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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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«Roman Porno»: os vagabundos do desejo

Hugo Gomes, 17.07.20

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“Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (Tatsumi Kumashiro, 1973)

Mais perverso que nunca, chegamos ao final do ciclo do “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), com dois filmes que olham sem medos para a amoralidade e ainda “trocem” a severa censura japonesa. Eles são “Lovers Are Wet”, de Tatsumi Kumashiro, e “Wet Woman in the Wind”, de Akihiko Shiota. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto.

 

- O VAI-E-VÊM DO SEXO E VIOLÊNCIA DA NIKKATSU -

Perante a tão apertada censura japonesa (o artigo 175 do Código Penal nipónico proíbe, até hoje, a representação explícita de órgãos genitais nas mais diferentes formas artísticas), Tatsumi Kumashiro (um dos realizadores mais característicos do movimento permutado pela Nikkatsu) eleva-se perante um gesto de troça.

Enquanto dois amantes copulam num prado sob as “vestes” de uma chapa negra, deixando em incógnito os seus corpos nus (a invocação injuriada dos agrestes veículos da censura), o protagonista aproxima-se suavemente em modo de furtivo voyeurista, abordando-os sem compaixão por eles. “O que é pior, espreitar ou mostrar?”. Sim, é a provocação, injetada em “Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (1973) , servindo de membrana para todo o movimento permutado pela Nikkatsu – o de levar o sexo ao limite da sua estética possível, ao mesmo tempo aproveitando esses momentos carnais e lascivos como atração para uma audiência “envenenada” pelos conteúdos controlados do boom televisivo.

Por isso mesmo, filmes como estes, embebidos na amoralidade das agressividades sem consequências, são mostras de temáticas, imagens e potências que de forma alguma seriam aprovadas em pequenos ecrãs no conforto do lar. O “roman porno” à luz desta obra de Kumashiro, reporta o cinema em sala não como o “motivador” escape do mundo real mas sim como um espaço de experimentação, de aliciantes desafios libertados (temporariamente) pelo crepúsculo da sala de projeção, inibindo o espectador de qualquer culpa no que está a ser visto e sentido.

Esta é a história de vagabundos que vêm “sabe-se lá donde”, trazendo consigo um rasto de caos, perversões e delinquências tardias, enquanto pedalam nas suas bicicletas “desenrascadas” (o filme abre e fecha sob essas voltas e reviravoltas da viatura em si). “Os Amantes Molhados” riposta num errante que entrega bobines aos variados cinemas, nunca falando do seu passado, e desprezando qualquer indício material e afetivo. Cantarola como quisesse (popularmente falando) os seus “males espantar”, ao mesmo tempo sem perceber que o seu desapego ético o torna num animalesco ser no sabor do “agora”. Sem remorsos e reflexões.

Os Amantes Molhados” é de um niilismo afetado pela brutalidade do contemporâneo consumista e do Japão na sua constante dúvida existencial.

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“Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016)

 

- O DESEJO É DESTRUTIVO, QUANDO QUER E QUANDO PODE -

Tal como o filme que homenageia, “Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016) embarca com pedalada na bicicleta de seres errantes. Aqui, a dita vagabundagem tem o adversário à sua altura – o eremitismo.

Porém, os papéis distorcem, a nómada é uma jovem sem paradeiro de um incontrolável desejo lascivo e o eremita é um dramaturgo que se refugia no seio do “selvagem”, sobrevivendo somente com os resquícios da sua anterior “civilização”. Este choque gerará um constante jogo de sexo procrastinado em prol de tensões que enlouquecem e que “colherão tempestades”.

Depois do espírito indomável e livre (fisicamente, psicologicamente ou eticamente) de “Os Amantes Molhados”, somos induzidos a um conto de verão, de suor e mamilos com luzes para os enfoques rohmerianos, dotado de provérbios cinematográficos.

Tudo é caóticamente caricato, absurdista e, ao seu jeito, descomprometido ao lidar com razões ou moralidades de quem quer que seja. É um objeto munido, movido e consequentemente transgredido pelo seu desejo, seja pelo seu representativo clímax, seja pela vontade de filmar corpos insaciáveis. O sexo é aqui energia, improvisada, dramática que funde com a simplicidade e a ingenuidade de um filme que ambiciona ser consumido sem nunca sonhar com a devoção.

