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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Charlie Shackleton: "Diria que 90% da crítica escrita não é particularmente interessante."

Hugo Gomes, 09.05.25

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O tipo da ‘tinta a secar’”, foi com estes termos que muitos reagiram à notícia da presença de Charlie Shackleton no 22º IndieLisboa, onde veio presentear os espectadores com a sua obra, incluindo as (in)fames dez horas de “Paint Drying”, o seu “filme-protesto” no qual forçou os censores britânicos a vê-lo esse tempo equivalente a “tinta a secar” na íntegra. A notícia desse feito corria entre nós em 2016 e, embora hoje esse trabalho seja tratado como um fenómeno viral, Shackleton é muito mais do que esse cognome: é um crítico tornado ensaísta e, por sua vez, um cineasta com uma personalidade singular, neste mundo em plena desconstrução e reflexão canónica.

Lida com as frustrações das obras inconclusas através de interiorizações sobre a indústria e a fórmula, essa “sopa quente” para espectadores passivos, uma ferramenta que o próprio realizador assume até apreciar, nem que seja para pensar nas suas próprias matrizes. Num encontro na Cinemateca de Lisboa, horas antes da abertura do ciclo que teria a honra de inaugurar com as jornadas do true crime em “Zodiac Killer Project” (2025), o Cinematograficamente Falando … conversou com o jovem das mil e um empenhos sobre o mais recente trabalho, outros projectos e, igualmente, sobre crítica de cinema e cânone… onde o colocar? Ah, e sem esquecer o fantasma godardiano dos “não-filmes”.

Para primeiro tópico desta conversa gostaria de tocar no “elefante na sala”: o ‘Paint Drying’. Vi várias entrevistas contigo em que referes este filme como a tua maldição, porque tudo o que fizeres a seguir não adianta, serás sempre relembrado como o “tipo que fez o ‘Paint Drying’”. O que no fundo é um filme de protesto, certo?

Sim, exatamente. Quando digo que é uma “maldição”, é com algum carinho. Porque foi um projeto que significou muito para mim. Foi pensado como um protesto contra o British Board of Film Classification (BBFC), o organismo de classificação britânico. A primeira vaga de atenção mediática, em 2016, esteve obviamente ligada a isso — ao que o protesto pretendia denunciar, e fiquei muito contente por ter tido tanta cobertura da imprensa na altura.

Pois, ouvi falar do filme ainda em 2016!

Ah, ouviste falar ainda nessa altura?

Sim, e queria por aí  mesmo... a tua visão sobre os mecanismos de censura no Reino Unido. Para ti, a entidade britânica BBFC é uma continuação dessa lógica censória?

Sim, acho que sim. A entidade britânica mudou de nome em 1984 — passou de British Board of Film Censors para British Board of Film Classification. Fizeram essa mudança de nome, mas, na minha opinião, o modo de funcionamento continua a ser o mesmo. Eles continuam a ter a palavra final sobre o que pode ou não ser exibido. É obrigatório passar por eles.

E tens de pagar por isso?

Exatamente, tens de pagar! E o impacto mais direto é para os realizadores independentes que querem exibir os seus filmes sem distribuidor. Nessas situações, são os próprios realizadores que têm de arcar com os custos, e muitas vezes esse dinheiro simplesmente não existe. Se quiser exibir um filme em três salas, posso nem conseguir recuperar o suficiente para pagar o certificado necessário. Sempre tive uma relação de confronto com essa entidade, mas mesmo assim, mesmo na altura em que o filme teve muita atenção mediática, nunca imaginei que as pessoas ainda falariam dele dez anos depois — e por tantas razões diferentes. Hoje em dia, o principal legado do filme é este fenómeno no Letterboxd, que na verdade nem tem a ver com o projeto em si. É só um acaso histórico: as pessoas escolheram aquela página para comentar tudo aquilo.

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"Paint Drying" (2016)

Mas depois desse protesto, o filme foi distribuído normalmente?

Não. Esta será apenas a segunda vez que o filme será exibido publicamente. Foi mostrado pela primeira vez há alguns anos, na Austrália, como parte de uma exposição. Aqui, conto como a segunda exibição. Até então, ninguém o tinha visto além dos censores.

O teu filme vai ser exibido na Sala Rank do Cinema São Jorge ... Bem, não numa sala qualquer, mas sim a que era usada para os censores durante o Estado Novo?

Sim, era mesmo a sala deles, não era? O que é incrível.

Ou seja, continua-se a manter o mesmo simbolismo da tua primeira acção de protesto, certo?

Exato. É o cenário perfeito. Nem consegui acreditar que estava disponível. E tem sido interessante, por causa daquele fenómeno no Letterboxd, que se tornou tão grande, as pessoas começaram a descobrir o projeto em si. E isso reacendeu o gesto de protesto, o que aprecio muito.

Vou confessar, ainda não vi o “Paint Drying”...

Ninguém viu. Não te preocupes. [risos]

Sobre o seu mais recente projeto, premiado no último Sundance, “Zodiac Killer Project”, o qual fez-me lembrar um conceito de Godard — os não-filmes. Filmes que só existem na mente do criador e que, por vezes, são melhores do que o próprio projeto materializado. Li sobre isso numa conversa que ele teve com a Marguerite Duras. Ele dava o exemplo do “Last Emperor” do Bertolucci, afirmava com “todos os dentes” que o filme imaginado pelo realizador, o não-filme, era um filme, e que o se concretizou deixou de ser um filme no momento em que se fez acontecer. É uma teoria arriscada, mas pertinente. E, no teu caso, senti que o teu projeto também começou como um não-filme, com a sua impossibilidade de adaptar aquele livro (“The Zodiac Killer Cover-Up: The Silenced Badge” de Lyndon E. Lafferty). E por isso acabaste por fazer uma desconstrução, usando essa tendência atual dos “true crime shows”, quase como um filme hipotético. Refiro isto, porque diversas vezes vejo este conceito dos não-filmes presente noutros trabalhos seus.

