Billy Woodberry: "Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia"
Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)
Mário Pinto de Andrade (1928 - 1990): poeta, ensaísta, político e fundador do MPLA [Movimento Popular pela Libertação de Angola], uma figura de pegada incisiva no século XX, que em Portugal pouco (ou nada) o referimos pelo seu nome. Porquê? Razões ainda por apurar, apesar das teorias, das especulações ou das certezas captadas numa sociedade de traumas e histórias confinadas a alçapões, contudo, é através da curiosidade mórbida de um americano que este homem das mil artes e das mil línguas se posiciona em frente ao holofote.
“Mário”, simplesmente, é a mais recente obra de Billy Woodberry - uma das peças centrais do movimento L.A. Rebellion (o qual fizeram parte Charles Burnett, Zeinabu Irene Davis ou Larry Clark) - que explora o seu percurso e o pensamento que influenciou os mais diferentes estandartes culturais pan-africanos, conduzindo-se por imagens e filmagens de arquivo, colheita de trabalhos seus e um incessante encontro às suas demandas politizadas, dos amigos a inimigos, família a amores, até dar de caras com a morte. A vida de um homem, sem hagiografias, mas com a dignidade declarada. No final da sessão, e mesmo não entendendo o seu apagamento, um “bichinho carpinteiro” e curioso anseia por mais e mais sobre Mário Pinto de Andrade. Woodberry apenas o despertou.
O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre Mário’, o filme, o homem, a sua (não)presença na memória de Portugal e ainda sobre fotografia e as suas possibilidades de cinema.
Começo por lhe questionar sobre qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho de Mário Pinto de Andrade?
O primeiro contacto foi, na verdade, através de um artigo que o próprio escreveu, publicado em inglês em Havana [Cuba]. Era um texto sobre cultura e movimentos de libertação nacional e nele, sobre a importância do Brasil e da cultura brasileira, particularmente a literatura, para um país como Angola, ou outro canto na África. Destacava como essa cultura literária ajudava a entender e a refletir sobre a modernidade, oferecendo um exemplo que, de certa forma, lhes parecia próximo.
A importância da literatura brasileira era significativa porque apresentava protagonistas descendentes de africanos, apesar de ter mudado ao longo do tempo, este universo literário sempre contou com escritores críticos e relevantes para o pensamento, eram de facto uma inspiração. Na altura em que li o artigo, já me encontrava profundamente fascinado e envolvido com o movimento brasileiro chamado Cinema Novo, o que me conduziu a descobrir a literatura e a cultura do Brasil. Esse contacto obteve impacto para mim porque funcionava como um exemplo alternativo, uma outra possibilidade. O Brasil, com uma população negra notada, mostrava nos seus filmes uma forma diferente, mais emocionante e interessante, de fazer cinema. Ver aqueles protagonistas negros no ecrã foi muito marcante e emocionante.
A partir daí, comecei a ler mais livros, conheci pessoas e mergulhei nos romances. Ao mesmo tempo, tive também a oportunidade de aprender mais sobre a história em cursos académicos. Quando ele [Pinto de Andrade] fez essa ligação entre a cultura brasileira e os movimentos de libertação, coincidiu com o que aquilo que estava a estudar e a refletir. Isso foi fascinante. A sua presença ativa em muitos movimentos de libertação nacional na África lusófona é indiscutível, estes surgiram após a primeira onda de independências africanas nos anos 50 e 60 e traçavam um caminho diferente, com uma consciência e uma reflexão sobre o que tinha acontecido noutras partes de África. Aprenderam com essas experiências e pareciam desenhar um percurso que integrava as lições do passado.
Billy Woodberry
Essa abordagem foi crucial para mim e para a minha geração, que pensava sobre África de forma intensa. Mas o desafio era: qual África estávamos a imaginar? Seria a África do mito? A África lendária do período pré-colonial? Ou as versões que conhecíamos dessa África? No meu caso, interessava-me sobretudo o presente e o que estava a acontecer, embora também tivesse curiosidade pela história.
