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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Simão Cayatte: "o meu trabalho enquanto realizador é muito privado"

Hugo Gomes, 31.05.23

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Joana Santos e Rúben Simões em "Vadio" (Simão Cayatte, 2022)

“Vadio” foi uma das estreias nacionais deste ano, marcando a transgressão de Simão Cayatte, do reino das curtas, para a sua primeira longa-metragem. Uma ficção de longa gestação sobre um país em período de seca extrema, e não somente em condições climatéricas, como também em termos político-sociais. Num Alentejano austero, um adolescente (Rúben Simões) une esforços com uma mulher misteriosa e ferida (Joana Santos) para encontrar o paradeiro do seu pai, que o abandonou e que mesmo assim hipótese negada pelo jovem. Um “400 Golpesà portuguesa, sem novas vagas e Balzacs, onde o desamparo das suas personagens concentram a inevitável fonte dramática deste filme. 

Conversei com Simão Cayatte sobre o projeto, expandido pelo seu trabalho enquanto argumentista, ator e ainda produtor, um dos responsáveis pelo resgate do “realizador malditoRichard Stanley.  

Deixa-me iniciar com uma espécie de fact-checking, o argumento deste filme teve aprovação em 2016, certo?

Teve apoio do ICA em 2016 e depois o luso-francês, se não me engano, que complementou a montagem financeira em 2018.

… e em 2019 terminou …

Exato, só em 2019 pude filmar.

E depois deste hiato, o filme estreia em 2023, e mesmo assim, o seu pano de fundo mantém-se presente nos nossos dias, refiro à questão das secas, que ainda hoje abalam o nosso país e pelos vistos não há maneira de abrandar.  A sua sociopolítica é também ela representativa dos dias de hoje, mesmo que, tal como deixa subtilmente saliente numa televisão ligada algures na ação - a voz de Pedro Passos Coelho - dando a entender o seu período. “Vadio” decorre nos tempos da Troika? 

É, o filme passa em 2012, durante a crise. Essa é a única referência contextual até porque não queria sinalizações muito concretas a nível de datas ou assim, mas é engraçado falar sobre a questão da seca porque as pessoas têm se focado bastante nas personagens, o que é natural, mas por trás há uma falta de água, que é aquilo que abre o filme, uma seca profunda, que é um tema, infelizmente, cada vez mais atual.

E não é meramente uma seca física.

Não, não. É também a da proveniente da alma.

E temos aqui duas personagens marcadas, cada uma, por uma ausência, e não é só o que têm em comum, ambas estão em constante fase de negação para com esse vazio. Ele, André, o pai o abandonou e ela, Sandra, está em negação pela questão da filha, ou seja negando o seu negligente, assim sendo. Até que ponto esta improvável aliança não é uma forma de preencher os seus respectivos vazios. 

É verdade. Não sabemos até ao final do filme se o pai o abandonou realmente. Como também nunca saberemos se foi um ato de negligência ou não. Temos a versão da mãe da Sandra e temos claramente uma pessoa que errou. E pode eventualmente ter sido negligente, mas que ao mesmo tempo onde se coloca a questão, vale a pena a crucificação pública que ela sofre? Vale a pena ser despedida do seu estabelecimento? Vale a pena a guarda da filha ser retirada pela própria mãe? Portanto, são estas as questões para mim mais importantes em relação ao que diz respeito à personagem da Sandra. Mas sim, são um pouco a boia de salvação um do outro. Nem que seja num nível mais simétrico. Ele procura um pai. Na realidade, acho que ele procura realmente uma mãe. E é isso que o André procura na Sandra. E é impossível, não é? Porque são pessoas que pertencem a mundos muito diferentes. Ela não sabe dar e ele não sabe receber. Portanto, eles estão o filme inteiro, no fundo, à luta. 

Deixemos de parte essa disputa pugilista, que os protagonistas de “Vadio” defrontam até que finalmente conciliam, gostaria que me falasse sobre os desafios deste avanço na primeira longa-metragem, visto que trabalhou várias vezes em Curtas. Aliás, refere-se usualmente que você foi a pessoa que descobriu a atriz Alba Baptista [“Miami”, 2014].

Sim, é o que dizem por aí! [risos]

Sobre os desafios que teve ao avançar numa longa metragem?