Como "double bill", “Os Amantes Molhados” e “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” provam-se num dessincronizado, mas confiado tango de prazeres “impuros”.

«Roman Porno»: quando o sexo é o consolo das farsas ...

Hugo Gomes, 10.07.20

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“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“ (Isao Yukisada, 2016)

Nesta quarta parte do Ciclo “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), seguimos por dois filmes que olham de um certo jeito trocista para dentro do seu próprio alinhamento produtivo. Eles são “Black Rose Ascension”, de Tatsumi Kumashiro, o nascimento satírico e transgressivo de uma nova estrela da pornografia (incorporada na atriz Naomi Tani) e o farrapo humano de “Aroused by Gymnopedies”, de Isao Yukisada. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa.

 

- O NASCIMENTO ATRIBULADO DE UMA ESTRELA PORNOGRÁFICA -

Não é alienado encontrar no movimento "Roman Porno" um júbilo masturbatório que requer olhar para dentro da sua essência no processo logístico e criativo.

Êxtase da Rosa Negra” (“Kurobara shôten” , 1975) é uma sátira aos alinhamentos dos filmes porno-românticos. Dirigido por Tatsumi Kumashiro, esta auto-caricatura surge através de Juzo (Shin Kishida), realizador de filmes de teor lascivo algo charlatão, algo fracassado, que procura uma nova diva para as suas metragens depois de a sua atriz-fetiche encontrar-se de “esperanças”.

Durante a sua procura, que colide numa extravagante recolha de sons (o auge ocorre num jardim zoológico enquanto discute sexo com a sua “parceira do crime” sob um olhar atento de uma excursão escolar), encara uma gravação num consultório de dentista como um possível achado. Nela, é possível ouvir os gemidos de dor e contenção de uma mulher, que mais tarde saberemos pertencer a Ikuyo (Naomi Tani), que o nosso realizador perseguirá, assediará e persuadirá a participar no seu filme. O facto de esta mulher ser uma espécie de gueixa “congelada no espaço e tempo” não ajudará em nada na tarefa de conquista.

Construído em tons de comédia absurda, as contrastadas personagens são como hélices numa sátira que segue de cabeça para o retrato de um Japão dividido entre as suas entranhadas amarras tradicionais, sensualizadas, mas discretas, e a vanguarda libertina com um sedutor desejo de exposição. É um braço de ferro entre dois espectros de um só país, decorridos no auge do "boom" económico daquela época.

“Êxtase da Rosa Negra” é de um absurdismo calculado, arrojado, que adquire a sua força na igualmente caricatural montagem, quer visual e sonora, partituras que desfilam numa cadência de “desvirginação” ao som da marcha nupcial.

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“Kurobara shôten” (Tatsumi Kumashiro, 1975)

 

- O COITO AO SOM DE MEMÓRIAS PASSADAS -

Se a obra de Tatsumi Kumashiro assenta num dispositivo satírico para expor pornograficamente uma essência algo autorreferencial, já “Gymnopédies Escaldantes” (“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“, 2016), de Isao Yukisada, vira-se para a trágica mágoa de um realizador marginalizado, Shinjin (Itsuji Itao), que vê o seu filme interrompido por falta de financiamento.

O percurso deste ser soturno é outro: um luto insaciável que se “alimenta” dos corpos femininos parecem ser a sua fonte de vivência e razão pela deambulação noturna entre espaços conhecidos e desconhecidos. Mulheres são várias nesta jornada algo vampiresca, cada uma delas servindo de atalho para um outro corpo ambicionado, o da esposa de Shinjin, uma pianista, cuja melodia doce da "Gymnopédie No. 1", do compositor e pianista francês Erik Satie, é invocada sobre os atos lascivos como um ritual religioso.

Talvez “Gymnopédies Escaldantes” seja um dos filmes mais sentidos e menos reflexivos do movimento que homenageia, e igualmente um dos mais desengonçados do leque de tributos ao “roman porno”.