África não era algo alheio ao nosso interesse. Inspirávamo-nos em exemplos para criar um novo tipo de cinema. Nessa procura, tivemos referências como o cineasta senegalês Ousmane Sembène, que porque mantinha uma relação próxima com os militantes e ativistas das antigas colónias portuguesas em África. No filme, vemos fotos de Mário em vários lugares — na China, em Roma —, sempre ao lado dessas figuras, incluindo Sembène. Essa ligação também era muito significativa para se entender a sua aura política e artística.
Além disso, conhecíamos os filmes de Sarah Maldoror, em especial “Sambizanga”, tendo causado um grande impacto quando foi lançado em 1972. Foi uma obra inspiradora. Levou-nos a ler a tradução do livro que serviu de base, o que só reforçou essa influência inicial.
Esse foi o meu primeiro contacto com tudo isso, o tal ponto de partida.
De forma semelhante, o uso da história do Mário permite contar uma história do pensamento em África, dos movimentos, movimentos artísticos e políticos. Então, gostaria de ligar isto a outra pergunta, talvez usando as suas palavras, porque ao ver o seu filme, perguntei-me: por que é que em Portugal não falamos muito (ou quase nada) sobre o Mário? E, como se vê no seu filme, ele é uma figura presente nesses movimentos políticos e culturais.
Sim, concordo plenamente. De facto, é curioso debruçar esse “esquecimento”. Talvez tenha a ver com a forma como o conhecimento sobre este período, sobre este aspecto da história de Portugal e do colonialismo, é transmitido. Pode ser uma questão relacionada com a maneira como a história é contada. É possível que existam lacunas, embora haja pessoas em Portugal com um conhecimento profundo sobre o tema e sobre Mário. No entanto, talvez não sejam assim tantas, e talvez este assunto não esteja no centro do currículo escolar ou das preocupações atuais, por várias razões. Afinal, trata-se de um passado que remonta a 50, 70 anos ou mais, e isso pode contribuir para esse afastamento.
Mas devo dizer que muito do material que encontrei e usei no filme está em Portugal. Por exemplo, existe uma entrevista feita pela RTP em 1985 ou 1986, conduzida por Diana Andringa, que é uma fonte inestimável, uma longa entrevista em que Mário aborda muitos aspectos da sua vida e do seu pensamento. Além disso, há uma entrevista em livro com Michel Laban, um académico literário francês, publicada após a morte de Mário. É um documento extenso e detalhado que também foi muito importante.
Outro exemplo: encontrei cerca de 20 horas de material sobre a Guerra Colonial. Esse arquivo é valioso porque foi produzido na RTP e inclui entrevistas com pessoas de todos os lados do conflito — tanto portugueses como membros dos vários movimentos de libertação. Para Angola, por exemplo, encontramos entrevistas com representantes dos três principais movimentos de libertação. Também há material sobre Moçambique, o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e outros. Este arquivo está organizado por períodos e por marcos importantes na evolução da guerra, desde o início até à cessação do conflito. A certa altura, esse material foi distribuído como parte de uma coleção ligada a um dos jornais, com 14 volumes ou algo do género, que podiam ser colecionados.
Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)
Além disso, os arquivos de Mário estão em Portugal. O mesmo acontece com os arquivos de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos e de outras figuras importantes, que estão preservados em instituições como a Fundação Mário Soares e Maria Barroso.
Nos museus históricos, também existe muita informação, se não diretamente sobre este período específico, pelo menos sobre a história do Ultramar como um todo. Portanto, o material existe e está acessível. O que pode estar a faltar é o seu destaque no imaginário coletivo ou no debate público atual.
E acredita que essa distância dos portugueses aos arquivos e à sua história colonial, detém algo de político?