Passar para uma longa, em primeiro lugar, é a questão de sprint versus maratona. Uma curta acaba-se em seis dias, ou sete, na pior das hipóteses, e aqui [“Vadio”, longa-metragem] estamos a falar de seis semanas ou mais. Neste caso filmei durante seis semanas, com seis dias de rodagem e um dia de descanso. E num contexto bastante violento a nível de calor e de... E pronto, e estar longe de casa e essas ‘coisas’ todas. Agora, com preparação, tudo se faz. Estive rodeado de uma equipa enorme e de grande talento. Nádia Henriques na arte [direção artística], Olivier Blanc no som, o Bartosz Swiniarski na fotografia, Lucha d'Orey no guarda roupa, a Olga José na maquiagem, Angela Sequeira [assistente de direção], Teresa Font [edição], e por aí fora. Não é um trabalho que se faz sozinho, e sim em equipa, obviamente coordenado, mas senti-me mais que tudo preparado.

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Simão Cayatte

E visto que foi … quer dizer, neste caso, ninguém o deixa de ser … um ator e que trabalhou com cineastas como o Werner Schroeter, no "Esta Noite" [“Nuit de chien”], ou com o Ivo Ferreira no "Cartas da Guerra", belíssimo filme aliás. De certa forma, adquiriu com essa experiência, ferramentas que foram possíveis para este filme?

Cada vez que estou em platô aprendo sobre o que é que é representar. Quanto às ferramentas, não tanto. Acho que cada realizador tem o seu método. Talvez inconscientemente vá bebendo coisas, mas o meu trabalho enquanto realizador é muito privado. Agora, no meu trabalho como ator, acho que vou crescendo e ajustando. Ainda este ano, atuei logo a seguir nas escrita, o qual foi muito interessante esse saltitar de uma coisa para a outra. Aconteceu com a "A Sibila", realizado pelo Eduardo Brito, que penso que estreará este ano. E o que acontece é que cada vez que trabalho como ator sinto que fico a compreender um bocadinho melhor os atores e isso permite também conseguir falar com eles de igual para igual. Sinto que nunca é real. Não é realmente de igual para igual, mas pelo menos … esforço para tal. 

Uma pergunta assim, distante do filme. Trabalhou como “script doctor” na produtora do Darren Aronofsky …

Não trabalhei como “script doctor", e sim como “script reader”. Na altura era jovem demais para ser “script doctor”. Hoje em dia já faço esses trabalhos.

Alguém colocou na sua biografia que trabalhou como “doctor”, mas já agora que é um “reader”?

Na indústria americana o que acontece é que as várias produtoras de cinema contratam, normalmente jovens que estão a começar, mas que tenham experiência de argumento ou que tenham estudado na universidade de argumento, ou assim, contratam para serem readers, ou seja, as produtoras têm sempre muitos guiões a entrar lhes pela caixa de correio, de coisas que podem vir a produzir. E o Aronofsky, para além de fazer os seus filmes, também produz. Produziu, inclusive, o “Jackie” e outros filmes. E chegavam guiões todos os dias. E cabe a alguém ler esses guiões e, no fundo, recomendá-los ou não. Então, até havia alguma responsabilidade. Eu lembro de ler uma versão muito precoce, de 2011, do “The Revenant”, por exemplo, era um guião ainda muito diferente, mas que foi parar ali à Protozoa [produtora de Aronofsky]. E então foi um trabalho super útil porque ler 5 a 6 guiões ou mais, talvez 10 guiões por semana, assim, durante um ano, é um treino daqueles.

O “script reader”, é o que recomenda, e o “doctor” é aquele que, mais ou menos, encaixa as "pecinhas" que estão fora?

É curioso fazeres essa pergunta porque de facto cá ainda há pouco. Tenho executado, sobretudo, lá fora, e vou agora fazer cá com uma produtora nacional e não está longe da função que tenho muitas vezes também enquanto tutor. Eu dou aulas de guião para o Le Groupe Ouest que estão ligados ao Less Is More, mas um “script doctor” é, no fundo, um consultor. É muito comum nos EUA. Pode acontecer numa fase inicial de tratamento, como pode acontecer quando o guião já tem uma ou duas versões, mas é alguém que é contratado para dar uma olhada de fora e fazer uma análise do guião e, em muitos casos, sugerir alterações.

Muito bem, para não desviar mais, a questão é que tem experiência com o guião e a força do guião, e neste mundo, ou melhor, a realidade portuguesa, deparamos com o improviso e a liberdade criativa dos atores quanto aos seus desempenhos. Visto pertencer a um território oposto, e ao mesmo tempo trabalhar como ator e, neste caso, como realizador, como consolida esses dois mundos na direção dos seus atores?

