. Desencantado mas primoroso."
#04) Nebraska
"Agora também é verdade que esta pequena grande produção a preto-e-branco não funcionaria na totalidade se não fosse o seu elenco; um natural e simultaneamente soberbo Bruce Dern a apresentar a decadência temporal e Will Forte a surpreender no seu papel mais dramático, sem esquecer de uma divertida e arrogante June Squibb (impagável). Nebraska é um retrato humanista, emocionante e delicado, uma futura obra-prima do cinema independente norte-americano. Must see!"
#03) The Congress
"The Congress é um filme genial, extenso e nada tímido para com as suas próprias expressões e ideais, o anúncio da morte do cinema e da sociedade são arranques imaginativos e profundos para a confirmação de um dos mais proeminentes cineastas da actualidade. Depois da Valsa', chega-nos a solicitude."
#02) The Act of Killing
Praticamente toda gente está a habituado a encarar o género do documentário com o formato das produções televisivas, mas enganem-se quem pensa que tal é apenas serviço pedagógico. The Act of Killing é o grande exemplo disso, uma veia onírica que abate o panorama real dos nossos dias, os medos de uma sociedade estampados sob um selo fantasmagórico. Aqui não há julgamentos, a ética é mera inutilidade perante a grandiosidade deste filme que nos remete ao mais negro da natureza humano. Corajoso, incisivo e na sua maneira de ser, poético
#01) La Grande Bellezza
"(…) Sorrentino é multifacetado na sua direção, por vias de mimetização (segundo as más línguas), consegue invocar Federico Fellini e o seu neo-realismo como também a veia satírica de La Dolce Vita, até aos planos algo simétricos e renascentistas de um Peter Greenaway. Ou seja, até na sua realização, Sorrentino incute a diversidade cultural, homenageando algum dos novos artistas, aqueles desprezados pelos puristas da Pintura e de outras Artes, que são os cineastas, porém sente-se em simultâneo um mise-en-scené por vezes digno do Teatro mais intimista."
Menção Honrosa: Nymphomaniac Part 1, The Broken Circle Breakdown, Gone Girl, Boyhood, Philomena
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Há algum tempo que não deparávamos com um filme tão abrangente a níveis artísticos e culturais como este “La Grande Bellezza” de Paolo Sorrentino, o mesmo homem que há anos esteve por trás de um quadro intimista sobre uma das enésimas páginas negras da história política italiana: “Il Divo: A Vida Espectacular de Giulio Andreotti”. Nesta sua nova obra, a mais pretensiosa até à data, o autor decide criar uma panóplia de “sabores” e de requinte visual, referenciando tudo e todos e preenchendo com todas as metáforas e dilemas que tem a seu alcance. Esta ambição que vai desde o visual, o técnico e o filosófico é ao mesmo tempo uma divagação pelas ruas e monumentos de Roma, captando a sua beleza e em busca da sua alma celestial.
Confusos? Pois bem, “La Grande Bellezza” é até complexo no seu modo operativo, ora é um retrato de pretensões para com a decadência de vida, sublinhando o lixo cultural e a pseudo-intelectualidade cada vez mais confundida com arte, ora é uma obra à deriva onde damos de caras com o nosso protagonista (Toni Servillo) vagueando como o derradeiro pedestre por uma cidade adormecida mas não morta na sua beleza inerente. É como de certa maneira Sorrentino invocasse cinema ocasional, filmando tudo como um guia turístico ou todos, o repentino cameo de Fanny Ardant parece ser prova disso, mas sobretudo o autor não deixa “morrer” o seu filme de maneira alguma. E quanto mais fundo o seguimos, mais nos deliciamos com a sua simplicidade, apenas envolvida por distorcidas e impenetráveis filosofias, morais e claro, um tom satírico e crítico que prevalece como ninguém.
Para além disso, Sorrentino é multifacetado na sua direção, quer pela mimetização (segundo as más línguas), onde consegue invocar Federico Fellini e o seu neo-realismo, como também a veia satírica de “La Dolce Vita” (a alienação da burguesia, por exemplo), até aos planos algo simétricos e renascentistas de Peter Greenaway. Ou seja, até na sua realização, Sorrentino incute a diversidade cultural, homenageando alguns dos novos artistas, aqueles desprezados pelos puristas das artes, que são os cineastas. Nisto tudo, sente-se em simultâneo uma mise-en-scene por vezes digna do teatro mais intimista.
Salienta-se ainda a banda sonora que parece abraçar tanto o moderno como o clássico, de uma magnificência contagiante e o desempenho de Toni Servillo, o peão neste versátil jogo de metafísica que é “La Grande Bellezza”. Um filme de indescritível beleza, a vida de decadência cultural, a epopeia cultural de Sorrentino a captar a Itália no seu melhor (e o pior). Por onde “caminhamos” quando morrermos?
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