Talvez haja um componente político nessa questão. Tenho ouvido algumas coisas e, claro, devo ser cuidadoso, porque sou estrangeiro e tive a sorte de passar a viver aqui. Mas ouvi pessoas dizerem que isso pode estar ligado a um trauma — termo que, reconheço, é muitas vezes usado em demasia. Pode ser o trauma persistente do fim da era colonial e da perda associada a esse período. Para alguns, foi uma perda; para outros, um ganho, e talvez isso ainda não tenha sido totalmente processado ou amplamente discutido e conhecido. Pode ser essa a razão, mas não tenho certeza.
Nos Estados Unidos, por exemplo, não sei se seria muito diferente. Temos muitos documentários e obras audiovisuais sobre o Vietname. Há cerca de cinco anos, foi feito um grande documentário sobre o tema. Existe um certo distanciamento no tempo, mas também não sei se estes assuntos são fáceis de divulgar de forma ampla, há sempre disputas sobre como interpretar essas questões. Nos Estados Unidos, frequentemente esquecemos que há uma espécie de amnésia voluntária em relação a certos tópicos - aqui, não posso dizer que sei como as coisas são, mas já ouvi pessoas comentarem: “Ah, isso não é ensinado nas escolas.”
A educação, claro, é influenciada por diferentes correntes de pensamento que tentam definir o que é mais importante ensinar aos cidadãos, às crianças, aos jovens no ensino secundário e superior. No nível universitário, há investigadores excelentes nesta área. Há também jornalistas e figuras como Diana Andringa, que dedicaram a vida a escrever, pensar e partilhar reflexões sobre esses temas. Acho que Portugal tem um serviço público de televisão notável, o Canal 2 [RTP 2], por exemplo, é um dos melhores do mundo no que diz respeito à oferta cultural. Fazem um grande esforço para trazer questões importantes ao público e estimular a reflexão.
Talvez, no passado, tenha havido uma necessidade inicial de debater sobre esses temas, mas com o tempo isso foi desaparecendo, à medida que surgiam novos desafios. Construir uma sociedade diferente, integrar-se na União Europeia, fomentar a democracia, expandir o acesso à educação — tudo isso traz novas prioridades.
Não digo isto de forma leviana, mas devemos sempre questionar porquê que as pessoas não sabem? Talvez, no futuro, as populações afrodescendentes em Portugal sintam mais curiosidade sobre estas histórias e figuras como Mário e queiram aprender e partilhar esse conhecimento. Isso pode ser uma fonte de renovação, um caminho para recuperar e valorizar essa memória.
Mário Pinto de Andrade e Sarah Maldoror / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)
Demorou quatro anos para produzir este filme. Gostaria que me falasse sobre a angariação de material, a sua seleção, edição e a construção de uma estrutura narrativa que respeitasse o pensamento e vida de Mário?
Tive a sorte de contar com a colaboração de Teresa Gusmão, minha colega e produtora associada do filme, que esteve ao meu lado praticamente durante todo o processo. Desde o início, quando começámos a reunir o material, até às etapas de pesquisa contínua, esteve sempre presente. Queríamos conhecer profundamente os arquivos disponíveis, entender o seu conteúdo. Com o tempo, começámos a estruturar uma ideia, um esboço de guião, uma linha narrativa: sabíamos o ponto de partida e o ponto final — os 60 anos da vida de Mário.
A partir daí, precisávamos aprender o máximo possível sobre a cronologia dos acontecimentos e identificar os eventos e elementos significativos que poderíamos incluir no filme. Quando chegou a fase de edição, já tínhamos reunido uma quantidade imensa de material de várias fontes: material de arquivo, gravações, documentos relacionados com a história de Mário, as suas conexões, viagens, envolvimento político e cultural.
