«Roman Porno»: os vagabundos do desejo
“Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (Tatsumi Kumashiro, 1973)
Mais perverso que nunca, chegamos ao final do ciclo do “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), com dois filmes que olham sem medos para a amoralidade e ainda “trocem” a severa censura japonesa. Eles são “Lovers Are Wet”, de Tatsumi Kumashiro, e “Wet Woman in the Wind”, de Akihiko Shiota. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto.
- O VAI-E-VÊM DO SEXO E VIOLÊNCIA DA NIKKATSU -
Perante a tão apertada censura japonesa (o artigo 175 do Código Penal nipónico proíbe, até hoje, a representação explícita de órgãos genitais nas mais diferentes formas artísticas), Tatsumi Kumashiro (um dos realizadores mais característicos do movimento permutado pela Nikkatsu) eleva-se perante um gesto de troça.
Enquanto dois amantes copulam num prado sob as “vestes” de uma chapa negra, deixando em incógnito os seus corpos nus (a invocação injuriada dos agrestes veículos da censura), o protagonista aproxima-se suavemente em modo de furtivo voyeurista, abordando-os sem compaixão por eles. “O que é pior, espreitar ou mostrar?”. Sim, é a provocação, injetada em “Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (1973) , servindo de membrana para todo o movimento permutado pela Nikkatsu – o de levar o sexo ao limite da sua estética possível, ao mesmo tempo aproveitando esses momentos carnais e lascivos como atração para uma audiência “envenenada” pelos conteúdos controlados do boom televisivo.
Por isso mesmo, filmes como estes, embebidos na amoralidade das agressividades sem consequências, são mostras de temáticas, imagens e potências que de forma alguma seriam aprovadas em pequenos ecrãs no conforto do lar. O “roman porno” à luz desta obra de Kumashiro, reporta o cinema em sala não como o “motivador” escape do mundo real mas sim como um espaço de experimentação, de aliciantes desafios libertados (temporariamente) pelo crepúsculo da sala de projeção, inibindo o espectador de qualquer culpa no que está a ser visto e sentido.
Esta é a história de vagabundos que vêm “sabe-se lá donde”, trazendo consigo um rasto de caos, perversões e delinquências tardias, enquanto pedalam nas suas bicicletas “desenrascadas” (o filme abre e fecha sob essas voltas e reviravoltas da viatura em si). “Os Amantes Molhados” riposta num errante que entrega bobines aos variados cinemas, nunca falando do seu passado, e desprezando qualquer indício material e afetivo. Cantarola como quisesse (popularmente falando) os seus “males espantar”, ao mesmo tempo sem perceber que o seu desapego ético o torna num animalesco ser no sabor do “agora”. Sem remorsos e reflexões.
“Os Amantes Molhados” é de um niilismo afetado pela brutalidade do contemporâneo consumista e do Japão na sua constante dúvida existencial.
“Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016)
- O DESEJO É DESTRUTIVO, QUANDO QUER E QUANDO PODE -
Tal como o filme que homenageia, “Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016) embarca com pedalada na bicicleta de seres errantes. Aqui, a dita vagabundagem tem o adversário à sua altura – o eremitismo.
Porém, os papéis distorcem, a nómada é uma jovem sem paradeiro de um incontrolável desejo lascivo e o eremita é um dramaturgo que se refugia no seio do “selvagem”, sobrevivendo somente com os resquícios da sua anterior “civilização”. Este choque gerará um constante jogo de sexo procrastinado em prol de tensões que enlouquecem e que “colherão tempestades”.
Depois do espírito indomável e livre (fisicamente, psicologicamente ou eticamente) de “Os Amantes Molhados”, somos induzidos a um conto de verão, de suor e mamilos com luzes para os enfoques rohmerianos, dotado de provérbios cinematográficos.
Tudo é caóticamente caricato, absurdista e, ao seu jeito, descomprometido ao lidar com razões ou moralidades de quem quer que seja. É um objeto munido, movido e consequentemente transgredido pelo seu desejo, seja pelo seu representativo clímax, seja pela vontade de filmar corpos insaciáveis. O sexo é aqui energia, improvisada, dramática que funde com a simplicidade e a ingenuidade de um filme que ambiciona ser consumido sem nunca sonhar com a devoção.
Como "double bill", “Os Amantes Molhados” e “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” provam-se num dessincronizado, mas confiado tango de prazeres “impuros”.