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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Male Gaze? Female Gaze? Não, non-gaze!

Hugo Gomes, 27.12.24

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Perguntam-nos, hipoteticamente, o que é o erotismo? Como se valida o erotismo no cinema? Estas questões, verdadeiros dilemas que nos colocamos, nascem de um debate cada vez mais aceso sobre os “gazes”, seja o masculino, seja o feminino, ou até na subversão daquilo que encaramos como certos os códigos do erotismo cinematográfico. Contudo, existe algo crucial, talvez transversal à identidade dos olhares: o tempo. Que tempo dedicamos à arte de erotizar? Que tempo oferecemos ao “objeto-perspetiva” desse subgénero?

Isto para dizer, de forma clara e simples, que “Babygirl” não é um filme erótico, porque não existe esse tempo dedicado, principalmente ao erotismo de Nicole Kidman, atualmente com 57 anos. Mas a questão não se centra na atriz ou na sua idade (apesar desse fator influenciar o “objeto-perspetiva”), e sim no acompanhamento da sua performance por parte de quem está do outro lado da câmara: a realizadora neerlandesa Halina Reijn, que, em tempos, submeteu Carice Van Houten a preparados semelhantes (vide “Instinct”, 2019).

É evidente que “Babygirl” marca a grande entrada de Reijn no “cinema dos grandes”, usando Nicole Kidman como o seu cavalo de Troia. Kidman interpreta uma CEO de uma empresa hi-tech, com pernas esticadas pela inteligência artificial — uma figura de poder insatisfeita sexualmente. Nem mesmo o seu caliente marido, um dramaturgo interpretado por Antonio Banderas (convenientemente confortável na sua sexualidade), faz algo para inverter a frigidez desse desejo. A premissa é simples e, até certo ponto, pertinente: uma mulher experiente no Mundo, abraçada ao poder instituído e capitalista que nos rói a alma, rende-se à sedução masoquista de um estagiário (Harris Dickinson, “Triangle of Sadness). Constrói-se aqui uma inversão de papéis: ela, poderosa; ele, um mero funcionário à experiência. Mas já lá vamos às problemáticas dessa cantiga.

Desde o primeiro momento, percebemos as fissuras deste matrimónio que não se cumpre na cama. A personagem de Nicole Kidman salta da mesma ainda quente das relações com o marido para “afogar-se” nas certezas da pornografia, encerrando assim o assunto. É aqui que a câmara de Reijn parece coincidir com as perturbações sexualmente amorosas da personagem, mas esquece-se do restante. O filme, de handcam profundamente desautorizado, filma sexo aos trambolhões, edita e re-edita sequência por sequência, e nunca, mas nunca, olha de frente para Kidman. Ela é um sujeito distante, que não merece nem amor, nem um olhar lascivo da câmara. Nunca a vemos a expor-se devidamente, nunca — e, tendo em conta a sua idade, a procurar a sua sexualidade. Tudo é filmado como pornografia: daí a câmara tremida (os tripés desapareceram!?), frívola, sem tempo algum dedicado ao seu “objeto-perspetiva”. Será idadismo? Convenço-me de que sim, porque, no momento em que Dickinson retira a camisa e dança uma “private” para a realizadora — com Kidman como figurante na equação —, o filme perde tempo a contemplar os seus abdominais, as costas definidas, os bíceps em movimento. Ou seja, uma câmara que foge de Kidman e se aproxima do seu estagiário psicopata ... não é "female gaze" porque não existe um outro olhar para atriz, aliás apenas desprezo.