Entre os materiais descobertos, estavam gravações de entrevistas que ele fez ao longo dos anos. Uma delas, de 1982, foi conduzida pela socióloga francesa Christine Messiant, em Paris. Outra, do final dos anos 80, foi realizada por Michel Laban, que resultou no livro-entrevista publicado postumamente. E, claro, a entrevista feita por Diana Andringa, que sabíamos existir mas que, inicialmente, apenas conhecíamos através de algumas imagens transmitidas na televisão.
Desde o início, pretendia que a voz de Mário estivesse presente no filme. Por isso, focámo-nos nestas três fontes. Tanto Christine Messiant como Michel Laban já tinham falecido, e os seus arquivos foram transferidos para a Fundação Mário Soares, esperando-se, eventualmente, que fossem para Angola. Quando soubemos que estavam na Fundação, tivemos de aguardar autorização para aceder às gravações e fazer cópias digitais, o que conseguimos. Infelizmente, outra gravação feita nos Estados Unidos nunca nos foi disponibilizada. Quanto à entrevista de Diana Andringa, conseguimos acesso ao material completo apenas mais tarde, mas foi extremamente valioso.
Cada uma dessas entrevistas trouxe contribuições únicas. A de Christine Messiant, por exemplo, concentra-se sobretudo nas origens políticas do MPLA, cobrindo o período até 1962. Já a de Michel Laban abrange um arco temporal maior, refletindo sobre a vida familiar de Mário — a relação com os pais, a casa onde cresceu —, mas também sobre o seu desenvolvimento literário, intelectual e político, além das dinâmicas da sua geração em Angola e em Lisboa. Esta entrevista é notável porque Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia, por isso, preparou-se meticulosamente para as conversas, com o objetivo de ser-se preciso e rigoroso, oferecendo um relato considerado dos eventos e do seu significado.
Ao integrar essas fontes com o material que Diana Andringa produziu, começámos a delinear a estrutura do filme. No entanto, mesmo com tantas informações, não era possível incluir tudo. Tivemos de tomar decisões cuidadosas sobre o que contar, o que omitir e como articular os eventos para que fizessem sentido dentro do conjunto.
Trabalhei com o editor Luís Nunes, com quem já colaborei em quatro filmes anteriores. Ele é fantástico e tem um conhecimento profundo dos diversos arquivos, pois já trabalhou com realizadores como Manuel Mozos e produziu filmes sobre figuras como João Bénard da Costa. O trabalho com Luís foi essencial para reconstruirmos a narrativa e criarmos uma obra coesa. No final, foi um processo de intenso pensamento, pesquisa e escolhas, mas acredito que conseguimos transmitir o essencial da história de Mário e da sua relevância. Já agora, conhece o trabalho de Manuel Mozos?
Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)
Sim, conheço e, principalmente, o filme que refere: “Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei”.
Voltando … Luís tem sido incrivelmente útil, tem um olhar muito apurado e uma experiência vasta com arquivos.
Durante o processo, surgiam momentos em que identificávamos algo que queríamos incluir. Por exemplo, havia uma passagem em que Mário viajava de comboio para ver a mãe. Queria mostrar essa viagem, mas só tínhamos uma única fotografia do comboio — e era uma imagem miserável. Sabíamos que precisávamos encontrar algo melhor, algo que captasse de forma mais eficaz essa ideia no cinema. E foi assim ao longo de todo o trabalho: procurar o melhor material e pensar na melhor forma de transmitir uma ideia de forma cinematográfica.
Foi um processo que exigiu muito tempo e paciência. Houve períodos em que não podíamos filmar ou em que ainda não tínhamos o financiamento necessário para avançar em certas partes. Então, usávamos esse tempo para aprofundar ou refinar a pesquisa, sempre tentando descobrir algo que pudesse enriquecer o filme. Foi um esforço contínuo, mas nunca cansativo para mim. Pelo contrário, acho fascinante.
O desafio maior foi transformar todo esse material e essas ideias em algo coerente, algo que fizesse sentido enquanto filme, como tal exigiu muita dedicação, mas também foi extremamente recompensador.
