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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Não abras ... são especiarias, incensos e os anos 80 invocados

Hugo Gomes, 13.11.23

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Bishal Dutta, nesta sua primeira longa-metragem, assumiu influências de um certo terror dos anos 80, ambientados em subúrbios e liceus e lidando, subliminarmente, com questões hormonais e existenciais dos seus jovens protagonistas. Não é segredo, e muito menos “A Nightmare on Elm Street” (Wes Craven, 1984) como principal “bullseye”. Nota-se o esforço, a vénia, a mimetização atmosférica, salpicando com especiarias da sua cultura. 

It Lives Inside” ("Não Abras") vive, maioritariamente, do seu espólio étnico e cultural, o folclore hindu como substância criativa (sendo que fim tudo se resume a equivalente figuras do ‘bicho-papão’), como lição ancestral moralista que a sua “final girl” - Samidha (Megan Suri), involuntariamente apropriada ao estilo de vida americano - lida com todas as adversidades. Espaço para sequela? Talvez, quem sabe, mas infelizmente, mesmo com os seus pozinhos tecnicistas e algum fulgor em determinados efeitos práticos (o tributo de Dutta não poderia ser vergado pelo facilitismo e artificialismo do CGI), o filme tende a comportar-se como uma variação previsível e demasiado branda para com a sua emanada violência, não somente gráfica, como também dramática. Digamos que estamos perante um produto jovial direcionado a adolescentes em massa, e por essa via, seguir a tradicionalidade da sua “venerada” década o qual não cansa em orar, mas de um período para o outro, o terror parece ter tomado outras direções, e aquele endereçado nos estúdios norte-americanos deseja apelar para camadas mais amplas de público, com isso não olhando a meios para a amenização do seu próprio 'terror'. 

"It Lives Inside" é uma intenção saudosista que, por sua vez, revela-se imatura, dramaticamente fácil e terrivelmente revista. 'Coisas' que nem o twist cultural conseguem salvar, contrariando as sensibilidades contemporâneas.

Fim da Humanidade, o "sonho húmido" secreto da Civilização

Hugo Gomes, 02.11.23

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"Sonhamos” com a destruição da civilização desde o seu nascimento. Faz parte do nosso ADN. A submersão de Atlântida, a queda do Império Romano, as sete pragas do Egipto, ou, como é recentemente projetado, o Apocalipse (essa ideia nunca caduca), são sintomas de um desejo autodestrutivo que encontra a sua romantização nas diferentes plataformas artísticas, nomeadamente no Cinema. Com “Le Règne Animal”, somos levados a outro medo, talvez correlativo ao fim da Humanidade como a conhecemos; referimo-nos à perda das nossas características enquanto seres “civilizados”, ao retrocesso às nossas ancestralidades, ou seja, ao primitivismo, ao animalesco. 

Essa ideia foi recentemente transmitida em grande escala no “War of the Planet of the Apes”, a terceira parte das prequelas rebeldes do clássico de Franklin J. Schaffner, em que uma misteriosa doença atinge os sobreviventes humanos do conflito com os símios sapientes, reduzindo-os a “selvagens”, explorando a hipótese de uma animalidade como erradicação do antropocentrismo. No entanto, entendemos que, mesmo ao romantizar/fabular esse desfecho, podemos extrair dele um reflexo da nossa contemporaneidade. 

Voltando ao “Le Règne Animal”, Thomas Cailley, que já havia conduzido a Humanidade (num contexto íntimo) ao seu próprio survivalismo com a primeira longa - “Les Combattants” (filme que revelou a atriz "desaparecida em combate" Adèle Haenel) - disfarça-se numa variação cine-apocalíptica, substituindo os subutilizados zombies e outros mortos-vivos numa epidemia que gradativamente converte humanos em bestas híbridas. A narrativa segue a ótica de uma relação entre pai e filho, sendo este último inadvertidamente portador da misteriosa patologia. Digamos que poderíamos antever o pior em “Le Règne Animal” se a sua produção fosse fruto dos estúdios americanos, previsivelmente preenchida com CGI à vontade ou embrenhada nos seus clichés para as grandes massas. 