Sim, completamente. Acho que quase todos os realizadores têm vários não-filmes ao longo da carreira. Na verdade, é mais comum não conseguir fazer um filme do que conseguir, e eu nunca consegui aceitar totalmente essa frustração. No passado, peguei em ideias de projetos que não avançaram e transformei-as noutras coisas, ou usei a investigação que já tinha feito para criar algo diferente. Mas este foi o primeiro caso em que a inexistência do filme se tornou o próprio tema.

Obrigado por referires a Duras e o Godard, durante o processo vi “Le Camion” (1977) e “King Lear” (1987), ambos ótimos exemplos de filmes sobre não-filmes. Para mim, isso é uma extensão do desejo de fazer filmes que incorporam o seu próprio processo criativo dentro do próprio filme. Acredito que tudo o que fiz até agora, possui esse elemento.

Antes de fazer filmes, era crítico de cinema...

Queria mesmo ir por aí!

Pois, exatamente! [risos] Considero que tudo o que faço como realizador ainda mantém esse lado crítico, essa meta-textualidade.

É bom mencionar o teu passado como crítico, porque ao fazeres os teus ensaios audiovisuais, aliás curtas, são, de certa forma, uma nova forma de crítica. Queria perguntar algo isto de uma forma algo abstracta: sentes-te mais crítico ou realizador?

Acho que agora... Bem, para ser sincero, nunca fui um grande crítico de cinema. [risos] Durante algum tempo, quando comecei a realizar, continuei a escrever crítica em paralelo. Mas sempre achei a crítica escrita um pouco... difícil.

Penso que sou muito melhor a expressar ideias críticas através do audiovisual do que pela escrita. Hoje, já nem sei qual das duas categorias escolheria, porque para mim são quase impossíveis de separar. Não consigo imaginar fazer um filme que não seja, de algum modo, também um ensaio ou uma forma de crítica.

É engraçado... Hoje em dia, a única situação em que escolho um termo ou outro é em candidaturas a financiamento, e depende do que acho que a entidade quer ouvir. Se for um fundo que nunca financiaria um ensaio audiovisual, então escrevo “documentário” ou “longa-metragem” ou o que achar que vai resultar. Mas os termos, para mim, estão totalmente entrelaçados.

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Zodiac Killer Project (2025)

Porque o filme, ou o ensaio audiovisual, como preferires chamar, é seguro. Aqui dizemos que o audiovisual é "seguro", no sentido literal. Mas muitos críticos de cinema usam o próprio cinema como uma forma de expandir a crítica, como se o cinema também pudesse ser a linguagem da crítica. Só que, nos últimos tempos, surge sempre aquela dúvida: estamos ainda perante um filme ou apenas perante uma extensão dessa mesma crítica?

Sim, percebo o que dizes. É curioso que o ensaio audiovisual, tal como a crítica escrita, à medida que se tornou mais popular e dominante, acabou também muito monopolizado por trabalhos que, para mim, não são assim tão interessantes. Esse estilo didático dos vídeos no YouTubemea culpa também — que te dizem com certeza o que algo significa ou como funciona, não me atrai muito. Não explora aquilo que o formato pode realmente oferecer.

Mas isso é tão verdade para a crítica escrita como para o ensaio. Diria que 90% da crítica escrita também não é particularmente interessante. É nos restantes 10% que encontramos algo estimulante, aqueles críticos que têm uma forma especial de interpretar e compreender a arte.

Para mim, quando a crítica é boa, seja no formato que for, percebe-se logo. O meio usado, se é texto, vídeo, som, torna-se secundário.

Quero continuar por essa via da crítica, até porque és crítico e, ao mesmo tempo, muito crítico da própria crítica. Mas agora quero tocar noutro ponto. Só que antes disso … o teu nome é Charlie Shackleton, mas vários filmes teus estão assinados como Charlie Lyne.

Pois, é verdade. Cresci como Charlie Shackleton, mas por razões familiares complicadas comecei a usar o nome do meu pai, Lyne, durante os meus finais de adolescência e início dos 20 anos. Foi nessa altura que alguns dos meus filmes saíram com esse nome. Mais tarde voltei a usar o apelido da minha mãe, Shackleton. Portanto, essa diferença nos créditos é só isso, nomes de família, nada de alter-egos. Sou sempre eu, o mesmo autor.

Infelizmente, mesmo que quisesse, não posso renegá-los! Fiz aqueles filmes, goste ou não deles hoje.

Então há algum desses ensaios que hoje preferias não estar associado? Um com o qual já não te identificas?

Tenho uma relação complicada com todos os filmes mais antigos, como acontece com muita gente. Alguns têm mais de 10 anos e sou uma pessoa muito diferente da que era com 22 anos. Ver esses trabalhos hoje é um misto estranho de emoções. É como olhar para fotografias antigas da adolescência, reconheces a pessoa, tens carinho, mas também um certo desconforto.

Como as fotos do secundário? [Risos]

Exactamente! [Risos] E, ironicamente, um desses filmes é sobre filmes teen, o que intensifica essa sensação de proximidade e distância ao mesmo tempo.

Sim, o “Beyond Clueless" (2014). Em entrevistas sobre esse filme, o Charlie falou de "fórmulas" e como elas criam conforto no espectador. Porque quem vê sente-se seguro, sabe o que esperar, e no seu trabalho, mesmo quando identificadas essas fórmulas, parece que as destroi simultaneamente. Como se dissesses: “Sim, isto é uma fórmula, mas vamos olhar para ela de outro modo”. É isso?