Vejo que trabalha muitas vezes com arquivos e fotografias, e isso tem-se verificado cada vez mais nos seus últimos projetos. Diria mesmo que tem sido uma abordagem muito distante em relação, por exemplo, ao seu primeiro filme, a ficção “Bless Their Little Hearts” (1983). Sente-se fascinado pelas possibilidades que uma fotografia pode oferecer ao cinema?
Talvez seja porque comecei a explorar isso mais tarde. No início, fazia algumas fotografias e slideshows, mas não pensava exatamente em cinema. Talvez estivesse lá no meu horizonte, mas ainda não estava a concretizá-lo, era mais uma questão de ter um texto, normalmente não meu, sobre um tema histórico, e de forma obsessiva procurava fotografias que, de alguma maneira, dialogassem com esse texto.
Foi só depois, ao falar sobre esses começos com alguém há cerca de um mês, que percebi que as pessoas viam nisso algo cinematográfico. Diziam que tinha a ver com a forma como as imagens trabalhavam umas com as outras. Esse processo aconteceu antes de entrar na escola de cinema, mas não o tinha reconhecido como tal na altura.
Quando comecei a trabalhar com imagens em movimento, a fazer ficção e coisas do género, não pensava em fotografias, nem em imagens individuais. Essa relação com a fotografia veio mais tarde, sobretudo quando comecei a ensinar. Dei aulas num programa de fotografia numa escola de arte, e isso ajudou-me a aprender muito mais sobre fotografia, graças a fotógrafos, escritores e até aos meus próprios alunos. Foi aí que comecei a valorizar realmente a fotografia.
Também fui influenciado por cineastas como Hartmut Bitomsky e fotógrafos e escritores como Allan Sekula, o qual fizeram-me pensar de forma mais aprofundada sobre a fotografia, e talvez isso tenha aberto mais possibilidades para mim.
No meu filme “And When I Die I Won’t Stay Dead” (2015, sobre o poeta e ativista Bob Kaufman), não havia tantas imagens em movimento do tema, foi um processo de aprendizagem. Sabia que, nos anos 1950 em São Francisco, havia muitos fotógrafos talentosos, e isso também se devia ao facto de, naquela época, ser mais provável alguém ter uma câmara fotográfica SLR [single-lens reflex] do que uma câmara de filmar.
Felizmente, encontrei imagens de filmes, mas as fotografias ainda eram predominantes. Conhecia um livro de fotografias publicado por um deles, Jerry Stoll, chamado “I Am a Lover”, que é um dos melhores registos visuais do que era viver no bairro boémio de North Beach, São Francisco, naquela época. Trabalhei com essas imagens e outras de alguns fotógrafos importantes, o que me inclinou a usar fotografias de forma mais aberta e reflexiva nos meus filmes.
And When I Die I Won’t Stay Dead (Billy Woodberry, 2015)
Depois de “And When I Die I Won’t Stay Dead”, eu e Luís fizemos uma curta de 11 ou 12 minutos chamada "Marseille après la guerre”, composta apenas por fotografias. Foi durante a pesquisa para “Mário” que me deparei com a coleção de [José] Veloso de Castro, um fotógrafo militar. Essa descoberta levou-nos a criar uma história a partir das suas imagens de África.
Este interesse por fotografias não surgiu do nada. Há cineastas que admiro profundamente, como Santiago Álvarez, documentarista cubano. Ele dizia: "Dê-me duas fotografias e um pouco de música, e consigo emocionar-te; consigo fazer um filme." Embora não faça exatamente como ele, a confiança dele em usar fotos inspirou-me. Outro grande exemplo é obviamente Chris Marker, que também começou como fotógrafo.