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E aqui surge outro problema: a “cantiga de embalar” — neste caso, a do Poder entregue às mulheres, captando uma sororidade sem reflexão. Repito: ela — CEO, ele — estagiário. E, mesmo assim, o filme retrata o “fulano” com ares obsessivos e questões por resolver em terapia. Deste lado, pensamos: “Coitada dela, a ser manipulada por essa criatura nefasta chamada homem.” Pois bem, “Fifty Shades of Grey”, no seu lado mais negro (longe do glamour mercantilista que nos martirizaram), é a história de uma mulher manipulada por um homem. Aqui, é só a desculpa para torcermos por uma Kidman em posição de privilégio perante o seu “jovem agressor” (só de pensar que a atriz recusou o papel de Isabelle Huppert em “Elle” de Verhoeven, e esse é sim, um filme devidamente ácido com o Poder e persuasão da fantasia no feminino, para fazer pandã com outro clássico, “La pianiste” de Haneke).

Já perto do final, existe um discurso entre duas mulheres, a personagem de Kidman e a sua assistente em vias de promoção, com os seus toques de “todas juntas” para manterem os lugares no alto das hierarquias, é um exemplo dessa leitura enviesada. Em 1994, Michael Douglas foi “violado” (deixem-me rir desta parte) por Demi Moore, a sua patroa, em “Disclosure” (dirigido por Barry Levinson), e hoje ninguém prega a inocência da personagem de Douglas nesse filme obsoleto. Portanto, mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades. É óbvio, sim, que vivemos numa sociedade em mudança, e daí surge o revisionismo das obras cinematográficas. Talvez, enquanto espectadores cada vez mais pavlovianos, estejamos inclinados a assumir que filmes dirigidos por mulheres são automaticamente críticas ferozes ao patriarcado, mas, quando o tema é Poder, o sexo não é uma lavagem alternativa: esse mesmo corrompe, independentemente de quem o detenha (basta olhar para Margaret Thatcher — foi uma mulher de Poder, não é verdade?).

Babygirl” apresenta-nos uma tremenda ingenuidade na sua mensagem. Convém não nos indignarmos tanto pela sua inconsequência ou acrotismo às relações de Poder, mas também não podemos ignorar um filme de uma tanga tão ambiciosa e, ao mesmo tempo, tão incompetente na sua ambição. Kidman merecia mais, obviamente, merecia o que Demi Moore teve em “The Substance”: uma realizadora que estivesse lá, na sua exposição. Não basta ser uma boa atriz; é preciso ter um aliado(a) do outro lado da câmara.

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Porém, não posso deixar impune um filme que aspira ser progressista e desconstrutivo, mas que, estranhamente, trata a homossexualidade com uma condescendência peculiar, como se esta fosse um espectro de autismo ou algo do género. Ora bem, “Babygirl” é uma ‘coisa’ que não questiona o erotismo, porque não dedica tempo a essa via. Mesmo quando Banderas confronta o amante da sua mulher, as possibilidades de discussão sobre sexualidade, desejo e satisfação, que naturalmente poderiam emergir, não passam de breves notas de rodapé sem qualquer conformidade com um verdadeiro diálogo.

Ou seja, não há diálogo nem tese, o “objeto-perspetiva” é nulo; aliás, o tratamento é pura e simplesmente inexistente. O resultado? Um filme de um corpo em vão …

Como não deixei de ter medo mas passei a gostar de me assustar no cinema

Hugo Gomes, 24.10.23

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The Mask (Chuck Russell, 1994)

The Mask

O ano é 1995 e vou ao cinema com o meu pai e amigos meus ao cinema. É a primeira vez que vejo Jim Carrey no cinema, um ator cuja filmografia seguiria com intensa atenção durante vários anos. Tenho a certeza que nunca o vi antes — embora o Pet Detective (1994) se torne, assim que o vejo, um filme que revejo constantemente — porque não sei que o que me espera é uma comédia. Tenho 9 anos, um casaco tipo canadiana azul clarinho com debruados brancos e vou ao cinema com o meu pais e amigos um pouco sem saber o que me espera porque era isso que fazíamos na altura. Não percebo que é uma comédia inicialmente. Não percebo que é uma comédia até porque quando Stanley Ipkiss coloca pela primeira vez a epónima máscara na cara, eu coloco o capuz da minha canadiana a tapar-me a cara. Imagino que o mais terrível body horror esteja a acontecer perante os meus olhos e resolvo tapá-los (percebi, imediatamente a seguir, que era uma comédia). É uma reacção visceral que me acompanha sempre e é a primeira vez que penso conscientemente que não gosto de me sentir assustada.