Sim. Muito do que fiz acaba, de forma quase acidental, por ser sobre isso: como funcionam os géneros, as fórmulas do cinema. Para mim, o mais interessante é mesmo esse movimento de avanço e recuo — dar ao espectador algo familiar, para depois o surpreender ou desafiar com uma torção dessa familiaridade.

Dou-te um exemplo: no “Zodiac Killer Project”, o formato é bastante pouco convencional, é muito estático, não há grande coisa a acontecer visualmente, é apenas eu a falar de forma contínua. Pode ser alienante. Mas o que fiz foi usar as fórmulas dos true crime para criar uma falsa sensação de conforto. O espectador pensa que sabe o que está a ver, até perceber que está a ser conduzido por um caminho bem diferente.

Essa tensão é uma ferramenta poderosa. Porque todos nós, quer queiramos quer não, estamos sujeitos a essas fórmulas narrativas o tempo todo.

Penso muitas vezes sobre fórmulas, especialmente nos últimos dias, tenho pensado naquela fórmula dos filmes da Marvel, por exemplo. Vi recentemente o “Thunderbolt*”, e o que vi foi a mesma coisa, repetidamente. Muitas pessoas se sentem seguras com isso, e por vezes o formulaico gera consensos. Mas fico curioso sobre o “Zodiac Killer Project”, parece-me que é uma jornada para construir um filme, um filme de não-resistência na tua mente. Mas de certa forma, há críticas sobre essa tendência, sobre o próprio true crime, que continua a ser um subgénero muito confortável. E que cresceu, pode muito ser mais grotesco na temática, mas mantém-se como confortável para a maioria das pessoas.

Sim, acho que as pessoas realmente encontram conforto nisso. Em parte por causa daquele fascínio estranho pelo macabro, como também porque, se você viu um desses programas, já viu todos. Penso que parte do apelo de se fazer esse tipo de conteúdo para os grandes serviços de streaming, por exemplo, o qual exige muito pouca atenção. Você pode deixá-lo a “rolar” ao fundo, sair, voltar, e ainda assim saber exatamente o que está a acontecer. Não se vai perder o fio da narrativa, o que é uma maneira curiosa de pensar sobre entretenimento de conforto, quando, como disseste, é algo tão sombrio na maioria das vezes. Só que é uma história muito formatada, e dá para encaixar qualquer crime real nela, seguir os mesmos pontos narrativos com fiabilidade. Se observar... a maioria dos streamers disponibiliza guias ou livros de estrutura narrativa que dizem literalmente a uma produtora como estruturar uma história sem sequer saber qual é a história. Se for sobre um assassinato, está lá como dividir em cinco episódios, e claro que a realidade não devia encaixar-se num molde tão pré-definido, mas pode ser forçada a isso.

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Beyond Clueless (2014)

É como os biopics! As pessoas são diferentes, mas sentimos que as vidas são iguais.

Certo, exatamente. Haverá sempre algo que parece suficientemente próximo.

Mas és bastante crítico ao mundo do streaming. Mesmo em “Frames and Containers” (2017), fizeste uma desconstrução sobre o filme do Xavier Dolan, “Mommy”, e quando este foi parar à Netflix, em que eles cortaram a questão do enquadramento, que funciona naquele caso como uma elemento associadamente narrativo. Mas o próprio streaming parece não pensar para além das fórmulas, até nas produções exclusivas da Netflix, sentimos esse modelo construído com um só propósito, ser entendido da maneira mais leviana e sem distrações. Podemos ir à casa de banho, lavar a louça, e ainda assim não perdemos o fio do filme. 

É engraçado, pensar que quando fiz “Frames and Containers”, já parece que foi há mil anos que a Netflix adquiriu “Mommy” e colocou-o no serviço. Isso parece muito mais interessante agora do que a maioria do que se encontra lá. Houve um momento, certamente nos documentários, lembro-me em festivais de cinema por volta de 2017, 2018, quando a Netflix começou a investir a sério em documentários: o consenso era que eram os únicos dispostos a apostar em coisas fora da fórmula. Queriam ser ousados e diferentes, e ganhar prémios, então apostavam em coisas arriscadas. Tal desapareceu muito rapidamente. Como o próprio filme. Tornou-se tudo muito direto. Entenderam que podiam ganhar prémios com “My Octopus Teacher” em vez disso, e teriam muito mais audiência com algo assim. Não sou contra o streaming, em teoria, vejo muitos mais filmes em casa do que no cinema. Mas em termos do modelo de streaming dos últimos anos, o que tem sido favorecido é o trabalho replicável, baseado em fórmulas.

O que pensas sobre o algoritmo?

Sobre o algoritmo? É engraçado. Não sinto que saiba o suficiente sobre como ele funciona atualmente. As pessoas falam sempre de como estes algoritmos são super ajustados e sabem tudo sobre nós. Mas sempre que abro o Netflix, vejo exatamente as mesmas coisas que toda a gente. Não me parece... Suponho que, enquanto fazia o “Zodiac Killer Project”, vi tanto true crime que agora o Netflix só me mostra isso. Então, provavelmente, sou um espectador muito aborrecido para o Netflix. Tenho um interesse, e mostram-me aquilo repetidamente. Mas não sei. Já não parece haver conteúdo suficiente lá para ser hiper-específico.

E voltando à crítica, tens outra curta antiga intitulada de “Criticism in the TikTok Age” (2019). Também achei muito interessante porque usaste a estética do TikTok para fazer uma autocrítica ao TikTok.

Sim. Usei a forma dele. Aquilo já me parece tão desatualizado, obviamente, porque foi feito no mês em que ouvi falar do TikTok, que acho que já existia há algum tempo, mas só ouvi falar em 2019. Então pensei: “Ah, aqui está esta coisa nova, vou tentar entendê-la.” E agora o TikTok é este fenómeno inescapável. Tenho a certeza de que muitas das observações que fiz naquele filme já não são relevantes para o que acontece atualmente na plataforma. Eu nem tenho TikTok, então não sei bem. Mas lembro-me de ter achado fascinante que fosse essencialmente uma app de criação de vídeo, apesar de ser uma rede social. Foi isso que me levou a fazer o vídeo no formato vertical como do ecrã do telemóvel. Ainda assim acho isso fascinante. Não sei se todos os jovens no TikTok estão a criar vídeos ou se a maioria está só a assistir. Porque não entendo como funciona como rede social.