São dois lados da mesma moeda. O ator e o argumentista estão interligados porque ambos trabalham com ações, com verbos e um bom argumentista sabe que um ator tem que tornar aquelas palavras suas principalmente. Não me preocupo com o puritanismo de que cada palavra deve ser dita e daquela e determinada maneira. E um ator precisa de um bom texto dramático. E outras pequenas ‘coisas’, por exemplo, acredito que um argumentista deve ler aquilo que escreveu em voz alta. Por vezes há a tendência de escrever, escrever, e só no confronto com os atores é que se apercebe o que escreveu. Eu como também sou ator tenho por âmbito ler alto o que escrevo, porque no fundo um guião é um guia, são palavras escritas num papel para depois transformarem-se, sair da boca de um ator como algo orgânico. E é isso, custe que custar, as palavras devem ser orgânicas e verdadeiras. Ponto final. 

Existem muitos realizadores cujo argumento é sagrado, não há volta a dar. Porém, e tendo em conta a conversa que tenho com outros realizadores, principalmente na área de cinema, é que o argumento é desvalorizado, muitíssimo maleável ou até mesmo descartável na sua integral natureza. 

O que acontece é que tens muitos realizadores que escrevem os seus próprios filmes, mas julgo que a situação da classe dos argumentistas está a mudar em Portugal, resultado da grande procura para as séries de televisão ou das plataformas de streaming

Algo que encontrei em “Vadio”, principalmente no protagonista, André, é possui o espírito de um “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut, uma espécie de Antoine sem Balzac.

Não foi uma influência direta, mas fico lisonjeado com a invocação. Eu conto a história de um vadio, e em certa maneira, os “400 Golpes” é a história de um “pequeno vadio”. Essa falta de um herói, essa solidão, esse abandono, encontra-se muito presente em ambos os filmes, penso que por aí que começa e acaba a comparação entre este pequeno filme e o génio do Truffaut.

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Color Out of Space (Richard Stanley, 2019)

Novos projetos?

Já estou a trabalhar numa próxima longa, ainda estamos na fase de escrita, irei começar a filmar neste verão, será para televisão … de momento não posso dar mais pormenores.

Tenho uma curiosidade sedenta que preciso que você me sacie [risos], visto que co-produziu o “Color Out of Space” de Richard Stanley, como foi trabalhar com o …

Nicolas Cage? [risos]

Não, não, mesmo com o Stanley? Eu vi aquele documentário sobre o “acidente” da “A Ilha do Dr. Moreau” [“Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley 's Island of Dr. Moreau”] e fiquei curioso.

Com o Stanley foi inacreditável! [risos].

Portanto, o meu trabalho na produtora SpectreVision foi sobretudo a escolha do país. Recebi um telefonema da Elisa Lleras, que produziu uma das minhas primeiras curtas [“A Viagem”], a perguntar-me se este projeto seria exequível ser rodado em Portugal [em Sintra]. Respondi “obviamente que sim”, expressando vontade imensa em trazer este filme para o nosso país … o resto, logo se via. Depois fiquei encarregue da formação da equipa, e estava tudo a correr bem com uma só excepção - o realizador não chegava!

Nesse momento, o Richard Stanley estava a viver no meio dos Pirenéus, numa pequena vila onde há a maior confluência de teorias da conspiração do Mundo [risos]. Estamos a falar de panóplia que vai desde OVNIs a Templários [risos]. Mas a verdade é que ele não chegava, nem por nada, então literalmente tivemos que o ir buscar. Fomos de carro, eu e o Josh Waller, o outro produtor, e subimos os Pirenéus pela noite dentro, sem saber o que encontrar ou se o iríamos encontrar. E assim deparamos com ele naquele sítio, do qual não recordo do nome. Possivelmente estava com “cold feet”, como dizem os ingleses, ou seja medo visto que não filmava há muito tempo, mas de resto foi um verdadeiro “gentleman”, impecável, com uma visão abrangente. 

Foi uma questão de ajudá-lo a adaptar-se em Lisboa, e encontrar um “match” certo para o storyboard, o qual percebi que não era um storyboard convencional e sim algo mais próximo dos comics. A minha função foi mais ou menos essa, pegar em alguém para ajudar a trazer todo aquele imaginário em imagens. 

E o Nicolas Cage? Como integrou o projeto? Caiu de “páraquedas”?

