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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Segunda Chance para a Terra Queimada

Hugo Gomes, 14.07.20

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Foi no início deste ano que experienciamos nas nossas salas a balada de um foragido que, de forma a desaparecer, tenta diluir-se no meio natural em “Alva”, a primeira longa-metragem do português Ico Costa, enquanto neste galego “O Que Arde” evidenciamos uma negociada trégua entre um homem e o meio natural agredido por este. É a história de um incendiário “acabadinho” de concluir a sua sentença, regressando à sua “casa” para restabelecer a sua vida “interrompida”, ainda na companhia da sua idosa mãe. Nesta sua reconciliação com o espaço que violentou, o tal protagonista (Amador Arias), tenta reaver a confiança, em jeito de convivência com os seus atos passados.

Oliver Laxe, que há uns anos estreava na Semana da Crítica de Cannes com a viagem esotérica na cordilheira de Atlas, em “Mimosas”, separa-se do seu predileto Norte de África e filma a Galiza, do qual é oriundo, com igual exotismo. A veia algo mística perdura nesta demanda de readaptação, aliás, existe um constante gesto xamânico na maneira como o realizador extrai da realidade (as personagens incorporadas por não-atores, os espaços e os seus eventos ainda prevalecidos), desconstruindo-as e refletindo-as perante uma criatividade ficcional. E é como tal que voltamos a “Alva”, não pelo filme em si, e sim pelo movimento (duradouro aliás), que se insere – a docuficção. Conhecemos (nós, portugueses) tão bem esta arte e, sobretudo, esta ruralidade documentada e, mesmo assim, ficamos deslumbrados com as possibilidades ainda restantes de manejo da mesma. Em “O Que Arde” somos incentivados a uma verdadeira prova de fogo ao uso e abuso do realismo e da sua realidade, transformando em matéria minimalista que, enquanto ficção, contraria as clássicas etapas narrativas.

A narrativa, essa, deriva da deambulação de Amador Arias no seu renovado biótopo, o qual cede à sua projetada metamorfose para nos dar um homem reabilitado. Porém, a natureza envolta fará as suas partidas, servindo de analogia ao próprio foro emocional desta “criatura”, onde o espectador encarará como seu iminente carrasco perante o seu dúbio destino. Ao seu lado, a anciã Benedicta Sánchez (que interpreta a mãe de Amador, e curiosamente vencedora do Prémio Goya de Revelação aos 82 anos com esta produção) preserva com graciosidade o naturalismo exato e pretendido por Oliver Laxe. Ela é a figura central, a verdadeira “parceira do crime” para o tom requisitado do cineasta. Uma musa!

Fora essas jogadas nos limites da metodologia do cinema, “O Que Arde” confirma o realizador como um observador nato da beleza paisagista, sendo esta a recortada moldura destes pedestres ocasionais assim como acontecera em “Mimosas”. Contudo, não nos levem a mal as comparações com “Alva” e toda a docuficção portuguesa engatada (apesar de hoje existir alguns ensaios de notável sensibilidade, mas isso não é o caso), até porque este filme é uma pequena jóia dentro desse mesmo universo. E apropriando da sua analogia, Oliver Laxe é um pinheiro num denso eucaliptal ao som de “Suzanne”, de Leonard Cohen. Pois, soa abstrato… naturalmente abstrato!

"A ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade": falando com Eugène Green

Hugo Gomes, 23.12.19

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No início de 2020, mais precisamente no a 5 de janeiro, dá-se início à Retrospectiva Integral e à carta branca de um dos grandes devotos da cultura portuguesa, Eugène Green. Nascido em Nova Iorque e radicado em Paris, o realizador celebrizado em filmes “A Religiosa Portuguesa” e “La Sapienza” sempre renegou o inglês, chegando mesmo a recusar dialogar com alguém nesse “bárbaro” dialeto, como o considera. E não se trata de um mero capricho, o realizador é um ávido devorador da palavra, a verdadeira energia das suas personagens, das suas ficções e realidades. Green é um homem literal e com isso preza a sua liberdade na escrita e no processo de produção dos seus filmes.

A Imagem da Palavra“, o cabeçalho desta exposição exaustiva sobre a sua obra, é um atalho para entender o seu cinema e a última palavra aos universos criados pela sua prosa. Essa profunda análise ao seu cerne encontra uma extensão: os filmes que acompanham a sua figura, sejam eles da sua autoria ou de outros mas que fazem parte do seu paladar cinéfilo. Eugène conversou comigo sobre esta proposta, sobre a “sua palavra”, mundo e sapiência.

Na sua carreira, o que representa uma exposição como esta?

Apesar de eu já ter tido retrospectivas (quando a minha filmografia era um pouco mais curta, em festivais como o de Turim, Gijón, Riga, Paris-Cinéma, e recentemente na Cinemateca de Toulouse e no Arsenal em Berlim), esta é a primeira vez, tendo em conta a retrospectiva, no qual sou fruto de uma exposição num prestigiado museu de arte contemporânea. Como é óbvio, a sua representação é para mim importante.

Podemos esperar uma abordagem “íntima” da sua visão cinematográfica e poética nesta exposição? Não tem medo de expor o essencial, o íntimo, do seu trabalho?

Este é, de facto, um olhar externo ao meu trabalho – neste caso, o de António Preto [diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira] – e representa isso mesmo, sob outra forma, um artigo de análise crítica. Não é “íntimo”, pois não sou eu que me exponho aqui, mas alguém que, de forma contemporânea, observa atentamente e disseca o meu trabalho. Encaro isso como uma abordagem muito interessante e simultaneamente acredito que pode ajudar as pessoas a gostarem do meu cinema.