Como eles se comunicam entre si?

Estou completamente por fora agora. Tive uma janela breve em que percebia o que era, mas agora já não sei. [Risos]

Conheço pessoas muito jovens que fazem crítica de cinema no TikTok. Mais “reviews” do que ensaios. Do tipo sair de uma sessão e dizer “esse filme é assim ou assado”. Mas como isso funciona? Os vídeos são tão curtos.

Sabes uma coisa … quando a Letterboxd entrevistou-me sobre “Paint Drying”, e colocaram o vídeo no TikTok e Instagram, esse mesmo foi mais visto do que qualquer outro filme que fiz. Ou qualquer outra coisa em que estive envolvido. Já fui reconhecido por causa desse vídeo em apps de namoro, na rua... Nem sei quem é esse público, mas é enorme. É loucura. Tipo, 5 milhões de pessoas viram esse vídeo. Nenhuma delas sabe quem eu sou.

Honestamente, o número de pessoas que me disseram que viram esse vídeo por aí é surreal. Alguém está a ver.

Posso adiantar que vi esse vídeo! [Risos] Mas voltando à fórmula, tens outro filme que gostaria de falar: “Copycat”. Usas alguém [Rolfe Kanefsky] que fez um filme contra as fórmulas dos filmes de terror [“There 's Nothing Out There”, 1991] e depois volta, como espectador, a esse lugar seguro da fórmula. Porém, a história por detrás desse filme parece uma história digna de uma teoria da conspiração. E até tem direito a plot twist.

Sim, é engraçado. Porque o Rolfe sente que foi plagiado pelo Wes Craven [em “Scream”]. O que me interessava nisso é que é um sentimento muito reconhecível. Ter uma ideia e alguém aparecer com a mesma ideia, mas executá-la de um modo que tu não consegues. Acho que todos nós já sentimos isso de alguma forma. Especialmente, como disse, quando envolve algo que tantas pessoas conhecem — os tropos de um género — há mais probabilidade de várias pessoas terem a mesma ideia. Por isso é que tantos filmes de terror se parecem uns com os outros. Uma coisa de que me arrependo um pouco nesse curta é que, como era novo no cinema e ainda não tinha apurado o meu estilo, acho que o filme acaba por parecer uma defesa da tese do Rolf e um ataque a Wes Craven. O que não era realmente o que pretendia fazer. Estava muito mais interessado no impulso emocional do que em descobrir quem copiou quem.

Se fizesse hoje, acho que focaria mais nesse sentimento do que na questão factual.

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There 's Nothing Out There (Rolfe Kanefsky, 1991)

Mas é um filme muito interessante porque de alguma maneira nos faz refletir sobre “Scream” e o seu papel no cânone do género. Mas foi como disse, é um mundo pequeno. Todos estão a ser influenciados por todos. Hoje em dia já não acredito muito em plágios, mas é curiosa a ideia dele — de que o Wes Craven “roubou-lhe” o filme.

É um sentimento irresistível.

Sim, é um sentimento irresistível. Confesso que detenho uma espécie de sedução pelas teorias da conspiração em si. Não somente porque as acho maioritariamente engraçadas, mas porque é um tratado psico-sociológico o facto das pessoas acreditarem mesmo nelas. Não estou a dizer que metade do que ele diz [Rolfe] é verdade ou mentira, é tão obviamente falso ou verdadeiro — e mesmo assim é delicioso.

Sim, acho que é mais... Até porque o Rolfe conta essa história há 20 anos. Provavelmente já nem sabe quanto acredita nela, porque, para ser justo, ele não esconde essa incerteza: “Não sei se foi mesmo plágio ou se foi coincidência.” Mesmo assim, persiste em contá-la. Acho que agora ele está mais a repetir a história do que a sentir de novo, e isso é uma característica presente em muitas teorias da conspiração também. Decoramos a história, repetimo-la, e muitas vezes nem lembramos como nos sentimos da primeira vez. Só se tornou um refrão.

Vejo nesse filme um sintoma gradualmente presente hoje em dia, principalmente na crítica ou até nos meios acadêmicos, o de tentar recontar a história do cinema, o cânone e as devidas influências. Esse teu filme trabalha como se estivéssemos a refletir sobre essa reconstrução.

Não sei se tenho esse sentimento sobre recontar a história do cinema, para dizer a verdade.

Qual é o teu sentimento em relação ao cânone?

Na verdade, é exatamente isso que Rolfe estava a fazer: tentar inserir o seu filme no cânone. E, de certa forma, ajudei-o a fazer isso. Ainda não é canónico, mas está mais perto do que antes. Tenho muito interesse nisso: como os cânones se formam, e, em geral, sou bastante desconfiado deles. Comecei a aproveitar muito mais o cinema e a cinefilia quando deixei de lado essa ideia de “ver os 100 filmes obrigatórios”, ou “ver todos os filmes de um realizador”. Hoje tenho uma relação mais estimulante com o cinema porque aceito que é algo pessoal e idiossincrático. Vamos sempre ter lacunas. Todos morremos sem ver vários “clássicos”. Portanto, hoje em dia, aproveito muito mais tendo deixado esse sentimento de cânone para trás.

E quanto a novos projetos? O “Zodiac Killer Project” vai gerar outro projeto?

