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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O cinéfilo e a solarenga tertúlia da desilusão

Hugo Gomes, 15.12.16

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Qualquer cinéfilo que se preze é incapaz de se conformar com as descrições de “arte menor”, ou “não arte”, assim como “mero entretenimento de feira”, o qual são dirigidas ao Cinema em geral. O verdadeiro cinéfilo nega, com todas as suas forças, a franqueza e simplicidade face em comparação com as outras artes. O cinéfilo é impuro, por vezes limitado à sua verdade, mas ao invés disso do que desprezar o amor pela Sétima Arte, nunca abandonando-o à sorte do menosprezo artístico. E se para muitos o Cinema não possui a profundidade da literatura, o uso imaginativo do “faz-de-conta” do teatro, a contemplação divina e quase artesanal da pintura, ou a monumentalidade da arquitetura, para o cinéfilo é nada mais, nada menos, que a fusões de todas essas plataformas artísticas, o filho bastardo que aos poucos toma o seu lugar.

No entanto, abandonada a oligárquica ideología de cinéfilo, sabendo que o Cinema não é par para a literatura e à dramaturgia, Wim Wenders aventura-se num extremo jogo “faz-de-conta”, experimentando uma adaptação de uma peça de Peter Handke (o dramaturgo, e fiel colaborador, tem um pequeno papel neste filme) para superar as limitações que inicialmente o colocaram. Infelizmente, Wenders cede à “burguesia” de um cinema erudito, tentando sobretudo apoiar-se nos textos que, para sua desgraça, não contrai a poética sonoridade nem os ecos de filosofia citada. Se o cineasta alemão tenta percorrer Eric Rohmer neste seu quadro vivo, esta prova auto-rejeita-se, os diálogos não foram o seu forte muito menos a proclamação destas prosas faladas, despejadas sem a orgânica, nem compostura.

Porém, Wenders brinca com as dimensões, atropela-se nas plataformas artísticas que ele próprio cita e tenta dar luzes a uma fértil amostra imaginativa, uma alusão da criação térrea de uma realidade. Assim, são duas que se embatem e dispersem, vidas artificiais pulsadas pelo toque do seu criador na sua máquina de escrever. Jens Harzer é um Deus para estes seres preenchidos por linhas, mecanizadas nas suas palavras, e é então que o improviso surge, os fatos que alteram a cor consoante a vontade do mentor, as falas que são interrompidas pelas mudanças musicais … e novamente a realidade paralela a funcionar quando entra Nick Cave em cena, a música pode ser o nosso álibi imaginativo.

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Mas o nosso leitor questiona neste preciso momento, do que se trata este “Os Belos Dias de Aranjuez” ("Les beaux jours d’Aranjuez”)? A resposta esconde-se por entre estes artifícios manipuláveis, Wim Wenders tenta reinventar o seu cinema, colocando e transcendo das suas limitações enquanto criação visual. Obviamente, que esta nova obra não goza desse statement artístico, pelo contrário este retrocedo a um cinema burguês o coloca na pista de onde o seu cinema evoluirá. Tal como o relato de uma das suas personagens, durante uma viagem a Aranjuez, a desilusão o tomou ao ver que a chamada “Casa del Labrador” não passava de um anexo no Parque Real, mas é nas groselhas, outrora domésticas, que adaptaram-se ao assilvestrado do meio, expandido e tomando o lugar das amoras e outros frutos que habitavam nos bosques para além do Tejo. Por outras palavras, Wenders descarta o seu cinema, assume a arte de outro e espera que esta tome a sua forma. Trata-se de cedência para mais tarde evoluir. Esperemos que sim.

Contudo, o cineasta alemão tem sido dos poucos que tem associado o 3D ao cinema dramático, “despindo” das suas conotações circenses, porém, faltará uma maior emancipação para que sinta o uso dessa mesma tecnologia.

"20,000 Days on Earth": Empurrar o céu para longe

Hugo Gomes, 17.11.14

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Por norma, quando se pretende concretizar um documentário sobre uma personalidade musical (e não só), facilmente se recorre à modelização narrativa numa alternância entre testemunhos / imagens de arquivo e vice-versa. Com “20,000 Days on Earth”, tal matriz seria desrespeitosa e automaticamente transformada numa oportunidade desperdiçada face a um homem tão curioso como Nick Cave, o líder dos Nick Cave and Bad Seeds, que no cinema ficou célebre como o autor do argumento de um dos mais envolventes filmes australianos dos últimos anos (“The Proposition”, de John Hillcoat).

Nesta obra que celebra a criatividade e a multifacetada forma do documentário, a dupla Ian Forsyth e Jane Pollard acompanham um Nick Cave autónomo e autodidático, um poeta ilusionista que profere vulgares “ordinarices” e que descaradamente transformas-as em prosa graças à sua voz reconfortante e sapiência. Mas acima de tudo, em “20,000 Days on Earth” o artista em questão revela-nos e convida-nos a entrar no seu íntimo, ao mesmo tempo que o oculta do espectador. Invocando palavras soltas sob a atmosfera boémia e confortante da noite, Cave demonstra os “pequenos prazeres da vida” num pleno egocentrismo, daqueles que se assumem como Deus sob uma quinta das formigas. Diria antes que Nick Cave funciona como a perfeita anarquia e, contraditoriamente, no alicerce para toda a execução deste documentário em constante moldagem.

Poesia visual é o registo acentuado numa alegoria que prova que é possível materializar um documentário de cariz musical sem o uso do academismo. Depois disto tudo, é Nick Cave, a figura central e o ator de um palco imenso, o único capaz de transformar o interior de um automóvel num confessionário e na televisão, não como um gesto de banalização e de sedentarismo, mas numa vontade de aproximação familiar.

Tudo é possível neste relato que tornará os mais ávidos fãs hipnotizados pela aura desta personagem dentro de uma personagem. Quanto aqueles que nunca ouviram falar de Nick Cave, a vontade insaciável de conhecer o homem por trás de “Push the Sky Away” nascerá após o último crédito. De distinto requinte.