 

Scream

O ano é 2001 e vejo o Scream (1996) com o meu pai. Vimos o primeiro mas também os filmes seguintes, completando o que era, na altura, apenas uma trilogia. O meu pai assegura-me que não são assustadores e têm mais de comédia do que de terror. Como já não tenho 9 anos, nem a minha canadiana azul, decido que tenho de ver mais coisas com ar assustador. O facto de Scary Movie (2000) ter estreado no cinema também faz com que comece a perceber o conceito não sei se spoof (Scary Movie), como o conceito mais sofisticado de objecto metatextual. Penso que um filme que junta a comédia ao horror e pisca o olho ao espectador é algo que consigo tolerar muito melhor do que filmes abertamente aterrorizantes. Continuo a não gostar de me assustar no cinema, mas rir-me a seguir a assustar-me é uma mistura potente.

 

The Others

O ano é 2001 e fui ao cinema ver o The Others apenas por um motivo: Nicole Kidman. Estou numa fase em que gosto de tudo o que ela faz. O filme estreia-se no mesmo ano de Moulin Rouge! e nem acredito na sorte que tenho. A meus olhos, tudo o que faz é ouro. Mas The Others é um filme de fantasmas e um filme de terror. De terror psicológico, sem sangue e sem vísceras. Digo a mim própria que esse é o pior tipo de filmes de terror e que não consigo aguentar o suspense e a ansiedade. Começo a evitar filmes de terror menos viscerais e mais conceptuais. Ou de um terror mais implícito.

 

Hostel

O ano é 2005 e fui ver o Hostel ao cinema porque vários amigos queriam ver também. Asseguro toda a gente com quem vou ver que não gosto de filmes de terror e certamente não verei quase nada do filme. Acabo por passar grande parte do filme a vê-lo entre dos dedos (ou a não olhando de todo, empregando a técnica da canadiana já sem a ter). Acabo, contudo, por ser apanhada pela trama do filme, mas sobretudo pela sua extravagância. Hostel é extremamente gory e completamente barroco na sua exuberância de crueldade e vísceras. Isso distancia-me, de certa forma, das coisas que poderiam ser mais assustadoras e a violência torna-se mais cartoons e suportável. Penso que filmes gory e barrocos são mais apelativos por isso mesmo e que, dentro do leque do horror, poderia ser pior.

 

It Follows

O ano é… depois de 2015. Um grupo de amigos tem uma tradição mais ou menos anual de ver um filme assustador no Halloween. Todos os anos tento sugerir, ou que seja aceita a sugestão, de algo mais campy e/ou temático como Hocus Pocus (1993) ou Rocky Horror Picture Show (1975). Neste, como em todos os anos, falho nesta tentativa. It Follows é o feliz contemplado. É visto num torpor de gomas e sono, já bem avançada vai a noite. É assim que começo a ver o filme, que me conquista na sua ideia de filme-de-terror-mas-non-troppo, encantada pelas suas imagens inquietantes, mas sobretudo pela atmosfera paranóica e pela direcção de fotografia onírica. Penso que aguentei o filme melhor que em muitos anos. Talvez já esteja crescida o suficiente para ver filmes de terror.

