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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

De tripas de fora, o meu coração transforma ...

Hugo Gomes, 19.09.23

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Em coro, noticiamos um filme que se impõe numa vertente fabulista. Uma dívida de carne cometida por uma mãe vitimada pelas ameaças de uma “comedora de lobos”, criatura nefasta que se metamorfoseia em tudo o que mata, e que, num determinado dia, 'invade' o seu domicílio. O preço era a criança que segurava nos seus braços sob o olhar aterrorizado da progenitora, um pacto de sangue feito e cumprido… quer dizer, nunca chegando a esse propósito, visto que a criança, uma menina, é posteriormente mantida em segredo numa gruta, longe dos olhares humanos e sob a proteção da natureza perante aquela semi-bruxa disfarçada. 

Dezasseis anos passaram, a menina cresceu numa bela jovem (Sara Klimoska), animalesca como seria de esperar pelo incompreendido exílio, desconhecendo o mundo para além daquelas paredes cavernosas, a galeria rochosa que recebiam ocasionalmente a sua mãe, agora mulher obsessivamente paranoica. A fortaleza é previsivelmente 'desfeita' pelo pico da maioridade, a 'criatura' que há mais de uma década prometeu recolher o seu “prémio", chega sob a forma de uma rapina, atenta e astuta. A jovem é então “libertada” da sua progenitora biológica e adotada como cria desta figura-bruxedo, ensinando a morte como quotidiano e o isolamento como regra de ouro para a sua subsistência, e como recompensa, a transformação como parte do seu desígnio. Durante dezasseis anos a gruta foi tudo o que ela conhecera, a sua Caverna de Platão, agora a sobre-informação deste novo ambiente a leva ao extremo da curiosidade, ao incompreensível e nesse signo, a sua 'infiltração' na comunidade humana. 

Através destes golpes e apropriações identitárias e corporais, visto que é parte da visceral matança que a agora criatura assume a forma da sua presa, a protagonista vai incorporando lições de género naquele simplório estatuto social. Primeiro a mulher - aqui Noomi Rapace bailando nos ritmos da loucura numa liberdade performativa impressionante - assumindo a sua opressiva forma de ser, ordenada às lides caseiras e maternais, contando com a comoção de outras mulheres e a objetificação do seu bruto marido. Mais tarde, o homem - Carloto Cotta, no seu estado delirantemente natural - gozando de um poder imenso posicionado na sua genitália e igualmente esmagado pela pressão do patriarcado, o qual afigura. E, por fim, a criança, o crescimento e o ritmo fluidamente natural com que parte, é através desta perspetiva que o equilíbrio dos seus anos perdidos, aqueles remotamente figurados na fortaleza natural enquanto berço de dezasseis anos. 

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"You Won't Be Alone" (co-produção australiana, inglesa e sérvia) é, usufruindo do seu folclore macedónico, uma reflexão à Humanidade, repartida nos seus valores sociais, identitários e de género. O que valida ser humano? Goran Stolevski dirigiu e escreveu este tratado no seu território fantástico, violentíssimo reconto das infraestruturas humanas que intensifica enquanto filosofar vivente (não há absolutismos, só dúvidas gerando mais dúvidas), porém, aquilo que foi aqui descrito poderá abrir o apetite a recém-visitantes, só que a execução é preguiçosamente encostada a um efeito autoral miope, ou seja, o filme segue o registo malickiano (ou maliquices taradas); voz-off, sequências desconectas e longínquas de um natural raccord, a quasi-ausência de diálogos entre personagens, subserviente à tese ao invés da ação. É uma viagem com princípio na lenda e com percurso agreste naquilo que a autoralidade é confundida, neste caso, a noção autoral (apesar de tudo, uma tendência tão americanizada) de um Malick emprenhado e embelezado. Chamemos um exorcista para expulsar tal espírito malevolente!

Uma pena, que perante estas escolhas artístico-narrativas se sacrifique uma 'criança' com bastante potencial. Daqueles exercícios que preenchem teorias, só que desengonçados na sua prática.

Conheçam o vosso criador!

Hugo Gomes, 09.06.14

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Que segredos obscuros se escondem na vastidão do espaço? Será que a nossa origem está associada a essa imensidão estelar? Será o Darwinismo, concebido pelo naturalista Charles Darwin, a teoria mais concisa sobre o nosso surgimento? Qual é a nossa finalidade no planeta Terra? Estas são algumas das perguntas, entre muitas outras, que Ridley Scott incentiva na oculta jornada de "Prometheus", mas … “spoiler alert” … nenhuma delas será verdadeiramente respondida. 