Há um filme que tenho tentado fazer há algum tempo, mas que pus em pausa enquanto fazia o projeto do “Zodíaco”. É um filme sobre a força policial britânica da obscenidade — que era uma divisão da polícia metropolitana de Londres chamada Obscene Publications Squad [também conhecido como Dirty Squad]. Basicamente, eles aplicavam a lei da obscenidade no Reino Unido. No filme proponho uma reflexão sobre isso, sendo o que é ou não obsceno como algo muito subjetivo, e o facto dos tipos de casos com que lidavam foram mudando ao longo das décadas.

Vai ser curta ou longa-metragem?

Será uma longa, sim. Ainda estou a trabalhar nisso, mas é um projeto que tenho vindo a desenvolver há vários anos e que continuo com muita vontade de concretizar.

Gostas dessa ideia de desconstrução, aliás é uma característica bastante presente na tua obra?

Sim. Tem bastante a ver com... até com o projeto “Paint Drying”, obviamente, que também tratava de temas semelhantes. Sinto que este projeto já se vem a formar há muito tempo. Mas, por agora, continua a ser um não-filme.

Um não-filme! O Jean-Luc Godard ia gostar disso.

Esperemos que, um dia, se torne num filme verdadeiro. [Risos]

Netflix & Chill? Ou como o espectador é capturado pela fórmula e pela Adèle ...

Hugo Gomes, 23.12.24

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A Netflix aproveitou a decadência de um género tão associadamente hollywoodiano, trazendo-o de rajada para a sua linha de produção. Enquanto a grande tela se encontra praticamente monopolizada por Tom Cruise, a “casa do ‘N’ vermelho” transforma esta acção turística, de milhões dispendiosos, numa pipoqueira festa para pequenos ecrãs, no conforto das salas de estar. Por vezes, são 100 ou 200 milhões gastos, seja com Chris Evans, Gal Gadot, The Rock ou Chris Hemsworth — o protagonista pouco importa. O que interessa é seguir à risca o sonolento impulso destes espectadores refugiados na sua confortabilidade: montagem rápida, trocista e… puf! … eis o novo “êxito” netflixiano destinado apenas a ocupar uma vaga no referido catálogo.

Voleuses”, traduzido como “Ladras”, poderia ter sido uma conquista de Mélanie Laurent, enquanto realizadora, no género da acção, mas transforma-se numa travessia no deserto em termos de ideias narrativas e cinematográficas. Tendo em conta que, há alguns anos, Laurent brilhou com “Respire” (2014), posteriormente escolhido como cartaz oficial da 54ª edição da Semaine de la Critique de Cannes, aqui está relegada ao papel de tarefeira, cumprindo encargos para “encher chouriços”. Igualmente protagoniza ao lado de Adèle Exarchopoulos — a merecer o cachet na sua choruda forma — e de uma antagonista Isabelle Adjani, automatizada, como bem sabe, para evitar esforço em vão.

O filme flirta constantemente com um conceito de “cinema” de fundo (meramente de fundo), mas acaba por entregar um produto esquecível, sem estilo e completamente padronizado… talvez a estética vencedora da Netflix. Locais, há muitos; as actrizes, ao que parece, aproveitaram essas férias pagas com requinte; e os espectadores, por sua vez, pagaram a devida mensalidade para promover a sua própria domesticidade.

Noémie, a anti-virgem?

Hugo Gomes, 20.11.24

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Não pretendia seguir este ponto, por isso perdoem-me a hipocrisia ou até mesmo a subjetividade dentro da subjetividade, e vamos encarar como tal: este “Emmanuelle” é, enquanto suposto “filme erótico”, um objeto deveras entendiante. O que supostamente não seria um sentimento vivido neste subgénero tão em queda, mas se nos novos tempos cinematográficos - oscilando pelo progressismo sexual e um certo puritanismo em outras frentes - o erotismo parece não ter espaço lúdico no ecrã. Culpamos o quê e a quem afinal? A expansão da pornografia, enquanto pseudo-indústria ou a acessibilidade virtualmente sem obstáculos? Os novos moldes e pensamentos da intenção erotizada? A expulsão do olhar masculino [“male gaze”, academicamente falando] deste género? Ou a sua desconstrução primordial, muitas vezes ao serviço de uma cultura, que a direita adora exclamar indignamente como, woke? Fica os culpados em suspenso. 

A refilmagem de “Emmanuelle” de Audrey Diwan (“L'Événement”) é uma busca pela dignidade da própria personagem, esta eternizada por Sylvia Kristel num problemático filme de 1974 [de Just Jaeckin], que resultou num franchise enormíssimo e com foz em absurdos (“Emmanuelle no Espaço”, por exemplo). Sem Sylvia, é Noémie Merlant a vestir a personagem criada por Emmanuelle Arsan, que bem poderia chamar-se algo como Patrícia ou até Jéssica que o resultado seria o mesmo (nunca é chamada pelo nome que serve de título), uma mulher bem-sucedida no sentido lato ou intensificado na literatura de cordel, em Hong Kong ao serviço da sua empresa, explorando o biótipo de um hotel luxuoso enquanto debate com o seu (fugido) prazer. Basta reforçar o velho esterotipo do Poder com a frivolidade e daí o sexo sem sabor, preenchido com o mistério de um hospede intrigante e errático. “Emmanuelle” tenta desconstruir a fantasia e o desejo numa extensa conversa de engate de verborreia pouco imaginativa (Rebecca Zlotowski, co-argumentista, foi mais espontânea no seu deleite “Une fille facile” do que na lascividade dos outros), e a câmara de Dwan entende-se como demasiado tímida para prosseguir na aventura desta mulher à beira de um orgasmo. 

O final, talvez o único momento de erotismo no sentido estético, efabulado em jeito softcore a manifestar-se na réplica de Wong Kar-Wai trambolho, não compensa a jornada de uma heroína sem grandes empatias num filme sem grande tesão. Mas já deveríamos esperar tal resultado, os créditos iniciais apresentavam um N vermelho … maldita Netflix, a contribuir para estes objetos assexuados sem eira, nem beira.