O tom depressivo e autodestrutivo entra em gradual embate com um jeito trocista e de hilariante enxovalhamento da personagem de Itsuji Itao. É como se nos deparássemos com o culto de um artista frustrado, presunçoso e negacionista quanto aos seus verdadeiros propósitos existenciais. A pomposa aura intelectual que deseja vestir é, por exemplo, “desmascarada” durante um "Q&A" de um dos seus filmes, ou pelas peripécias com que se aventura para saciar as suas diferentes sedes.

Este é um filme cruel para com o seu protagonista, convertendo-o numa comédia em forma humana, acorrentado a uma cinza de nojo com adiadas urgências por cumprir. A esperada (mas não desejada, nem mesmo pelo espectador) libertação acontecerá em forma de “punchline” de uma longuíssima piada mortal. É a última tirada, demonstrando que as memórias não se duplicam nem a elas se regressam imaculadamente. Isso, em conformidade com a essência de tributo de “Gymnipédie Escaldantes”, é uma mórbida autocrítica.

«Roman Porno»: Ainda há muito desejo para consumir ...

Hugo Gomes, 03.07.20

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Anti-Porno / Anchiporuno (Sion Sono, 2016)

Com toda a dedicação, prosseguimos para terceira parte do ciclo “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Chega-nos a vez do quarto filme da série Angel Guts: Red Porno (Tenshi no Harawata: Akai Inga, 1981), de Toshiharu Ikeda, e o não consensual, Anti-Porno (Anchiporuno, 2016), de Sion Sono.

 

 - DE "TRIPAS-CORAÇÃO” COM O DESEJO NÃO-RETRIBUÍDO -

A adaptação de uma série manga de Takashi Ishii de caráter erótico/pornográfico algo repreensivo e perverso que explora os limites da violência sexual (mais exatamente a violação) e o "exploitation artístico" encontrou lugar na tela sob a coordenação do realizador Chūsei Sone pela Nikkatsu. Tornou-se num dos mais rentáveis da galeria “Roman Porno”, ainda que roçasse no limite deste movimento artístico e no dos chamados “pink films” dos estúdios rivais (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo inferior).

Este “Red Porno” (“Tenshi no Harawata: Akai Inga” / “Angel Guts: Red Porno”) assume-se como o quarto desta série cinematográfica, após estas fantasias terem passado para a mão de Noboru Tanaka (o mesmo de Noites Felinas de Shinjuku (“Mesunekotachi no yoru”), em 1979. Toshiharu Ikeda (1951 – 2010) foi o realizador escolhido para levar a cabo este capítulo que nos remete para uma jovem vendedora de centro comercial, Nami (Jun Izumi), que após ter aceitado ser capa de uma revista de cariz lascivo, vê-se perseguida por um fã obsessivo.

Sob a luz das lentes das consciências atuais, indiscutivelmente que a série "Roman Porno" é difícil de digerir e este filme não foge a regra: “Red Porno” debate-se constantemente no limiar da violência e do sexo, da criminalidade e da sensualidade, na passividade e na profunda e realizada perversão. É sobretudo um filme de agressivos pulsares de desejo, mas filmados como a tenra fantasia (quente, húmida, lubrificada e imunda).

Seja como for, “Red Porno” não nos atinge somente pelas imagens, equilibrando entre o sugestivo e a carnalidade possível (tentando sempre contornar os censores apertados, e dessa forma “trocista” para com um ainda proibido “In the Realm of the Senses" / “Ai no korîda”, que Nagisa Oshima fez em 1976, homenageando-o numa das cenas), mas como também pela sua apetência sonora. Através dos escorridos sons, do estalar suave e ecoante dos dedos e dos objetos penetrados, grande parte deles deixados à nossa fértil imaginação.

Os sentidos fazem parte desta viagem ao nosso íntimo mais depravado, por entre perseguidores passivos que projetam violações imaginárias ou as "ingênuas donzelas” (os “anjos” do título que remexem neste conceito de purezas, aparentemente, impenetráveis), a sonoridade complementa a ala criminosa.

Vísceras de Anjo: Red Porno” funciona como uma obra a caminho do limite deste território “roman porno”, espelhando em nós a determinação do voyeurismo e os fetiches levados da breca por aí suscitados. Talvez Ikeda tenta com a popular e tabu manga identificar o desejo feminino, nas suas fronteiras mais libertinas e inquestionavelmente submissas. E curiosamente, nisso também um diálogo convergente e semi-antípoda para com Michelangelo Antonioni e o seu (com uma diferença de um ano) “Identificazione di una donna” / “Identification of a Woman” (1982).