 

Hereditary

O ano é 2018. Três amigos estão a viver numa única casa com uma sala gigante e a tradição anual de Halloween mantém-se. Desenvolvi uma técnica para ver filmes que já sei que vão ser assustadores de uma maneira visceral ou psicológica que é: ler tudo sobre eles. Leio toda a entrada da Wikipédia sobre Hereditary, para saber os momentos em que devo afastar os olhos do ecrã ou para aguentar os olhos no ecrã já sabendo o que me espera, tentando eliminar o aspecto do suspense ou da surpresa, algo que tende a não me fazer gostar destas experiências cinematográficas. Apesar da minha estratégia, passo metade do filme a utilizar o método-da-canadiana, mas agora a canadiana são os meus dedos. Consigo evitar ver alguns momentos, outros apanham-me totalmente desprevenida e solto um grito de genuíno terror que faz os meus amigos rir. Penso, contudo, que o filme está tão bem feito que as sensações de terror já funcionam de uma maneira se não catártica, pelo menos mais apelativa. Talvez ajude a pensar e analisar filmes e cinema em geral de uma forma mais intelectual — ou não só empírica — e isso faz-me pensar que tenho de abrir ainda mais o meu leque de consumo.

 

Curtas da Boca do Inferno

O ano é 2020. Mais concretamente, estamos em março de 2020. É o primeiro ano em que faço programação de curtas-metragens no IndieLisboa. A última reunião implica o visionamento de uma data de filmes de terror, ou terror-adjacent, para a secção da Boca do Inferno. O convite para integrar esse comité é feito e estou a gostar tanto da experiência que ignoro o meu histórico medo de filmes de terror. Vejo várias curtas, de vários “sabores” diferentes dentro deste género. Do mais cómico ou meta, ao terror mais puro. A lente da programação faz-me analisar estes filmes de maneira mais pensada e faz-me gostar sinceramente de os ver. Foi-se o medo apreensivo, a sensação de ansiedade aterrorizante. Ainda há medo, vontade de afastar os olhos, genuíno afastar de olhos, todas essas reações. Mas já não as vejo como reações más a ter, ou que vão contra o que um aficionado deve experienciar. Agora fazem parte da experiência e a experiência é boa.

 

Pearl  

O ano é 2023 e reparo que o Pearl ainda não estreou em salas portuguesas. Tenho continuado a fazer programação das curtas da Boca do Inferno desde 2020 e este é o primeiro ano em que faço a secção na sua íntegra, ou seja, tanto curtas como longas metragens. Agora, o gosto por estes filmes e por esta secção é enfaticamente positivo. Num ano em que vejo muitos filmes em geral, mas também muitos de terror mais clássico a outras facetas mais genre-bending, o Pearl (2022) e o seu par X (2022) são filmes que procuro pelo buzz que criaram e que vejo totalmente fora do âmbito da programação do festival. Mas depois de os ver penso no âmbito da programação do festival. Reparo que o Pearl ainda não estreou em salas portuguesas. O festival acaba por conseguir passar o Pearl no dia de abertura, e, apesar de ter passado algum tempo depois da sua estreia americana e de ter rebentado pelos recantos mais litigiosos da internet, sinto a sua inclusão na secção como reflexo de um trabalho bem feito. Todos os filmes são filmes que veria por mim própria. Todas orgulhosas escolhas para uma secção querida. Considero-me convertida.

 

*Texto da autoria de Ana Cabral Martins, que acha que o filme Phantom Thread (2017, Paul Thomas Anderson) também é uma comédia. Tem um doutoramento em Media Digitais e já trabalhou no mundo académico estudando a indústria de Hollywood e o cinema no feminino. Fora do mundo académico, já escreveu para publicações nacionais, como o Público ou a Electra, e internacionais, como a Beneficial Shock e Shelf Heroes. Atualmente é programadora no festival internacional IndieLisboa e é crítica de cinema no website À Pala de Walsh. Sigam-na no Twitter.

Eis "Aquaman", para voltar a acreditar no lado “camp” do super-herói

Hugo Gomes, 12.12.18

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"Permission to come aboard."

