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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Estará na altura de a Disney eutanasiar a Marvel?

Hugo Gomes, 10.11.23

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Há uns dias, a Variety publicou um artigo exaustivo denominado de “Crisis at Marvel” [com assinatura de Tatiana Siegel], que seguindo a trajetória tremida da “fábrica de super-heróis” da Disney desde 2020, tentava ‘penetrar’ numa eventual crise criativa, financeira e executiva. Num dos pontos que vai desde o encolher de ombros à situação de “Blade” (o que faremos com o Diurno?), até ao embaraço envolto de Jonathan Majors e o seu processo judicial (o ator seria o grande vilão pós-Thanos neste novo ciclo) e por fim, a incerteza que o seu novo capítulo, "The Marvels", constantemente adiado, poderia manifestar num box-office que dava sinais de "fadiga" ao subgénero.

Nia DaCosta, a realizadora e recém-sequestrada a esta pretensiosa linha de produção, tentou acalmar com declaração de estarmos perante uma obra colorida e cheia de humor e respeitosa para com as suas personagens, isto, reconhecendo o cansaço deste cinema nas audiências e ainda a expansão do universo Marvel que retiraria o entusiasmo dos espectadores, atribuindo a termo “trabalho de casa” à sua imperativa e entrelaçada continuidade. Com a estreia do filme que prossegue as aventuras da personagem de Brie Larson (Captain Marvel) e consequentemente a novas caras nessas demandas heróicas, apercebemos não só da exaustão no público (isto em época pós-Barbenheimer) como também da limitação palpável que a fórmula parece atingir ou de já ter atingido. 

Diria que foi em 2017 que "Logan" de James Mangold quebraria o subgénero, trazendo a mortalidade como a última pedra da arquitetura; o resto seriam divagações e variações do mesmo, por vezes liderando projetos mais ambiciosos do que os executados ("Endgame", ou melhor a razão para esta crise identitária) e por vezes autorais ("Zack Snyder’s Justice League"), com "The Marvels", somos remetidos às origens da sua própria ambição. Se, por um lado, temos a enésima peça desse universo, palavra que substitui franchise nesses "vales de estranheza", por outro, temos o esquemático, o efêmero e a infantilidade a tomar as rédeas.

Ou seja, se o primeiro ponto leva-nos a uma narrativa em permanente ganchos com os filmes anteriores, os paralelos e agora, com as séries de televisão, do outro, sob o medo e ameaça da “fadiga”, levou-se a um brutal corte na duração, dando a nós o “filme mais curto” da saga. Seria um alívio para as contínuas reclamações de “filmes longos”, principalmente no cinema de super-heróis, é igualmente o calcanhar de Aquiles em todo este projeto, porque com isso somos encaminhados a um rasurado desenvolvimento às três pancadas quanto às suas personagens, sem ênfases nem humanização (mais um vilão para esquecer … oops, já esqueci), e um enredo que nos primeiros 10 minutos já está por si saturado e enfadado. Pois é, mais um macguffin, mais um Fim do Mundo para ser adiado, mais uma equipa, mais uma lição, o mesmo dos mesmo, sem volta a dar. 

O final abre a porta para mais “multiverso”, tema deste arco narrativo marvelesco que vem consolidar a ideia de zero consequências, e ainda a opção de apostar em lides mais joviais, contrariando as audiências fiéis que “cresceram” ao longo destes 15 anos de filmes prescritos e que clamam por variações mais adultas e negras. “The Marvels” é genérico até à quinta casa e em comparação com os restantes “episódios”, é uma parede artística que a Disney terá que derrubar a todo o custo. Porém, outras vozes levantam, e questionam um cenário mais pragmático, o de matar este Universo, dar o seu devido ponto final. Não há vergonha nisso. Agora, transladá-lo para o pequeno ecrã (leia-se streaming em formato série), isso sim, já é vergonhoso.   

“Candyman” ... pelos vistos, houve quem se atrevesse a dizer o seu nome mais uma vez

Hugo Gomes, 27.08.21

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29 Anos separam o original de Bernard Rose desta nova ressurreição com cunho (e influências) de Jordan Peele (“Get Out”, “Us”). Nesse espaçamento, o mundo mudou e a nossa relação para com ele também. No caso do hiato que interliga os dois “Candyman” (aqui dispensamos as sequelas realizadas em 1995 e 1999 que serviam como enchimento das prateleiras dos videoclubes), essa mudança encontra-se presente na ebulição racial como pano de fundo numa história de espíritos assassinos vingativos.

Inspirado num conto de Clive Barker (“Hellraiser”), “Candyman” configurou-se como mais um "slasher" que alcançou o culto dos anos noventa e que facilmente caiu em desuso pela escassez (e incompetência) criativa que pairava em produtos B. Mas focando-se no original que nos apresentou Tony Todd como um ícone marginalizado do chamado “horror negro”, o  filme centra-se nos traços psicológicos da sua protagonista, uma estudante branca (há que frisar isto para o contexto) que trabalha numa tese sobre lendas urbanas, fascinando-se por uma com origem num gueto que tem dias contados - a do assassino munido de gancho que surge no reflexo do espelho após o seu nome ser pronunciado cinco vezes.

A obra é subtil neste choque entre os dois mundos, o de uma privilegiada e o de uma comunidade de escorraçados, grande parte de pele negra, vítimas de um fenómeno imobiliário denominado de gentrificação. Acrescente-se a isto um toque paranormal de requinte e uma Virginia Madsen cedida à martirologia ambígua e voilá, temos um dos filmes de terror mais subvalorizados dos últimos anos, porém, não esquecido. O que se comprova pelo facto de alguém ter convocado novamente a tal entidade sanguinária para estes novos tempos.

Jordan Peele, que tem pugnado pela dignidade comercial do dito “horror negro”, contou com Nia DaCosta que há uns anos impressionou com uma pequena curta em tom fabulista sobre a fictícia lenda / origem por detrás de “Candyman”, narranda por via de marionetas de sombras. Desse trabalho que se assumiu como pitch (visto que esse lado estético foi reaproveitado), e na linha de ressurreições de velhos papões (basta verificar a revitalização para com Michael Myers e os seus “Halloweens” para entender a incapacidade de apostar em novos ícones do terror), nasce uma sequela / reboot ao jeito dos novos tempos.

Contudo, o tema invocado do original permanece, só que com outra abordagem, solicitada pela nossa contemporaneidade - a consciencialização. A gentrificação, a discriminação racial e social e outras questões como a impunidade da polícia perante as minorias desfavorecidas já não são mais sugestões, são tópicos de convívio, de jantar, de arte falada, são propagandas vencidas dando lugar a prioridades sociais. Este “Candyman” funciona ao banhar essa luz, ao trazer a modernidade que nós vivemos diariamente, e nesse sentido existe nesta figura fantasmagórica um apelo de experiências nas suas forças criativas.

Obviamente, que isso não invalida a destreza de Nia DaCosta em lavar este terror num embelezamento sanguinário, com um espírito renhido do cinema "slasher" e acima de tudo um joguete de reflexos, fora de campos e pormenores cuidadosos que apimentam esta tentativa de trazer para grande plano um dos mais formidáveis assassinos do cinema. Infelizmente, o sentimento de reciclagem não nos abandona: “Candyman” por vezes soa como a sobreposição de um legado retirado a quente por um gancho, e isso chega a condená-lo, por exemplo, num anti-climático terceiro ato.