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Ora, sendo uma produção francesa (leia-se europeia) e tecnicamente bem alicerçada, este cenário algo distópico relega-se para segundo plano, nunca ocultado, até porque a panóplia de criações antrozoológicas evoca ‘fantasmas’ da sua contemporaneidade [Covid, refugiados, populismo]. O resto é um drama familiar com algumas veias shyamalianas, nada formidável, nem vergonhosamente rejeitado. Porém, “Le Règne Animal” vale pela sua sugestão, pelas possibilidades, nunca cumpridas, de como pôr termo à nossa Humanidade de maneira orgânica. Uma contemplação sobre o retorno às reminiscências naturais que, ironicamente, sempre repudiamos no âmbito do nosso progresso, tudo isso no velcro de um “monster movie

Falando com Nuno Beato, dos "Os Demónios do meu Avô" à arte de "vender" animação à portuguesa

Hugo Gomes, 16.10.23

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Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

Após um episódio de burnout no seu escritório despoletado pela notícia da morte do seu avô (o homem que a criou), a citadina Rosa (com voz de Victoria Guerra) revisita o lugar onde a viu nascer, Vale de Sarronco. O que acaba por encontrar estava longe do que havia imaginado: uma terra seca, abandonada à malapata e amaldiçoada com a embruxada aridez. À medida que Rosa reside no seu austero refúgio, tentando resgatar e restaurar o seu inicial brilho, vai descobrindo a verdadeira natureza do homem que tanto amor lhe trouxe à sua vida. "Os Demónios do Meu Avô" é uma animação negra, de uma rugosa ruralidade e de uma vincada portugalidade, que se destacou como a primeira longa-metragem em stop-motion portuguesa, uma ambiciosa produção da "Sardinha em Lata", estúdio e produtora lisboeta dirigido por Nuno Beato, que também assume o cargo de realizador da obra.

O Cinematograficamente Falando... conversou [em setembro de 2022, em vésperas da sua estreia no festival MoteLX] com o realizador e produtor sobre a obra, ao som dos Gaiteiros de Lisboa, e os desafios que enfrentou no panorama nacional, especialmente no que diz respeito ao mercado, bem como à promoção do cinema de animação português, quer seja a “vender filmes” ou simplesmente dar a conhecer a nossa animação a um público que por vezes "olvida" da sua existência.

Começo esta conversa, por isso mesmo, pelo início, a génese, quer do projeto, quer da sua dedicação à animação?

Devo dizer que comecei como animador e tornei-me, rapidamente, num produtor, começando por realizar projetos muito pequenos. Posso garantir que a minha carreira está totalmente dedicada à animação. A minha maneira de pensar e o meu método, sem dúvida, estão profundamente ligados e encaixam-se perfeitamente nesse universo.

Quanto aos “Os Demónios do meu Avô”, a ideia original partiu dos vídeos na internet que ocasionalmente assistimos ou que nos são partilhados. Certo dia, deparei-me com um daqueles que demonstrava alguém numa súbita ira num escritório, atirando e partindo o computador, e, por fim, arrancando a impressora. Não vou negar que me diverti imenso com isso, mas depois comecei a refletir: "O que está por trás deste ato? Como é que se chega a este ponto? Porque é que alguém, com as condições que nós possuímos, vivendo em países privilegiados, se chega a este extremo? O que se passa? Por que não contar a história de alguém que se encontra neste ponto e entender a razão da sua desesperante raiva?" Foi por isso que decidi que o filme deveria começar sempre com essa questão em mente.

Portanto, o filme começa exatamente por essa ideia e conceito, como se fosse um vídeo online, o próprio vídeo. A minha ideia inicial surgiu aí. Mais tarde, durante o meu mestrado na Lusófona [Universidade], pude desenvolvê-la. Num dos cursos, foi-nos atribuída a tarefa de elaborar um tratamento para uma longa-metragem, e foi nessa altura que escrevi a história, que, na verdade, já estava bastante diferente naquela altura. Depois, a história ficou na gaveta por algum tempo, até que um dia decidi revisitá-la, questionando-me: porque não dar vida a isto? E foi assim que cheguei a este ponto.

E como é que chegou à aventurosa decisão da longa-metragem, e além disso, a opção pela estética do filme? Refiro obviamente ao stop motion.

Na verdade, desde que comecei a trabalhar em animação e me tornei produtor, sempre tive a ambição de dar um passo adiante na indústria do cinema, especialmente na área de animação a nível internacional. Em Portugal, tradicionalmente focamo-nos na produção de curtas-metragens, em parte devido ao financiamento disponível, principalmente através do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual). A animação concentrou-se, por conseguinte, em curtas-metragens, algum trabalho publicitário e projetos diversos, mas houve uma ausência relativa de produção comercial, entendendo como tal a produção de séries e longas-metragens que pudessem competir no mercado internacional.