O que poderemos encontrar na nova obra de Scott? Embora não possa responder a esta pergunta em definitivo, adianto que se trata de um filme de ficção científica que funciona como um 2 em 1. Primeiro componente, a tão ansiada prequela do universo "Alien", transportando-nos para 1979, onde nos deparamos com as primeiras imagens de Ellen Ripley e a sua tripulação no original "O Oitavo Passageiro" [o desusado título português], quando exploram uma nave espacial extraterrestre despenhada no planeta LV-426. Nessa sequência, assistimos a um cadáver alienígena com um crânio quase elefantino e um misterioso buraco no peito, sugerindo que algo “escapuliu” dali. Esta criatura cadavérica, que nunca mais surgiu na série, foi apelidada de "Space Jockey". A criação de H.R. Giger, responsável também pela decoração do seu túmulo e pela criatura estrelar da franquia, terá um papel importante em "Prometheus", visto o suposto “e tudo aconteceu” relatará o mistério daquele extraterrestre e a nave incluída.

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Ridley Scott prepara-se para nos levar 37 anos ao passado dos eventos de "Alien". Aqui, seguindo as pegadas de uma dupla de arqueólogos (Noomi Rapace e Logan Marshall-Green), autores de uma tese de que a espécie humana teve origem espacial, concebido pelos chamados "Engenheiros". Através de pistas encontradas em inúmeras civilizações primitivas da Terra, conseguem decifrar o suposto local onde residem estas alegadas criaturas "divinas". Após despertarem o interesse de um magnata moribundo, integram uma expedição espacial com a finalidade de conhecer os nossos criadores. 

O título "Prometheus", que é também o nome da nave da nossa tripulação protagonista, é previsivelmente uma alusão ao mito do titã grego expulso do Olimpo e condenado após tentar igualar os seres humanos aos deuses. A lenda determina o sentido nesta jornada em busca do conhecimento do nosso Deus e das verdadeiras motivações destes cientistas perante tal reunião. Scott manobra-se inteligentemente ao replicar tal ideologia com o androide a bordo, David (interpretado ambiguamente por Michael Fassbender), com ambições de igualar-se aos seus criadores, os humanos, numa evocação aos replicantes de outro filme dirigido por Scott, "Blade Runner" (1982), confirmando assim a combinação destes dois universos.

A mensagem de "Prometheus" pode soar, e muito, à Cientologia, mas tem a proeza de não se vender enquanto propaganda tal como fez o “horripilante” "Battlefield Earth" (Roger Christian, 2000) ainda hoje a pedra no sapato na carreira de John Travolta, como também em operar no oposto desse beato fascínio. Ridley Scott concebe "Prometheus" como um atmosférico thriller habitado nas lides da ficção científica, sempre preservando a sua teia conspirativa e misteriosa, uma astúcia algo surpreendentemente vinda de um realizador que após “Thelma & Louise” abandonou a coragem autoral e dançou em nome do dinheiro fácil. O filme é um gesto de bravura, porém, impróprio para “mesquices” de continuidades e na ordem estrutural de um argumento funcional (de Damon Lindelof, um dos autores da série "Lost", e Jon Spaihts), por outras palavras, a narrativa ostenta inúmeros e por vezes incomodativos “buracos”.

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"Prometheus" arranca nessa expedição inicialmente entusiasmante, o fôlego esgota-se gradualmente quando tenta a todo custo corresponder à ânsia dos fãs, deixando pelo caminho uma trama que se desleixa a toda a velocidade. Dito isto, pode parecer que o trabalho de Ridley Scott é uma banhada conceptual, mas na verdade, exibe qualidades que o destacam das maiorias dos congêneres contemporâneos, e que por sua vez opera como um blockbuster de maiores desafios que o normal da indústria, porque por baixo das suas gorduras dispensadas e da lógica contestada existe uma estrutura digna dos mitos, criações ao encontro do seu criador, cujo encontro é estritamente proibido, ou os Deuses de um velho evangelho, crueis, embebidos pelo seu Poder.  

Não é perfeito, mas, assumindo a postura de Joe E. Brown perante um Jack Lemmon que se auto-desmascara para se livrar de um matrimónio forçado na célebre punchline de “Some Like it Hot” (Billy Wilder, 1960), tal não importa.