"Devolvam o nosso lagarto!!", dizem em uníssono os japoneses...

Hugo Gomes, 15.06.24

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Resgate parcialmente do antigo simbolismo envolto na figura do kaiju - em 1954, Ishiro Honda representou Gojira/Godzilla como uma manifestação corpórea da ameaça, vulgo medo, nuclear - Takashi Yamazaki ("Returner") transformou a criatura, hoje infantilizada pelos inúmeros exemplares de disaster movies e de conflitos entre monstros, num assombro às cicatrizes nipónicas pós-Guerra. 

Dessa forma, "Gojira -1.0" envolve-se em esquemas sociopolíticos, num enredo sentimentaloíde de um kamikaze cujo medo o levou reagir prontamente ao suicídio institucionalizado, e assim “escapar” à morte planeada (preenchendo-o, o nosso protagonista sim, com um dilema de dívida para com a sua própria Nação). Anos depois dos derradeiros golpes de Nagasaki e Hiroshima, ele pavoneia-se num Japão em escombros que se reabilita à medida que o país, num sopro, prossegue. O contexto e a sua intenção que o enfatiza na roda do seu espírito blockbuster não divergem muito do cinema nipónico pós-Guerra, que, nos alicerces da sua construida Idade de Ouro, serviu como veículo para transmitir e sintetizar as suas feridas, saradas apressadamente, e na crónica a esta relação de um Império esquecido com a sua subjugação ao Ocidente (e, deste modo, uma 'domesticação', talvez). 

Contudo, é uma rendição com um medo sucinto, atrevidamente despertado com a chegada dessa criatura da altura de um arranha-céus e de bafo nuclear, cuja imagética trazida pelo seu rasto de destruição não se afasta do belicismo evocado pela Segunda Grande Guerra e, eventualmente, do devastador "cogumelo" que fez o país reviver o pesadelo dos seus pesadelos. O resto é a mobilização civil em abater tal besta dos infernos, "saltando" as adversidades de uma nação que despachou a sua militarização como prova válida da sua derrota, exaltando os valores, politicamente incorretos, da coragem e sacrifício japoneses. 

"Gojira -1.0" é, em suma, um objeto que mimetiza os formatos spielberguianos do cinema blockbuster, sempre apimentado com um certo brilho propagandista, mais do que enriquecer as suas instruções históricas, ou ser verdadeiramente honesto nas suas metaforização (não nos deixemos enganar, é um filme-entretenimento concebido nessa raíz). Porém, é interessante, e a reação eufórica em torno disto viabiliza a vontade e a astúcia que esta grande produção (aos níveis da indústria japonesa) detém enquanto arma de arremesso contra os disparates sem ponta nem redonda que os americanos “reabilitaram” em franchises longos e tecnologicamente dependentes. 

Nesse sentido, acreditamos que a existência deste "Gojira" funcione como uma resposta a essa contaminação. Os americanos ficaram com Godzilla, mas só os japoneses o entendem devidamente.

Roma fora de casa ... e de horas

Hugo Gomes, 28.04.24

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Não fiquemos surpreendidos com as constatações estéticas que este “Adagio” nos apresenta de imediato, tendo em conta que a sua mão assinante é a de Stefano Sollima, realizador que povoa os três mundos; Itália e a sua indústria, Itália para o Mundo por via Netflix e Hollywood (“Sicario: Day of the Soldado”). Com este novo filme, terceira parte de uma possível e não-pensada trilogia, são abocanhados os dois primeiros “mundo” com foco no terceiro, até porque Sollima, perante uma Roma apocalíptica - onde os ventos sopram com notícias de uma incêndio de enormes proporções com o clarão, as cinzas e o odor a queimado servindo como um postal, e pelas intermitentes cortes de energia que lançam o caos escurecido na capital italiana - é uma atmosfera que tem tudo e ao mesmo tempo familiarização pelos diversos panorâmicas em modo drone, é uma periférica comum na nossa atualidade, desde a produção mais rasca até ao grande orçamento. Portanto, as vistas da cidade, tão bem condizem na grande tela como no pequeno ecrã, assim justificando o “N” colorido que dará a vez à “Netflix” na antecipação dos créditos iniciais.

Falar de cinema, com C, hoje em dia, a nível visual, é cada vez mais uma discussão pela desapropriação e deserdação das mesmas categorias grandiloquentes e plenitudes, ou seja aqueles ditos planos unicamente ligados à experiência de sala transladaram para produções caseiras, domesticando essa linguagem como um “ferro a fogo” para com a sua ambição. Sollima entende muito bem isso, essa sensação de grandeza, não prescrita somente à sua linguagem de vista, mas também no pretensiosismo da sua narrativa. ora, confessamos, fiel ao seu espírito “Suburra”, o realizador reveste a cidade e a usufrui como uma personagem à parte, ou, vulgo no verdadeiro protagonista, o testemunho silencioso de um crime e a sua sucessão de malapatas que vão despertar uma organização criminosa há muito entendida como extinta. 

Nesse âmbito, o casting faz as suas maravilhas, entrelaçando os possíveis, três grandes atores da cinematografia italiana da contemporaneidade - Toni Servillo, Valerio Mastandrea e Pierfrancesco Favino (com uma caracterização de meter dó) - estes gigantes trazem consigo uma aura de lenda, mesmo que a sua apagada mitológica seja forçadamente improvisada no seu momento. É nesta trindade que encontramos marcos narrativos que delineiam os seus actos (ou arcos), seja a escuridão de Mastandrea como o pontapé de arranque à trama propriamente dita, a loucura de Servillo como o “adagio” (apropriando-se do título) que o enredo investe e por fim, o pathos de Favino como o clímax. Os três nomes que balançam nos seus respectivos arcos entende-se, são também eles as gárgulas da cidade de Roma, depositando na antiga metrópole a sua personificação. 