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Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

Sempre vi-me não apenas como um realizador, mas também como um produtor de séries ou longas-metragens, e isso foi uma progressão natural na minha carreira. Há alguns anos, comecei a considerar essa possibilidade, e quando surgiu a oportunidade de um projeto, senti que era o momento certo para arriscar e mergulhar no mundo das longas-metragens.

Obviamente, isso aconteceu em parte devido a mudanças políticas, como o lançamento de um subsídio pelo ICA de um milhão de euros para longas-metragens, o que certamente deu um grande impulso ao nosso projeto e à realização dela. Tudo isto, em grande medida, resulta de uma estratégia política bem delineada. Quando existe uma estratégia e uma vontade [política], as ideias florescem, desenvolvem-se e ganham vida.

Quando estou a fazer um filme, costumo explorar técnicas diferentes e caminhos diversos. Para mim, a técnica deve sempre servir a narrativa e não o contrário. Procuro que a técnica seja uma aliada na forma de “contar a história”. O argumento passou por várias revisões, com a contribuição do Possidónio [Cachapa] e de outros argumentistas, incluindo a Cristina [Pinheiro], que é uma historiadora. Queria que a técnica usada complementasse a narrativa. A personagem principal viveu em dois mundos distintos, ou experimentou dois momentos da sua vida de maneiras muito diferentes. Tentei expressar isso esteticamente, inicialmente optando pelo 2D para a primeira parte do filme, porque Rosa está na cidade e afastada dos outros, do avô e até de si mesma. Usei cores mais frias e traços rígidos para transmitir essa distância. O espectador também sente essa distância no início do filme. 

Quando a história se desloca para o campo, a estética muda, tornando-se mais acolhedora. A presença da cerâmica do avô, inspirada nas peças de Barcelos e na obra de Rosa Ramalho, é evidente ao longo do filme. O nome da personagem, Rosa, também é uma homenagem a essa tradição cerâmica. O barro tem uma conotação importante no filme, e a água desempenha um papel fundamental na história, refletindo nas paisagens e na narrativa.

A textura e a estética do filme desempenham um papel essencial na narrativa, ajudando-nos a compreender o que está a ser contado. Esta abordagem resultou numa diferença marcante entre o stop motion e o 2D, e permitiu-nos destacar a natureza bruta do stop motion. Assim como as peças de Rosa Ramalho são um pouco rústicas, nunca quis que o stop motion fosse demasiado polido e perfeito. Optei por um estilo mais áspero, destacando as imperfeições naturais do stop motion.

Algo que, tematicamente, agradou-me o seu filme é o de fugir à lógica, diria, disnesca, da sagrada família. Ou seja, aqui, Rosa vai descobrir os “fantasmas” que o avô guardava secretamente, demonstrando uma faceta demasiada ambígua, ou cruel, vá. O que quero dizer é que o seu filme revela que não conhecemos verdadeiramente as pessoas que amamos, ou julgamos conhecer, uma ideia que vai contracorrente às produções animadas dirigidas ao público mais jovem.

Na verdade, sou um pouco contra o estereótipo maniqueísta do bem e do mal. Todos nós detemos um pouco de bondade e um pouco de maldade, e isso pode depender das fases da vida em que nos encontramos e dos momentos que atravessamos. Tento refletir isso nas minhas personagens. Não gosto de contar histórias com personagens estritamente boas ou más, porque acredito que a vida não é tão simplista. Como o nome do filme sugere - "Os Demónios do meu Avô" - os demônios que menciono frequentemente não são necessariamente demónios físicos, mas sim os obstáculos que criamos nas nossas mentes. O filme aborda a ideia de alimentarmos esses demónios internos e de como podemos mudar a partir de dentro, em vez de esperar que os outros mudem.

Além disso, o filme trata principalmente das relações humanas e de como podemos resolvê-las através de uma transformação interna. Tentei incorporar essas ideias na história de forma a que seja acessível a um público amplo. Evitei criar um filme demasiado alternativo, porque não era esse o meu objetivo. No entanto, também não busquei uma abordagem estritamente mainstream. Prefiro encontrar um meio termo, onde possa contar histórias de forma diferente, mas que ainda sejam atraentes para o público em geral. O público é essencial para mim. Sinto-me frustrado se não conseguir alcançar um público mais amplo e se a minha história ficar restrita a um nicho dentro do cinema.