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Angel Guts: Red Porno / Tenshi no Harawata: Akai Inga (Toshiharu Ikeda, 1981)

 

- A PORNOGRAFIA ROMÂNTICA ESTÁ ULTRAPASSADA -

Assinado pelo muito popular e transgressivo cineasta nipónico Sion Sono (“Suicide Club”,TAG”), “Antiporno” faz parte da série de homenagem ao legado da Nikkatsu e é o menos consensual desse grupo. Também o mais reflexivo para com o movimento o qual enverga: mais do que um mero exercício meta, embute em certas veias "brechtianas" [relativo ao dramaturgo e poeta Bertolt Brecht], no querer revelar e assumir-se automaticamente como uma farsa narrada perante o espectador.

Aqui, Kyôko (a tão adequada “over-the-top Ami Tomite, uma das atrizes fetiches de Sion Sono) é uma jovem de alma artística e de um ego fraturado, mas igualmente assombroso, que procura intensamente, durante uma caótica entrevista, desvendar o elo do seu foro criativo e simultaneamente da sua sexualidade, uma ação que acaba por se revelar na rodagem de um filme ao estilo “roman porno”. Após esta passagem de realidade, os papéis invertem-se: Kyoko não é mais do que uma jovem inexperiente, uma aspirante a atriz, engolida por outros em consequência da sua presença esmorecida. Aqui, ela é uma jovem que se confronta com a ideia de sexo na sociedade que íntegra, que ora é, segundo os sermões do pai, uma obscenidade ou é um gesto natural a merecer ser reivindicado em todas as frentes.

“Quero tornar este corpo em algo obsceno!”, suplica a certa altura Kyôko perante o realizador e equipa de "casting" do filme que irá integrar, demonstrando qual a sua básica e aparente noção de emancipação: revelar-se como objeto sexualizado perante ao mundo! Em “Antiporno”, nota-se que existe uma exaustiva invocação e tratamento “male gaze” (palavra hoje em voga que se resume à sexualidade sob o prisma do desejo masculino) que, simultaneamente, é satirizado e caricaturado ao serviço de um instabilizado malabarismo de realidades e com isso, percepções (as personagens não escondem o facto de que são observadas por nós, espectadores). Trata-se de uma crítica biforme e irreverentemente ingrata para com o rótulo de "homenagem" ao "Roman Porno", uma dissecação e revisionismo de todo um ciclo, expondo as suas fragilidades enquanto cinema na vanguarda, à boleia da nossa modernidade.

O artifício dimensional perpetuado por “Antiporno” (simbolizado, que no seu todo, por um lagarto preso na garrafa, o fatal conformismo pela sua realidade) anula qualquer perversão obtida do exercício sexual, revelando-se um trabalho-tese que finaliza todo um gesto produtivo. Depois deste filme, acreditamos que as vontades (se existissem) de ressuscitar o “roman porno” nos nossos dias não serão mais do que meros devaneios oriundos de homens saudosistas, presos a um passado cada vez mais longínquo.

Com o cineasta Sion Sono, o sexo muda de holofote, altera a sua exposição, o seu consumismo e sobretudo o seu olhar e os olhos pelo qual se direciona. O que sobra é a cultura do seguidismo, da veneração dos corpos e a constante batalha campal em salvaguardar o sexo como a divina arte.

Yasujiro Ozu: uma viagem a Tóquio com gosto de saké

Hugo Gomes, 22.01.14

Yasujiro Ozu é novamente uma personalidade em estudo graças à reposição de duas das maiores obras de sua carreira – “A Viagem a Tóquio” e “O Gosto do Saké” – que chegam às salas do nosso país sobre o formato digital restaurado, mas que ainda preservam a sua dramaturgia artesanal que somente o mestre nipónico poderia incutir.