Sollima, com este retrato todo, mais uma vez mesclado os seus temas prediletos - corrupção, corrompimento e salvação - gera uma produção requintada (e requentada) com um ritmo que vai do frenético ao pausado, ao calculado ao despedaçado, mas sempre respeitando o paladar de um espectador despreocupado com transgressões ou leituras mais intensificadas. Porque “Adagio” posiciona-se no grande ecrã como no pequeno, sem distinção e sem convicções de um lado que seja.  

Música "Maestro"!!

Hugo Gomes, 09.12.23

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A vida concebida como uma sinfonia, uma pauta clássica que transcende qualquer simplificação cinebiográfica. “Maestro”, o segundo empreendimento de Bradley Cooper na sua demanda na realização, é um objeto estimável de tecnicismo e virtude, há mestria, atentado ao termo, nesta orquestra em desconstrução da sua figura biográfica - Leonard Bernstein (1918 - 1990) - compositor, condutor, pianista e mais que isso, um mentor que moldou não apenas um século musical, mas também o cenário cinematográfico (o que dizer da sonoridade de “West Side Story”, aqui fazendo perninha zeitgeist?). 

Cooper, cresceu como ator, passando de típico galã, o bonito da boysbandThe Hangover” até a sniper no filme vendido de Clint Eastwood (“American Sniper”), com o cineasta e também ator (bem) americano ao que parece terá aprendido devidamente o ofício, e sem meias medidas, aventura-se com Lady Gaga na terceira versão de “A Star is Born”, uma conquista garantida de público, e metido no goto de críticos e Academia. Nesse filme, Cooper, também protagonista, sob fintas atrás de fintas narrativas, trouxe-nos uma obra seca quanto à sua musicalidade, obviamente trazendo parte e parte da sua experiência com Eastwood, de um classicismo quanto à sua natureza, mas nunca na sua fórmula estetizada. Com “Maestro”, um projeto há muito ‘abraçado’ por Martin Scorsese, mas nunca avançado por ele (conta-se que o impedimento estava em de nunca ter conseguido encontrar um ator à altura do papel), Bradley Cooper dedica corpo (e nariz, a ‘parva’ controvérsia envolto do seu nariz prostético) e alma nesta composição, em vista grossa na sua narrativa temos o comum neste tipo de cinema. 

Tudo começa em modo confissão ensanduichada, cujo condimento resume-se a saltos acrobáticos por entre factos e personalidades, como uma lição estudada e decorada da sua personagem. No entanto, dois pontos (e não menores) emergem nesta experiência biográfica. O primeiro, a desconstrução embicada na personagem, que tal como “A Star is Born” é através da presença feminina, a coadjuvante, que é germinado como atalho para a persona incorporada por Cooper. Lady Gaga, a estrela em ascensão em contraponto com a queda de um rockstar no filme anterior, interliga, aqui, com Carey Mulligan (interpretando a atriz costarriquenha-chilena Felicia Montealegre), a esposa dedicada ao sucesso do seu marido (um homem, deve-se salientar, de um única mulher, mas de vários homens). É através da sua presença, a sombra de Bernstein, que gradualmente somos sequestrados à sua óptica, desviando o centro do filme à personalidade-homenagem, excepto quando, munido da sua batuta, conduz esplendorosamente as orquestras ao longo da sua vida. Uma magnífica sequência de mais de 6 minutos, catedral em redor, com Cooper manejando a sua “vareta”, que segundo consta, aprendeu verdadeiramente em nome da veracidade.

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E por aí mesmo que chegamos ao segundo ponto, ou nota musical como apropriação temática, o virtuosismos técnico (os travellings que invejam o espaço, os enquadramentos, o trabalho em fora de campo e para lá dele), fotográfico (as cores, ou a falta delas, desde os tons à saturação, um respeito e por si só contextualização histórica com prisma no cinema corrente) e até na montagem (as transições que entram em diálogo com a memória cinematográfica, e em especial caso com a tradição do musical hollywoodiano), com inspirações e aspirações scorseseanas (associação a nós trazida pelo nome do realizador no registo de produção). 

É um espéctaculo de “directing” à moda que só Hollywood pomposamente conseguiria “parir”, e hoje algo perdido pela automatização e pela validação do realismo-imperador, contudo, é a prova que Bradley Cooper desponte como um dos realizadores do futuro daquela casa do cinema cada vez mais órfã. Juntamos a confirmação do seu nome ao lado de outros talentos em voga como Damien Chazelle (em paralelo com o seu subestimado “Babylon” há uns quantos campos cruzados, nomeadamente a música como transportadora da emoção dos seus personagens), e por fim, Cooper superando-se ainda mais como ator, num desempenho longe da dependência da protética e da mimetização, enquanto que Mulligan, apontada como uma das favoritas à estatueta e com a confiança total do seu parceiro e realizador, possui mais responsabilidade do que condução. Mas o seu “estado de graça” está a funcionar … 

Nada, convém sublinhar, que retire a este “Maestro” a sua grandeza.

A 'kagemusha'

Hugo Gomes, 01.12.23

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Há uma evidente alusão à “Persona” e a “Clouds of Sils Maria”, de Olivier Assayas, quer no confronto de identidades, quer na essência performativa, no entanto, em "May December", a recente colaboração entre Todd Haynes e a sua “musa” Julianne Moore (dupla “unha” e “carne”, evidentemente), evoca inesperadamente, e espiritualmente, um dos últimos trabalhos de Akira Kurosawa: “Kagemusha” (1980). Esse épico kurosaweano, surgido na sua fase pós-consagração, destaca a transformação de um sósia para o seu falecido Senhor de Guerra. Os próximos ao círculo do anterior feudatário apercebem dessas semelhanças, salientes e confundíveis da 'cópia' ao original, até ao ponto em que se tornaria mais autêntico [sublinha-se] que o próprio Senhor. Mais tarde, somos conduzidos a esse duplo-sombra perseguido pelo vulto do seu defunto mestre, numa perseguição onírica, metaforizando a instabilidade e mutabilidade da identidade, que não é mais do que uma 'persona' em constante manutenção.