Longe dos fundamentalismos (ou “fanatismos”) por trás dos universos partilhados MCU (Marvel/Disney) e DCEU (DC Extended Universe), venho defender uma “impopular” perspetiva. A nível formal as apostas da Warner Bros. ostentam uma certa personalidade individual que entram em conformidade com o respetivo “maestro” do projeto, enquanto a Marvel / Disney (com exceção das incursões de James Gunn e Taika Waititi), preservam uma coerência visual e narrativa em nome do seu franchise, quase requisitando uma linguagem no contexto do seriado. A junção DC / Warner opera através de filmes desengonçados na sua natureza de partilha de um ecossistema, respeitando sobretudo o estilo ou os elementos característicos do seu realizador.

Evidentemente, e usando como exemplo os tiques estéticos que traçavam uma narrativa sobretudo visual de Zack Snyder em Batman V Superman: Dawn of Justice”, as tentativas de um neo-noir pós-Training Day de David Ayer em “Suicide Squad” e a sensibilidade da construção de personagens femininas em “Wonder Woman” (é importante sublinhar o “tenta-se”), nenhum destes capítulos se interligam da maneira mais orgânica. Portanto, não cedendo em miopias de quem faz melhor ou pior, é certo que neste “Aquaman” assistimos novamente a essa corrente da “tentativa” autoral, desta feita com James Wan a ganhar o gosto pela grande produção, a trabalhar sobretudo os espaços como tem feito com algum sucesso em recentes e inauguradas sagas como “The Conjuring” e “Insidious”. Essa relação é sobretudo adaptada para com a natureza deste filme que segue o ressurgimento de Arthur Curry como Aquaman, herói da DC que tem sido anos a fio envolvido num certo tom anedótico.

James Wan não tem a visão milimétrica com que engenha os jumpscares dos seus habituais “palcos dos horrores”. Pegando como exemplo a primeira sequência de ação, onde Nicole Kidman luta contra um punhado de guardas atlantes dentro de um farol (importante referir o reduzido espaço cénico), a câmara em ponto semi-zenit mapeia todo o campo, medindo a sua dimensão ao mesmo tempo que incide como um olhar atento à decorrente ação. A partir daqui, surge, ponto a ponto, esse cuidado cénico e a cumplicidade desta para com o movimento das suas personagens (a destacar uma materialização CGI do tão mítico poster de “Jaws / Tubarão”, auferindo ao espectador uma visão unidimensional da própria ação). Em palavras mais precisas, "Aquaman" joga com pequenas pitadas de dinamismo técnico-narrativo, as imagens-ação em voga com as imagens-tempo (citando Deleuze), tudo em função de uma invisível arquitetura de arcos narrativos.

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Por outro lado, esta nova aventura da DC experimenta, a nível tecnológico, novas realidades e possibilidades na criação de mundos artificiais. Em jeito de “Avatar” de Cameron (para referir essa perfeição nos mandamentos de George Lucas – as mil e uma possibilidades graças à “autenticidade” do CGI), o filme de James Wan ousa em corporalizar uma Atlântica submersa, como toda uma ação / conflito decorrido debaixo de água (ou até os diálogos envolvidos num certo eco adquirem essa (in)coerência possível).

É verdade que depois desta proposta seguimos um brindar da tecnologia e do visual colorido em modo de um espetáculo circense, mas convém referir que para o bem ou para o mal, “Aquaman” é um filme antiquado (e não menciono das pequenas essências shakespearianas), exibindo virilidade (o facto de termos Dolph Lundgren por estas águas, aprofunda ainda mais essa sensação) e um espírito aventuroso que o afasta das demais incursões do subgénero. Esta sua atitude leva-o a uma tendência auto-jocosa e é possível imaginar que se este mesmo filme fosse reproduzido na década de 80 ou 90, seria protagonizado por um Arnold Schwarzenegger ou Sylvester Stallone.

Contudo, sem fazer muito pelo cinema de super-heróis ou ser uma ode do blockbuster americano, Aquaman apura-se como um entretenimento de certo aprumo, aptidão e de constante busca por uma identidade (sabendo nós, que tenta prevalecer e definir o franchise construído por pesados, mas poucos passos). Pelo menos existe um espírito mais “Star Wars” que as últimas variações da saga.