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Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)

 

Viagem a Tóquio: “A vida decepciona

Não é em vão que se marca o reencontro dos espectadores com estas obras incólumes. Vivemos numa sociedade onde a distância entre gerações é cada vez mais diferenciada e isolada entre elas, provocando nestas adversidades uma incompatibilidade social que é gradualmente notada nos avanços e na modificação do quotidiano tal como o conhecemos. Ozu ilustrava há 60 anos tal longitude geracional num retrato deveras alusivo e exaustivo em simbologias presentes nos seus diálogos, na monotonia dos atos, nos laços familiares e por fim na multiplicidade de sentimentos.

Falo obviamente de “A Viagem de Tóquio” (“Tokyo Monogatari", 1953), onde é visível o confronto entre épocas ambientado num Japão em plena reconstrução, quer social e económica, após a humilhante derrota na Segunda Grande Guerra. O enredo é deveras simples: um casal de idosos oriundo de uma calma e pequena cidade costeira “ozuesca” viajam para a capital nipónica com fins de visitar os seus filhos e confirmar como se estão saindo fora das suas “alçadas”.

Durante esta jornada de reencontros familiares, os “velhotes” apercebem-se que os tempos mudaram e as suas anteriores crianças já não são mais crianças que necessitam dos pais, são agora adultos feitos e de família formada que tentam sobreviver numa cidade competitiva. De natureza ocupada e sempre dotados de uma certa frieza em relação à visita dos seus progenitores, os filhos tentam mantê-los ocupados com atividades das quais não requerem a suas presenças, fazendo com que estes tenham as merecidas férias mas não as pretendidas.

Porém, a ironia das ironias é que a única pessoa que os recebe com a tal devida atenção e respeito durante a viagem é a nora viúva, que demonstra tamanho afeto, principalmente no tremendo clímax que Ozu aguarda para o último ato. Uma trama simples, interligada pelas mais diferentes rotinas familiares onde pouco ou nada parece surgir no ecrã. Contudo, este é o filme que mais sintetiza o próprio estilo e inerência do cineasta nos seus anos mais tardios.

Uma obra de uma beleza inigualável onde Ozu tece um confronto de gerações e “coze” discretamente qualquer veia sentimental mas que as difunde nas proximidades do final, nos quais deparamos com uma orquestrada capacidade em transmitir sob um signo nobre, uma ênfase emocionante, de beleza triste e súbita, capaz de colher uma poderosa moral.

Claramente esta é a obra-prima do cineasta, um quadro subtil, bem-intencionado e sempre munido de mensagens ocultas nos cenários e nas triviais conversas entre personagens. “A Viagem de Tóquio” foi durante a sondagem de 2012 da revista “Sight & Sound” considerado o terceiro melhor filme de sempre entre os críticos, e o primeiro entre os realizadores, distinção discutível, mas que se reconhece ser de certa forma merecida: esta é uma das obras que nos “tocam” pela sua simplicidade em emoções que ecoam por toda a eternidade.

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Sanma no aji (Yasujiro Ozu, 1962)

 

O Gosto do Saké: a despedida agridoce

Em “O Gosto do Saké” (“Sanma no aji”, 1962), o último filme da sua carreira e o segundo sexto a cores como uma pastosa pintura a guache se tratasse, Ozu aborda um país sob uma crise de identidade. Enquanto em "A Viagem de Tóquio”, por exemplo, continuávamos a assistir um Japão tradicional em plena remodelação após a derrota na Guerra, na derradeira obra deparamos com uma nação nipónica cada vez mais contagiada pelo Ocidente.

Entre os exemplos, Ozu filma grandes fábricas industriais, os produtos ocidentais em constante presença no quotidiano das personagens (a cerveja ao invés de saké, o macarrão ao invés de arroz, as uvas aos invés das deliciosas iguarias) e a vontade destas em mimetizar o estilo de vida norte-americano, enchendo as suas habitações com os mais claros acessórios do moderno ocidente. E não só: até mesmo o uso de contraceptivos é referido.

É uma transição visual e inerente que o cineasta implanta sob uma trama tão usual na sua carreira, novamente balançando os seus ingredientes em mais uma nova visita à classe média. “O Gosto do Saké” resume-se a um drama agridoce sobre a importância do casamento como dever de uma vida e a solidão que atinge a “velhice” (um dos elementos altamente referidos na carreira do realizador).