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Em "May December", Natalie Portman, assumindo o papel de Elizabeth Berry, uma atriz de renome do pequeno ecrã, imersa num novo e ambicioso telefilme, a adaptação da controversa história de Gracie Atherton-Yu (Julianne Moore), uma professora condenada por um relacionamento amoroso com um jovem de 13 anos nos anos 90, automaticamente virando uma figura mediática de tabloide. Portman estuda meticulosamente a personagem expressa em Moore, agora instalada e vivendo um matrimónio, aparentemente feliz, com o seu antigo “amante jovial” (Charles Melton), mimetizando-a para desvendar a sua psicologia, idiossincrasias e identidade, até mesmo invadindo momentos íntimos. A conexão entre o filme de Haynes e o de Kurosawa reside na transformação da(o) 'sósia' até atingir a réplica ambígua, chegando a transgredi-la. Aqui, em cena, a simulação do sexo no local, o ato 'pecaminoso' que dá mote à 'novela', do qual testemunhamos a fuga à crisálida por parte de Natalie Portman (o filme faz uso de um sub-subenredo de borboletas monarcas e as suas diferentes metamorfoses como imagem-guia), a sua tomada de posição, ou diria mesmo superação, a criação de uma nova autenticidade, de uma nova 'realidade'. A 'kagemusha', a 'sombra', aproxima-se do genuíno, desafiando a essência estabelecida pela 'persona original'.

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Quanto à natureza do próprio filme, desviando-se da abordagem clássica sirkeana (“Far from Heaven”) ou dos resquícios de David Lean (“Carol"), "May December" apronta-se num lado pindérico telenovelesco, com a abertura em jeito do 'jingle' de "The Go-Between" de Joseph Losey e os constantes dramas sumarentos com que expõe como rímel de um confronto entre verité e vanitas. Porém, é na sua teoria que se resume a um interessantíssimo ensaio.

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Quatro notas soltas sobre "Maestro" de Bradley Cooper:

Hugo Gomes, 30.11.23

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- Vemos realizador para o futuro! Depois de "A Star is Born", um livro de apontamentos do classicismo à lá Eastwood, deparamos com uma variação mais scorseseana (se não fosse o facto de Scorsese manter-se na produção do projeto), entre movimentos graciosos, transições de alto risco e enquadramentos que jogam nas diferentes perspetivas (há um Snoopy que atravessa o cenário, literalmente, num timing perfeito). Se a Academia não ficar refém da 'nolanização', temos prémio garantido para "Directing".

- Bradley Cooper é igualmente primoroso enquanto ator (sem querer apoiar nos prémios, mas Óscar já é uma garantia), e é uma interpretação acima do seu nariz e das controvérsias (!) que isso acarretou.

- Perdoem-me os "mulligrupies", mas Carey Mulligan é altamente sobrevalorizada, imaginei o seu papel em 10 outras atrizes, e com mais pathos, dinâmica e expressão.

- É mais que um biopic na formatação do termo, é a desconstrução de uma figura de culto, sem degradações e sem venerações, com destaque à "sombra" do génio, à cumplicidade e às suas tragédias  ... tudo embrulhado numa técnica impressionante (e nos dias de hoje, com o realismo formal e com as imperatividades narrativas, desprezamos cada vez a técnica).

O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.

Em Lisboa, a recomendação são as tapas!

Hugo Gomes, 21.08.23

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Em tempos, venderam-nos a Netflix como o último reduto da criatividade cinematográfica, após a homogeneidade do cinema de super-heróis e sequelas atrás de sequelas que as majors estavam destinadas a seguir. Porém, o mito evaporou, e um passeio pelo catálogo do streaming hoje, na sua seleção de originais, revela-nos algoritmos fílmicos, seja em argumentos binários ou estéticas que se camuflam com o livro de encargos do "N" vermelho. Após a tentativa de "Gray Man", com um orçamento de 200 milhões (?), resultando numa sopa instantânea sem sabor, eis que chega-nos a mesma fórmula em outras roupagens, com Gal Gadot assumindo a condução de mais um protótipo de espionagem global, daqueles que Hollywood produzia em abundância no pré-11 de Setembro (ressalta-se que nesse lote, apenas a saga "Missão Impossível" sobreviveu graças à seleção natural e a Tom Cruise, num constante desafiar da sua existência). 

"Heart of Stone" soa-nos escrita de Inteligência Artificial (e infelizmente, essa tendência está a tornar-se mais do que habitual), peças encaixadas à martelada, lugares-comuns estampados sem pudor e algo que nos tentam convencer de serem personagens, só que se tratam de meros avatares deste videojogo chamado "novidade de streaming". No fundo, é esquecível, acredito que até mesmo antes dos créditos finais já o “olvidamos”, portanto, deixemos o parte do furto de Tom Harper ("Wild Rose") e foquemo-nos no tal "elefante na sala" (o faits divers para nos acalentar a dor) - Lisboa, cidade menina e moça - aqui interagida na ação de passagem como uma capital de postal. É assim que os "gringos" nos veem, até porque, Gal Gadot, seguindo o conselho da sua superior hierárquica, em Lisboa come-se tapas (!). 

“Heart of Stone” e seus afins, são ‘produtos’ verdadeiramente prejudiciais à qualidade do espectador dos nossos tempos (talvez seja um sintoma deste estado agravado), mais do que os fenómenos “Barbenheimers” desta vida que muitos conspiram e acusam como atentados à nossa estabilidade social.