Erradicando o ‘rapaz’ em nós

Hugo Gomes, 07.12.18

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O segundo passo do ator Joel Edgerton na realização faz-se por um filme-denúncia. Remexe nas memórias do escritor Garrard Conley, filho de um pastor Baptista, que após revelar a sua homossexualidade é enviado para uma instituição de forma a “curar-se”.

Boy Erased” apresenta-nos Lucas Hedge (“Manchester By the Sea”, “Lady Bird”) no papel de Conley, que se assumirá como um guia para um protótipo destas casas de conversão gay, sempre pontuado de doutrinas religiosas e alusões a cantos infernais e movimentos pecaminosos. Todo este processo tende em soar como irmão bastardo entre os Alcoólicos Anónimos e um estabelecimento militarizado (aqui até mesmo a posição é sinônimo de virilidade). Este Hedge / Conley evoca-se como um “insider” pronto a esboçar esta realidade ainda existente em terras yankees, fundando assim um encenado documento para com esta desinformação. É como se um artigo da New Yorker tratasse, minado de reflexão e tendências jornalísticas, originando um filme sobretudo esquemático e descritivo onde as personagens não são mais do que meras representações (curiosamente, um dos “utentes” é Xavier Dolan).

Nesse termo, “Boy Erased” justifica a sua visualização para fins de conhecimento e conscientização, o que prova acima da tentativa de Edgerton prevalecer como um realizador de R maiusculo. Endereçado por uma planificação sobretudo académica onde não faltam os graduais fade in e fade outs como mandam as leis emocionais de Spielberg, o realizador parece não ter controlo numa miopia castradora para com as eventuais direções do filme, fechando, ou melhor, enclausurando com uma falsa luz messiânica do que é Cinema.

Todo este processo depara-se com as similaridades do modus operandis destas mesmas “casas”, uma manipulação mental e sentimental que a homossexualidade é anti-natura, assim como Edgerton julga o além-academismo numa anormalidade. Fora do cenário protagonista desta história, o filme tende em solidificar a sua dramatização com momentos pai-filho ou em spotlights repentinos de Nicole Kidman (no mesmo registo de “Lion”, ou seja, uma secundária dependente do seu destacado monólogo), tudo sob a melodia do arrasa-corações.

No final, percebemos duas coisas. Uma é que Joel Edgerton não tem “visão” para realizador (ao contrário de um Bradley Cooper que surpreende em renunciar essa linguagem de “bom americano de estúdio”). Segundo, Lucas Hedge tem a força, mas não a suficiente para realçar este telefilme disfarçado de Cinema.

As Amazonas do Sul

Hugo Gomes, 30.05.17

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O que realmente falta a este novo cinema americano, é a sua destreza na provocação, é a escapatória dos moldes implantados pela indústria, mesmo que, no caso de Sofia Coppola, ela represente uma espécie de outsider do badalado cinema mercantil. “The Beguiled” é a quinta longa-metragem da filha do lendário realizador de “The Godfather” e “Apocalypse Now”, uma aventurosa que tem vindo a emancipar-se da sombra do seu pai e desta forma difundir a sua voz no legado cinematográfico de Hollywood.

A conquista desta feita é um filme de 1971 de Don Siegel, protagonizado por Clint Eastwood, decorrida numa América mergulhada na sua Guerra Civil, onde um soldado da união, ferido, é acolhido e tratado por uma jovem rapariga sulista numa escola feminina. A referida obra espelhava uma guerra que se travava a metros do cenário da ação, uma casa onde se debatia dois lados ideológicos, assim como dois géneros em plena dominância. Contudo, bem verdade, que a versão de 1971 adquiria um rígido tom masculino, um filme sobre uma violência invisível que nos levaria, a certo ponto, à demonização da própria mulher. É aí que Sofia Coppola tem as armas perfeitas para expor a sua visão enquanto mulher.