Marker dizia que não se tornava fotógrafo porque William Klein era muito melhor. Mesmo assim, usava fotografias nos seus filmes e refletia sobre o que uma fotografia pode ser, em trabalhos como “Si j'avais quatre dromadaires” (“Se Eu Tivesse Quatro Dromedários”, 1966). A sua abordagem ao meio e o seu próprio trabalho fotográfico são algo que admiro muito.
Mas essa fascinação pela imagem fixa, pelos arquivos e por essa realidade, tem também fascínio na vaga de fotógrafos amadores da América e como a sua transição para o cinema, um cinema underground americano ou alternativo à fantasia vendida pela indústria hollywoodesca?
Sim, tem a ver com isso também. Refere-se a Helen Levitt e outros? Sim, porque os filmes e a fotografia dela foram realmente importantes para mim. Gostava muito do trabalho dela. Dediquei o meu primeiro filme a ela porque o modo como ela trabalhava era livre, interessante e original, especialmente no contexto de East Harlem.
Ela conseguiu fazer filmes dentro de uma indústria que já tinha regras muito estabelecidas. Além disso, colaborou com o escritor James Agee, e juntos fizeram outro filme que é um dos meus favoritos, chamado “In the Street” (1948). A sensibilidade que ela demonstrava na imagem fixa continuava presente quando passou a trabalhar com imagens em movimento.
Ainda que tenha mudado de plataforma artística, ela manteve aquele olhar aguçado para a observação, para os detalhes e para o movimento. Mas o foco nunca era abstrato; estava sempre nas pessoas, nas suas vidas.
Essas qualidades, essa atenção ao humano, ao particular, impressionaram-me profundamente e foram uma inspiração.
E sobre esses fotógrafos, muitas vezes captavam as classes, a classe trabalhadora, as vozes mais silenciosas que não tinham lugar no cinema de massas. Essa foi, como disse, uma das características do movimento LA Rebellion do qual fez parte: o de dar voz aos invisíveis no cinema mainstream?
Sim, exatamente. Talvez como muitos dos movimentos de novo cinema, especialmente o novo cinema latino-americano, que era profundamente radical e convencido da necessidade de tornar visíveis, no cinema e na cultura, as pessoas, as classes populares: como vivem, o que fazem, como se expressam, os desafios que enfrentam. Era uma forma de contrariar a tendência de simplesmente usar o cinema como escapismo.
Sob a influência dessas pessoas e encorajados pelo exemplo delas, tentámos fazer algo semelhante, e havia também uma necessidade, quase uma compulsão: uma vez que tivéssemos acesso ao meio, o que faríamos com isso? Imitaríamos os outros? Seríamos apenas entertainments? Não. Pensávamos que o cinema podia ser mais do que isso. Outros temas e outras subjetividades poderiam ser tão envolventes e interessantes quanto aquelas histórias banais com personagens fictícios, estrelas e narrativas pré-fabricadas.
"Boys with cigarettes", Nova Iorque / Foto.: Helen Levitt (1940)
Acho que foi assim que esse pensamento surgiu. Havia uma afinidade com as pessoas que mencionei, que se tornaram pilares, referências. Sabíamos que outras pessoas já tinham feito isso, e que era possível fazê-lo, se quiséssemos.
Felizmente, vi essas obras na escola e procurei aprofundá-las. Tinha amigos que também gostavam muito e as consideravam como referência. É quase uma tradição, como Chaplin, que também tinha essa preocupação com os temas humanos e sociais.
Visto chegou “Mário” por via de outras obras, pergunto-lhe como desfecho da nossa conversa, se no seu trabalho e pesquisa para este filme deparou-se com a ideia do seu próximo projeto?
Não tenho certeza. Tenho algumas ideias, algumas ‘coisas’ que gostaria de fazer, mas nada de concreto, como também tenho receio de embarcar em algo só porque preciso fazer alguma coisa. Não sinto que ainda tenha surgido o projeto certo, algo que me convence de forma definitiva. Mas espero continuar a procurar.