A história centra-se num viúvo, interpretado pelo ator Chishu Ryu (cara conhecida da obra de Ozu), que tenta arranjar casamento para a sua única filha. Contudo, o medo do isolamento instala-se. Uma obra tão rica em simbolismos, ditada pelas ocorrências minuciosas e demoradas, “O Gosto de Saké”, tal como o título parece indicar, é um filme para saborear, para sentir e, acima de tudo, interagir. O final é novamente contagiado por um clímax algo poético que, apesar não ter a mesma força emocional que “A Viagem de Tóquio”, possui um traço especial, uma despedida dolorosa mas incutida como uma prolongada balada de um realizador e um cinema tão único como “tão japonês”.

Os constantes olhares ao passado com pouca crença no futuro cada vez mais reduzido e o país que metamorfoseou em consequência dos mais inúmeros eventos, até se tornar numa terra capitalista, onde a modernidade ocidental tenta a todo o custo apagar uma herança tradicional. O quotidiano de Ozu é igual a si mesmo, sob uma capa adulterada e sofisticada. Chishu Ryu encontra-se perfeito a personificar Yasujirô Ozu nesta tremenda despedida, visto que o realizador faleceu um ano depois de “O Gosto do Saké”, no exato dia do aniversário, quando completava 60 anos.

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Yasujiro Ozu

 

A Poesia da Simplicidade

A classe média é o ponto central da fase mais madura da carreira de Ozu, que transcreve tais atos tradicionais no seu modus operandi. Os planos estáveis e centralizados que automaticamente cedem a close-ups igualmente “adormecidos” da face dos atores como se estivessem realmente a dialogar com o espectador, uma constante quebra da quarta barreira e sob a acta do falso-raccord (o voluntário corte da continuidade de planos). A câmara posicionada a meio metro do chão, simbiótica para os característicos costumes nipónicos (tais como a típica postura sentada de joelhos no chão) e as interpretações forçosamente rígidas.

Em relação à alma de Ozu, a sua filmografia é repleta de temas e abordagens comuns em todas as suas obras, retratando valores familiares, modernização em confronto com o tradicionalismo, a herança geracional e a morte como “vizinha” iminente de um ciclo. Em todos estes casos, o cineasta conseguiu formular e distinguir uma identidade fílmica, onde os mais variados elementos nos façam facilmente identificar se estamos ou não a assistir um filme da sua autoria.

Talvez seja por essa estrutura modelar que o realizador nunca conheceu a distinção que outros mestres do seu tempo conheceram, como Kenji Mizoguchi ou Akira Kurosawa. Longe dos épicos ou dos dramas complexados, o cinema de Ozu é visto como uma espécie de anti-cinema clássico, uma rotina que invoca subtileza mas nunca a espetacularidade cinematográfica necessária para ser vista por milhões. Todavia, sempre foi apelidado do “mais japonês dos realizadores japoneses“, devido à sua fidelidade para os costumes quotidianos da sua nação.

Trata-se de um cinema algo marginal para a época mas, que a pouco a pouco, talvez graças a um pensamento algo vanguardista que surgiu entre os anos 60 e 70, começou a se destacar entre circuitos cinematográficos e a ser motivo de estudo principalmente em relação à sua sofisticação narrativa e a firmeza com que transforma o quotidiano em pura subtileza artística.

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Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)

 

Ozu em Portugal

Em Portugal o seu reconhecimento chegou muito mais tarde, precisamente no mês de julho de 1980, graças aos ciclos cinematográficos garantidos pela Fundação Calouste Gulbenkian, que na altura serviam como alternativas da Cinemateca de Lisboa, em tempos nos quais a sua programação ainda não era diária.

Contudo, a chegada das duas obras, subtis ao mesmo tempo ricas com a cultura do outro lado do mundo mas sempre envolventes com temas tão nossos, é um sinal de uma nova manifestação cinéfila do nosso país após 33 anos da sua chegada a Portugal. Anteriormente nenhum filme de Yasujiro Ozu havia estreado comercialmente nas nossas salas e, tendo em conta a quantidade de obras clássicas repostas nos respectivos cinemas ao lado dos blockbusters e os mais recentes êxitos, esta é a evidência de que o passado nunca fora esquecido, quase citando uma alusão ao espírito de Ozu.