Notavelmente verificamos essa perspectiva por uma câmara focada nesta comunidade de “amazonas”, mulheres restringidas ao seu refúgio enquanto homens combatem as suas politicas. Averiguamos que o sexo masculino, por mais diferente seja a farda, continua, no seu fundo, como um ser de ambições dominantes, um verdadeiro elemento alfa em construção. Os dois filmes dialogam um com o outro nesse sentido. Porém, a versão de Coppola sai a perder num determinado ponto, é demasiado anorética.

Uma hora e meia é pura velocidade, o espectador nunca consegue ter a noção de espaço nem de tempo do filme, nunca chegamos a conhecer verdadeiramente estas personagens (e aqui não se trata de mistério, é mesmo falta de ligação) e nota-se, verdadeiramente, um senso cosido do politicamente correto. É um filme inofensivo que se quer fazer grande, mas que esquece do ainda mais óbvio, de emanar a sua própria ideologia, a capacidade de estabelecer um clima de conflito, quer interior, quer exterior. Sofia Coppola torna-se incapaz de tal coisa e o mesmo se aplica à sua relação com a violência. Os actos cometidos poderiam ter o mesmo conteúdo que uma banal conversa de café, não se vive, não se sente, não se respira, é pura automatização (ainda há quem acuse de Tarantino ter tornado tal num gesto confundível a quotidianos).

Contudo, Coppola significa estética, a fotografia trabalhada e agradavelmente primitiva, a luz das velas que aquecem a mais densa escuridão (“The Beguiled” encontra-se no mesmo território que um “Barry Lyndon”), os bosques que não são mais que fronteiras para uma Guerra a acontecer longe, os canhões ouvem-se constantemente. Nesse sentido, entramos noutro atributo de “The Beguiled”, o som. O eco que intrusa nos diálogos das personagens, assim como os passos ocasionais que nos atribuem um plano sugestivo de espaço sonoro (pena que ela não consolide isso com a narrativa).

The Beguiled" é isso mesmo, uma produção construída sob adereços, sob cores e ruídos, mas o vazio acaba por reinar nesta guerra entre sexos. É pena, porque o filme de ’71 precisava do seu sexo oposto, com igual capacidade para transgredir. Longe do memorável.

Lanthimos, o caçador furtivo sem clemencia

Hugo Gomes, 22.05.17

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Yorgos Lanthimos incomoda, tira-nos o chão das nossas morais, desafia o politicamente correto e sob o jeito meticuloso e calculista conduz o espectador numa viagem para o além sentido. “The Killing of the Sacred Deer” é um filme frio, na sua teoria, onde as personagens, como é hábito na sua filmografia, comportam-se de forma mecanizada, operadas por um texto que não lhes condiz e movimentando planejadamente cada gesto.

Mas ao contrário do anterior “The Lobster”, a nova aventura de Lanthimos adquire um surpreendente sentimento de frivolidade colmatada, as personagens tentam gradualmente sair dos seus velcros, sonham alcançar a humanidade não reconhecida dos seus “bonecos”, até porque o realizador opera como um psicopata, psicologicamente falando, conhecendo as barreiras das éticas ocidentais e mesmo assim transpondo-as de livre vontade. Verdade seja dita, “The Killing of the Sacred Deer” não está longe do território do cinema de terror, muita vezes desafiante nessas questões morais, mas não estamos a referir um filme de terror, estamos a falar de uma estranha distopia de Lanthimos – não outra sociedade alternativa, e sim, a nossa realidade onde um elemento “alienígena”, algo impróprio, parece criar as suas raízes.