No que diz respeito à classificação do filme, é um desafio definir com precisão onde ele se encaixa. A animação muitas vezes é associada ao público infantil, mas aqueles que trabalham no campo da animação procuram demonstrar que pode ser apreciada por todas as idades e que existem produções voltadas para diferentes públicos-alvos. Este filme, apesar da história mais adulta, foi concebido tendo em mente o mercado e o desejo de chegar a uma audiência diversificada. Dado que, em muitos países, incluindo Portugal, o mercado de animação não infantil é praticamente inexistente, tive o cuidado de incluir elementos que podem ser apreciados tanto por crianças como também por adultos. A narrativa tem camadas que permitem que as crianças a entendam de uma forma mais simples, enquanto os adultos podem extrair significados mais profundos. Acredito que é uma história que pode funcionar bem para toda a família.

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Algumas marionetas usadas no filme "Os Demónios do Meu Avô" (Nuno Beato, 2022)

Durante o decorrer do Festival Guiões, Carlos Saldanha, o realizador de animações como “Ice Age” e “Rio”, afirmou em masterclass, que o segredo para escrever uma boa animação infantil é de nunca escrevê-la exclusivamente para esse público.  

Talvez. Possivelmente já abordamos isso de forma bastante natural. Acredito que também existem diferenças nas abordagens entre a Europa e os Estados Unidos. Carlos Saldanha, embora seja brasileiro, trabalhou nos Estados Unidos durante um longo período. Para concluir, quando me refiro ao mercado americano, o Brasil pode ser uma boa adaptação. No entanto, quando atravessamos o Atlântico, percebemos que a maneira de encarar o cinema é um pouco diferente. Lá, estão mais alinhados com o estereótipo descrito do cinema americano, que é uma força impressionante. 

Aqui na Europa, mesmo assim, conseguimos buscar outras influências. Acredito que isso não deve ser encarado como uma barreira na forma de pensar. Ou seja, ainda não estamos condicionados a pensar em cinema de animação apenas para crianças. Essa mentalidade não está tão arraigada, até porque, ao longo dos anos, a produção de longas-metragens e até mesmo de curtas-metragens para crianças não foi muito explorada em Portugal. É mais o oposto; muitas vezes, precisamos recorrer a produções estrangeiras para atender às necessidades do público infantil.

Mas já que falamos desse mercado e com a intenção de lançar "Os Demónios do Meu Avô" no circuito comercial, e visto estar presente na programação do Motelx [em 2022], um festival dedicado ao género do terror, não tem receio dos medos que o mercado português possa suscitar. A questão que se coloca, ao entrar nesta vertente, não é apenas a perspetiva de realizador, mas também a de como se pode vender um filme como este?

Sem dúvida, é um risco. Apenas podemos nos dar ao luxo de assumir esses riscos graças ao financiamento público. Se dependêssemos de financiamento privado, seria muito difícil concretizar um projeto como este. No entanto, acredito que é para isso que serve o financiamento público: permitir que projetos inovadores vejam a luz do dia, projetos que talvez nunca fossem viáveis com financiamento privado. Claro, é essencial que esses projetos funcionem e conquistem o público.

Desafiar o público é sempre um caminho arriscado, porque as audiências estão muito acostumadas a filmes de animação cômicos, mesmo que não sejam necessariamente infantis. Filmes humorísticos costumam ter sucesso. Apresentar um filme de animação em Portugal, no mercado local, que não se encaixe no estereótipo ao qual o público está acostumado, é um desafio significativo. O receio de não conseguir atrair o público é real, especialmente quando se trata de um produto que não se enquadra na norma que estamos acostumados a ver. No entanto, a história foi concebida de forma a ser acessível ao público, embora desafie de alguma forma. Acredito que ela tem um lado original que, se as pessoas a assistirem, poderá ser apreciado.

Falo desta questão tendo como exemplo "Ma Vie de Courgette" de Claude Barras, que, para além da partilha do estilo de stop motion, apresenta uma história adulta que não conseguiu ter expressão no nosso mercado. 

É muito bom esse filme. Mas é verdade que a nível internacional acabou por ter bons resultados.

Isto pode ser uma questão óbvia, mas tem aspirações internacionais com o seu filme?