Visto tratarmos aqui de retrospectivas e análises ao seu trabalho, existe algum arrependimento na sua carreira? Por oposição, de que obras é que mais se orgulha?

Lamento especialmente ter perdido tanto tempo. Enquanto escrevo guiões com facilidade, lancei-me em muitos projetos, mas para que eles tenham sucesso, com algumas raras exceções, o tempo de espera é entre os quatro a cinco anos. Também lamento muito ter sido forçado a filmar “La Sapienza” e “Faire la parole” em digital, embora tenha sido acordado que os filmaria, tal como os outros filmes, em película. Os meus filmes são como se fossem os meus filhos, amo todos eles. Mas tenho uma ternura particular pela “A Religiosa Portuguesa”, porque foi aí, segundo a minha perceção, que fui mais longe em direção àquilo que procuro.

Em relação a Portugal, pode explicar este seu apego pela nossa cultura e pelas nossas pessoas?

É algo natural e espontâneo, que não procuro analisar intelectualmente. Portugal, o seu povo, a sua cultura e a sua língua tocam-me e despertam em mim uma memória que, sem dúvida, é mais antiga que o meu próprio nascimento.

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La Sapienza (2014)

O que pode nos dizer sobre o projeto “Lisboa Revisitada”?

Era “uma encomenda”, não no sentido em que me ditaram o tema, mas simplesmente porque me pediram para criar algo novo para a exposição, e o orçamento modesto do filme era financiado pela Serralves – o que significou que não houve a necessidade de esperar cinco anos para a sua realização. Também foi interessante enquanto experiência, pois é o meu primeiro filme de “montagem” – justapondo imagens de “A Religiosa Portuguesa” com imagens dos mesmos lugares, em Lisboa, filmadas em abril de 2019. É, portanto, um filme sobre os danos do turismo em massa e como este destrói a vida e a civilização. Mas espero desenvolver esse tema de maneira mais profunda, bem como o da violência no mundo contemporâneo, através de uma ficção que quero filmar em Portugal e em português … isto se pudermos encontrar o financiamento antes que o mundo acabe.

O que pode-nos dizer sobre o seu novo filme – "Atarrabi & Mikelats"?

É uma longa-metragem inspirada nos principais relatos da mitologia basca, sobre os dois filhos de Mari, a grande deusa basca, que adaptei para expressar alguns temas importantes para mim. E é inteiramente falado em basco. É um filme do qual me orgulho e espero que seja lançado em Portugal.

A temática desta exposição é a Palavra. No seu cinema, são as palavras que controlam a vida e não os gestos…

O tema realmente é – como o título diz – “A Imagem da Palavra“, que é a minha definição de Cinema, pois para mim o plano cinematográfico funciona como o discurso que existia na civilização europeia antes do triunfo, no século XVIII, da cultura racionalista e materialista. Existem muitas palavras nos meus filmes, mas elas visam tornar perceptível a vida interior daqueles que as falam. E tudo isso faz parte do plano cinematográfico. As minhas personagens podem não fazer muitos gestos, mas todo o processo do filme constitui uma ação.

Com exceção de “Tout Le Nuits” – baseado na obra ‘A Primeira Educação Sentimental‘ de Gustave Flaubert – os seus projetos foram inteiramente escritos com as suas palavras. Acha que com isso consegue controlar melhor um filme?

Nunca fiz essa pergunta, mas como acho que a ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade, em toda a sua complexidade, gosto de criar ficção. Acredito que a “adaptação” de uma obra literária ao cinema, como geralmente a consideramos, é prejudicial e, sim, gosto de ser completamente livre para desenvolver as minhas ficções e determinar as palavras que dizem as personagens.

No “Le Monde Vivant”, existe aquilo que podemos considerar uma (re)alfabetização do real. No mundo em que vivemos, esta nova alfabetização do real é realmente necessária?

Não sei se entendi bem a pergunta. Você evoca as poucas referências como “Jules Ferry” e “bruxa lacaniana”? Não precisa conhecê-los para apreciar o filme. A prova é que, na França, está no catálogo de uma associação chamada “Infância e Cinema”, que organiza exibições de filmes para grupos escolares. Já foi visto e geralmente apreciado por cerca de 70.000 crianças entre oito e dez anos, as quais duvido que saibam o nome de Jules Ferry e das quais espero que nenhuma tenha sido colocada nas suas mãos de uma bruxa lacaniana.

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Ana Moreira em "A Religiosa Portuguesa" (2009)

Gostaria que me falasse sobre as suas escolhas cinematográficas na carta branca, em particular na indicação de “Mimosas”, de Oliver Laxe.

Por razões alheias ao meu controlo, a seleção final não reflete totalmente a minha ideia inicial, que era programar três clássicos representativos da minha cinefilia e três jovens realizadores que fazem parte da minha “família” cinematográfica. Dos três clássicos, um filme de Ozu não estava disponível (e o segundo filme de Ozu, que propus, também não estava disponível). Entre os três jovens, queria programar o último projeto do Oliver Laxe,O Que Arde”, mas o distribuidor português não autorizou a exibição. Então programei o seu penúltimo filme, “Mimosas”, o qual também gosto muito, mas que pode ser considerado mais difícil para alguns espectadores.

Todos esses cineastas, mortos ou vivos, têm em comum uma ideia elevada do cinema como arte, uma linguagem pessoal e, sob diferentes formas, os respetivos trabalhos têm uma dimensão espiritual. Obviamente, entre os clássicos, também poderia ter escolhido uma obra de Bresson, Oliveira ou Fellini, cineastas que admiro muito, e entre os vivos, [um trabalho de] Bruno Dumont, Miguel Gomes, Pedro Costa, Apichatpong ou Eloy Enciso. Programar uma carta branca é como decidir que amigos vamos convidar para uma festa.