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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Lanthimos, o caçador furtivo sem clemencia

Hugo Gomes, 22.05.17

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Yorgos Lanthimos incomoda, tira-nos o chão das nossas morais, desafia o politicamente correto e sob o jeito meticuloso e calculista conduz o espectador numa viagem para o além sentido. “The Killing of the Sacred Deer” é um filme frio, na sua teoria, onde as personagens, como é hábito na sua filmografia, comportam-se de forma mecanizada, operadas por um texto que não lhes condiz e movimentando planejadamente cada gesto.

Mas ao contrário do anterior “The Lobster”, a nova aventura de Lanthimos adquire um surpreendente sentimento de frivolidade colmatada, as personagens tentam gradualmente sair dos seus velcros, sonham alcançar a humanidade não reconhecida dos seus “bonecos”, até porque o realizador opera como um psicopata, psicologicamente falando, conhecendo as barreiras das éticas ocidentais e mesmo assim transpondo-as de livre vontade. Verdade seja dita, “The Killing of the Sacred Deer” não está longe do território do cinema de terror, muita vezes desafiante nessas questões morais, mas não estamos a referir um filme de terror, estamos a falar de uma estranha distopia de Lanthimos – não outra sociedade alternativa, e sim, a nossa realidade onde um elemento “alienígena”, algo impróprio, parece criar as suas raízes.

Tudo começa com um cardiologista (Colin Farrell), de família feita (esposa e dois filhos), que visita constantemente o filho de um falecido paciente, provavelmente culpado pela sua morte. O rapaz (Barry Keoghan) apresenta traumas psicológicos, o espectador fica na dúvida quanto a esses mesmos tormentos, até porque os maneirismos anormais confundem-se com a “normalidade” a lá Lanthimos (e do sempre colaborador argumentista Efthymios Filippou). Contudo, chega o momento em que percebemos que estes ciclos pretendidos corrompem-se quando o cardiologista é ameaçado por uma escolha. A escolha que o fará redefinir novamente como humano sentimental, ou talvez expondo a sua frieza no seu estado mais puro e esterilizado. Sim, essa escolha, essa difícil escolha requer a morte de um ente querido, e apenas ele terá que anunciar a sua mesma morte.

Lanthimos continua com o seu estilo obcecado pela estética, quase kubrickiana. Esta, limpa e mecanizada, uma banda sonora esquizofrênica (entre o rompante e minimalista, a condizer com o espírito do filme), personagens atípicas e aparentemente sem sopro de vidas, reféns da sua sociedade. A inovação de “Killing of the Sacred Deer” advém desse gradual rompimento com as suas próprias regras, conservando ainda o seu modo de provocar de maneira subtil, mas enganosamente explosiva o público. A vingança confrontada sob outra perspetiva e uma atormentada Nicole Kidman são os tiros certeiros para a morte deste “veado sagrado”.

Em Terra Estranha, a areia vermelha é sinónimo de loucura

Hugo Gomes, 09.08.15

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Nicole Kidman regressa ao seu país de origem – a Austrália – longe dos cenários plastificados da homónima aventura de Baz Luhrmann, mas próximo do território desconhecido e repleto de misticismo quase aborígene, o qual este “Strangerland” (“Em Terra Estranha”) nos apresenta desde o primeiro instante. A primeira longa-metragem de ficção de Kim Farrant ostenta uma atmosfera misteriosa constantemente alimentada pelas características paisagens “aussies” filmadas com o auxílio de drones e de uma sonoplastia envolvente que nos levam ao encontro dos mesmos feitos de David Lynch na década de 90 – o enigmático envolvido em concordância com a sonoridade.

No centro deste retrato enfeitiçado do deserto vermelho e das terras que albergam lendas em que as serpentes são autoras do mundo que tão bem conhecemos, deparamo-nos com a história de um disfuncional casal que atravessa o maior obstáculo da sua respectiva relação no preciso momento em que os seus dois filhos desaparecem sem deixar qualquer rasto. Nicole Kidman é a “dona de casa desesperada”, perturbada por um perfil psicológico que nos é dado gradualmente no desenrolar da intriga, e o seu marido, Joseph Fiennes, é um homem negligente que acaba por ser consumido pelo arrependimento.

Como “intruso” desta relação em plena queda, Hugo Weaving desempenha um agente dedicado em encontrar os tais desaparecidos, ao mesmo tempo entranhado num autêntico turbilhão de emoções despoletadas pela personagem de Kidman. Neste filme temos ao nosso dispor um trio inconformado de atores todos eles dando, à sua maneira, frágeis e traumatizadas personagens que atingem os seus picos de loucura quando menos esperamos. E é nestes momentos que reencontramos o “fenómeno”, uma Nicole Kidman resgatada da sua carreira decrescente e agora sujeitada a um longo transe, em acordo com a narrativa incutida pela fita.

Para além disso, o “território estranho” que o título sugere está muito longe da imagem cénica apresentada, e sim dos lugares desconhecidos e inexplorados que a intriga caminha sob uma forma conturbada, sem nunca envolver-se em explicações de última hora, nem suspeitos em mente. Nada aqui é o que parece, e o óbvio não tem lugar na incondicionalidade deste thriller intimista. No geral, “Em Terra Estranha” é um filme de atores induzidos por uma futura cineasta, cruel para com o seu leque de personagens. Uma obra hipnótica, desconcertante e, à sua maneira, experimental. O enigma da Austrália e os efeitos do seu passado ancestral em cumplicidade com a psicologia das suas personagens.