O Nicolas Cage havia trabalhado no “Mandy” do Panos Cosmatos, também produzido pela SpectreVision, o qual traduziu numa espécie de renascimento seu, pelo menos naquele género de filmes, estreou em Cannes e foi uma “bomba”. Cage sempre expressou vontade em voltar trabalhar com a produtora, pelo que esta tinha o filme do Richard Stanley na gaveta, e o ator prosseguiu até porque queria trabalhar com o realizador, o qual tinha grande admiração e sentia que fora um autor atropelado pelos infortúnios e negado à carreira que bem merecia. Portanto, juntou-se estas duas forças e assim aconteceu … 

Cavalgar com Deus no Faroeste perdido

Hugo Gomes, 09.01.23

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Um assassino a soldos do Velho Oeste depara-se com o golpe perfeito para uma "reforma antecipada". Vinte anos depois, com uma casa na pradaria e uma família próspera, “colhe” os “frutos” desse mesmo episódio, resultante da brutal morte da sua esposa por um bando de bandidos errantes. A notícia foi lhe transmitida pelo marshall, conhecido deste ex-pistoleiro sem lei de outras andanças, que após constatar uma raiva inerente nos olhos deste o aconselha a desistir de qualquer plano de vingança - até pelo bem da sua filha, criança incapaz de chorar pela trágica morte da sua própria mãe.

Nessa mesma noite de luto e angústia, o anterior homem de família, agora incorporado no sanguinário frio que o seu nome aspirava em tempos aureos do faroeste, encontrar-se determinado em engendrar o seu plano de vingança, mas para isso, segundo ele - teria que livrar (leia-se matar) a filha, o único resquicio da sua confortavel vida dos últimos 20 anos. Tal como Abraão prestes a sacrificar o seu herdeiro - Isaac - enquanto oferenda a Deus (ato bíblico hoje refletido e discutido como um sinal de radicalismo religioso), este “cowboy” pactua com forças divinas para atingir a sua instantânea sede. 

Como é óbvio, nada acontece, este hesita, mas o impulso de ter apontado a arma a uma criança, revela-nos uma oscilante transição de personas neste nosso anti-herói, um reflexo ao estado atual do western, o mais americanos dos géneros americanos, hoje, ruminando por desconstruções e exercícios de estilo. Contudo, e possivelmente motivado pelo título “The Old Way” [velhos hábitos ou velhos costumes, literalmente], a longa-metragem de Brett Donowho aponta no sentido do faroeste de adereço, e não na mudança ou revisão, antes, a sua invocação. A transição temporária do seu pistoleiro, um sui generis Nicolas Cage (por vezes emprestando-se a encarnações à lá James Stewart), dispara cegamente no que requer a inovar o seu género, ao invés disso, despe-se das suas vestes transgressivas para aproximar-se do cânones do seu território, acordando com a sua moral e tecendo a enésima “jornada do herói” (sim, sabendo que este “herói” está, e muito, sujo). 

Este é um western pavoneante de uma lista de encargos aos mais variados clichés da sua “praia” (e não só, sendo por veze confundido como um “John Wick” do Oeste, mas isso são outros “chavões”), só que carecendo de esteticidade classicista. Provavelmente, pelo género ter sido ditado pelos inúmeros e declarados óbitos, e a juntar a isso, a mais parca vontade de se “banhar” em planos gerais, contemplando o selvagem e as possibilidades de “campo aberto” na tela. Contudo, mesmo “enfiado” como produto B, o filme pontua com ambição e seriedade em querer ser mais que um na segunda divisão. Há notas e detalhes a merecer ser exaltados, mais do que reduzi-lo ao binarismo do “bom” ou “mau” que muita crítica estabeleceu como garantido, ou, cingir-se ao “luxo vendido por majors”

The Old Way” pode não ser bem-sucedido no seu regresso ao western puro, até porque este género virou rafeiro, um “vira-lata”, que mesmo assim incorre ao afago e não ao inevitável abandono. Pelo menos tentou “sacrificar o seu rebento” em prol desse amor. Contudo o Anjo de Deus apareceu, e como aconteceu a Abraão, o impediu de concluir o seu ato de devoção. “Não estendas a tua mão sobre o moço e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus e não me negaste o teu filho, o teu único.

Nicolas Cage, o homem "escroto" na febre de Sion Sono

Hugo Gomes, 18.02.22

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É possível encontrar um filme tresloucado no meio do caos acidental de “Prisoners of Ghostland”, uma espécie de "sukiyaki" (prato nipónico em que  as pessoas se servem a si mesmas à medida que os ingredientes são cozinhados) com Nicolas Cage como cabeça de cartaz, prometendo a loucura e o devaneio no meio de uma salganhada visual. É curioso este cruzamento entre um Japão feudal com o Oeste americano mais o imaginário pós-apocalípticos, um cenário de colocar o espectador “às aranhas” num enredo em constante perturbação neurológica.