Tudo começa com um cardiologista (Colin Farrell), de família feita (esposa e dois filhos), que visita constantemente o filho de um falecido paciente, provavelmente culpado pela sua morte. O rapaz (Barry Keoghan) apresenta traumas psicológicos, o espectador fica na dúvida quanto a esses mesmos tormentos, até porque os maneirismos anormais confundem-se com a “normalidade” a lá Lanthimos (e do sempre colaborador argumentista Efthymios Filippou). Contudo, chega o momento em que percebemos que estes ciclos pretendidos corrompem-se quando o cardiologista é ameaçado por uma escolha. A escolha que o fará redefinir novamente como humano sentimental, ou talvez expondo a sua frieza no seu estado mais puro e esterilizado. Sim, essa escolha, essa difícil escolha requer a morte de um ente querido, e apenas ele terá que anunciar a sua mesma morte.

Lanthimos continua com o seu estilo obcecado pela estética, quase kubrickiana. Esta, limpa e mecanizada, uma banda sonora esquizofrênica (entre o rompante e minimalista, a condizer com o espírito do filme), personagens atípicas e aparentemente sem sopro de vidas, reféns da sua sociedade. A inovação de “Killing of the Sacred Deer” advém desse gradual rompimento com as suas próprias regras, conservando ainda o seu modo de provocar de maneira subtil, mas enganosamente explosiva o público. A vingança confrontada sob outra perspetiva e uma atormentada Nicole Kidman são os tiros certeiros para a morte deste “veado sagrado”.

Em Terra Estranha, a areia vermelha é sinónimo de loucura

Hugo Gomes, 09.08.15

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Nicole Kidman regressa ao seu país de origem – a Austrália – longe dos cenários plastificados da homónima aventura de Baz Luhrmann, mas próximo do território desconhecido e repleto de misticismo quase aborígene, o qual este “Strangerland” (“Em Terra Estranha”) nos apresenta desde o primeiro instante. A primeira longa-metragem de ficção de Kim Farrant ostenta uma atmosfera misteriosa constantemente alimentada pelas características paisagens “aussies” filmadas com o auxílio de drones e de uma sonoplastia envolvente que nos levam ao encontro dos mesmos feitos de David Lynch na década de 90 – o enigmático envolvido em concordância com a sonoridade.

No centro deste retrato enfeitiçado do deserto vermelho e das terras que albergam lendas em que as serpentes são autoras do mundo que tão bem conhecemos, deparamo-nos com a história de um disfuncional casal que atravessa o maior obstáculo da sua respectiva relação no preciso momento em que os seus dois filhos desaparecem sem deixar qualquer rasto. Nicole Kidman é a “dona de casa desesperada”, perturbada por um perfil psicológico que nos é dado gradualmente no desenrolar da intriga, e o seu marido, Joseph Fiennes, é um homem negligente que acaba por ser consumido pelo arrependimento.

Como “intruso” desta relação em plena queda, Hugo Weaving desempenha um agente dedicado em encontrar os tais desaparecidos, ao mesmo tempo entranhado num autêntico turbilhão de emoções despoletadas pela personagem de Kidman. Neste filme temos ao nosso dispor um trio inconformado de atores todos eles dando, à sua maneira, frágeis e traumatizadas personagens que atingem os seus picos de loucura quando menos esperamos. E é nestes momentos que reencontramos o “fenómeno”, uma Nicole Kidman resgatada da sua carreira decrescente e agora sujeitada a um longo transe, em acordo com a narrativa incutida pela fita.

Para além disso, o “território estranho” que o título sugere está muito longe da imagem cénica apresentada, e sim dos lugares desconhecidos e inexplorados que a intriga caminha sob uma forma conturbada, sem nunca envolver-se em explicações de última hora, nem suspeitos em mente. Nada aqui é o que parece, e o óbvio não tem lugar na incondicionalidade deste thriller intimista. No geral, “Em Terra Estranha” é um filme de atores induzidos por uma futura cineasta, cruel para com o seu leque de personagens. Uma obra hipnótica, desconcertante e, à sua maneira, experimental. O enigma da Austrália e os efeitos do seu passado ancestral em cumplicidade com a psicologia das suas personagens.