Para objetos estranhos e com o seu quê de excentricidade, Sion Sono não é nenhum estranho, há que espreitar os seus “Why Don’t you Play in Hell?” (2013) ou “Tokyo Tribe” (2014) para entender o quanto de desvairado este universo pode ser, e mesmo assim, segundo o próprio conterrâneo, contemporâneo e amigo de longa data, Takashi Miike, é um dos únicos a cometer "cinema japonês adulto” nesta atualidade. Não vamos refletir profundamente nessas declarações, mas deve-se entender que estamos a vivenciar tempos em que uma Marvel Studios reina “box-offices” com tamanha naturalidade e impondo com isso uma certa seriedade narrativa e forçada e inabalável continuidade como modelo de sucesso industrial. Com isso, a violência inconsequente (aqui com alguns limites, deve-se salientar tendo em conta o seu autor) em contexto de inserções camp ou meramente “sillies” parece ter transladado para outras faixas etárias, para gerações em que este escapismo ainda faz algum sentido no seu menu de “entretenimento”.

Prisoners of Ghostland” é na sua melhor forma um filme à imagem do espírito livre e multifacetado do realizador, isto, se fosse realmente um projeto à sua altura. Sabe-se que Sion Sono sofreu de um ataque cardiovascular ainda antes da rodagem, atrasando-a por um ano, o que fez com que Nicolas Cage sugerisse mover a produção para o Japão de forma a que o realizador evitasse deslocações cansativas. Mesmo em terras do Sol Nascente, um realizador debilitado mais os “habituais” controlos criativos que Hollywood (e seus derivados) tem sobre autores importados resultaram aquilo está à vista de todos, um filme espectral que paira no térreo, um claro apoio incondicional na estética que resiste a um argumento escavacado e intrinsecamente esquizofrénico (entre “Mad Max” a “Escape from New York” passando por “The Hills Have Eyes”, a ‘coisa’ torna-se por vezes inarrável e indescritível).

No centro desta barafunda sem estribeiras, existe Nicolas Cage, como o sempre excêntrico ator que imprime a sua, ainda estudada, personalidade nos filmes que se alista. Um misto de aquétipo de arcaico "action man" (homens de poucas palavras e de virilidade em valores máximos, mesmo quando perde um testículo) com uma caricatura do mesmo, uma personagem que tão bem poderia sair de um imaginário pueril e juvenil. Nicolas Cage show para alguns, um Sion Sono light para outros (sabendo que para quem é adepto do seu cinema, a dieta não é solução).

"Mandy": a violência tem a sua razão de existência

Hugo Gomes, 06.09.18

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Nicolas Cage enfurece, enlouquece, delira e, à sua maneira, excita. O ator de pedigree que tem vindo a tornar-se numa autêntica anedota em solo cinematográfico (salvo algumas exceções) é a chama olímpica de um trabalho sonoro-visual de autoconsumo, não deixando qualquer saída ao espectador.

Mandy”, sob os rasgos da ultraviolência dos splatters e dos revenge porns da década de ’70 (com promessas de vintage à la 80), é um fruto do seu acaso sucesso, um aluno aplicado das suas romarias induzido numa rebeldia de atração. É um exercício prolongado, quer da violência estetizada, quer a liquidez de um videoclipe “prog rock“, quer no visual fluorescente que contamina um rol de planos em constante transposição e na simetria idealizada. Por outras palavras, “Mandy” é um quadro emoldurado que ganha portento numa projeção em grande ecrã, mas essa mesma beleza intoxicante esconde um vácuo pleno no seu discurso.

O que vemos depois da violência? Enquanto Rob Zombie através de uma mão cheia de filmes pagãos e hereges (cada um à sua maneira) reforçava esse show bizarro de gore visto e revisto, confrontando o espectador ao mediatismo dessa mesmo instinto animalesco, tão presente quer no passado ou nos nossos dias (nesse aspecto, filmes como “Lords of Salem” e “31” dispuseram desse feito), Panos Cosmatos é simplesmente indulgente na sua visão. Parece hipocrisia referir inconsequência em ensaios de horrores e sangue a rolos entre “Mandy” e Zombie, mas até mesmo na violência gratuita encontramos respostas aos seus ideais.

O terror foi feito para ser mais do que um paupérrimo selo de venda, é transcendência de uma arte ou de uma mensagem, a metáfora ao exercício de estilo. No caso de “Mandy”, a saturação do seu “eu” leva-nos a um narcisismo autodestrutivo. Aliás, isso mesmo, um filme em contagem decrescente para a sua morte súbita. Poderia ser isso, porém, Cage aguenta a pedalada, carregando às costas este primo menor de Refn (sem a sua dita espessura de psicanálise), que à imagem ... peço desculpa … ao som da sua banda sonora (da autoria de Jóhann Jóhannsson) converte-se em somente música ambiente. A esta altura do campeonato precisamos mais do que enfeites.