Sem dúvida, é importante pensar no cinema em Portugal a um nível internacional. Embora o mercado português seja relevante e interessante para mim, um filme com um orçamento de 3 milhões de dólares não pode ser pensado apenas com o objetivo de ter sucesso em Portugal, na Península Ibérica ou na Rússia. Precisamos considerar um filme que funcione a nível internacional. Se eu optasse por fazer um filme que seguisse a fórmula da Disney, não estaria competindo em igualdade de condições com uma empresa que é muito experiente nesse tipo de produção. Além disso, comparando um orçamento de 3 milhões com um orçamento de 100 a 200 milhões, seria impossível alcançar os mesmos resultados.

A única maneira de competir internacionalmente é com um produto que se destaque pela sua singularidade. Pode ser um produto que tenha características portuguesas, mas que seja contado de uma maneira que tente alcançar um público amplo, não se limitando a um público intelectual, por exemplo. Acredito que este é o caminho viável para Portugal no contexto do cinema internacional. Se conseguirmos obter reconhecimento internacional, isso acabará por beneficiar Portugal. No entanto, não podemos conceber o produto apenas para o mercado português. É essencial pensar em termos internacionais ao desenvolver um produto, seja um filme, uma série ou, neste caso, "Os Demónios do meu Avô". O objetivo deve ser criar algo que funcione em escala global. Claro, há considerações a fazer para entrar em mercados públicos, como a necessidade de garantir que o filme tenha um apelo mais amplo, sem ser catalogado apenas como um filme para adultos. Isso requer atenção cuidadosa no roteiro e na realização do filme.

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Nuno Beato / Foto.: Femma / Philippe Lebruman

Fica a pergunta da praxe para animações stop motion, fale-nos do processo e do tempo do processo [risos]?

Tivemos um ano de filmagens. Durante esse período, estávamos trabalhando simultaneamente com stop motion e 3D, com a colaboração de uma equipa que incluía Portugal, França e Espanha. Na maior parte do tempo, tínhamos seis animadores a trabalhar. Cada animador, quando atingíamos um bom ritmo, conseguia uma média de, aproximadamente, 100 fotogramas por dia, o que equivale a cerca de 4 segundos de animação por dia, por animador. É apesar de tudo uma média muito produtiva.

Trabalhávamos com 12 sets montados simultaneamente, o que é um número considerável. Era um processo intenso, quase como filmar uma telenovela, com vários sets em funcionamento ao mesmo tempo. Foram dois anos de trabalho intenso, especialmente durante o último ano das filmagens. Tivemos uma equipa relativamente grande para os padrões portugueses, e contamos com a contribuição de algumas pessoas de fora, principalmente devido a coproduções. Em Portugal, não temos profissionais em número suficiente para atender a esse tipo de produção, pelo menos nas cenas que exigem um maior número de recursos.

Você mencionou que já produziu alguns filmes, em colaboração com José Miguel Ribeiro, e gostaria de saber como vê a animação em Portugal. Há nomes internacionalmente conhecidos, como Regina Pessoa, Abi Feijó, e Laura Gonçalves, que estão a conquistar reconhecimento no exterior. Por outro lado, parece haver um certo desprezo geral, especialmente na comunidade cinematográfica e na imprensa, em relação à animação portuguesa.

Acredito que a animação, assim como muitos outros setores no nosso país, frequentemente depende do reconhecimento internacional para ganhar destaque. Isso é algo comum em Portugal, não apenas na animação, mas em várias áreas. A questão que eu sinto que é mais premente é a necessidade de alcançar o público. Enquanto podemos ganhar prémios de "Melhor Filme" em festivais internacionais, e Portugal já conquistou vários prémios e fez um trabalho notável, especialmente em curtas-metragens, o verdadeiro desafio é chegar ao público em geral. Porquê? Porque, em grande parte, essa animação não é um produto comercial. Quando digo isto, não estou a falar da qualidade do produto em si, mas sim do facto de não ser um produto com um objetivo comercial, ou seja, um produto destinado a mercados de vendas.

Quando conseguirmos produzir produtos comerciais, as pessoas começarão a conhecer melhor a animação portuguesa. Penso que toda a gente conhece "Os Patinhos" [risos], que é uma animação portuguesa, ou reconhecer "A Ilha das Cores", e esses produtos que chegam à televisão e a públicos mais vastos contribuem para um maior reconhecimento e valorização. Uma vez que o público conhece e tem acesso, a animação portuguesa começa a ganhar mais valor.

O que falta, às vezes, é essa chegada ao público, que só é possível ao entrar no mercado comercial. Penso que é o que nos falta. Temos a capacidade, temos talento, temos estúdios (embora ainda em número limitado), temos formação. No entanto, o crescimento do mercado tem sido lento ao longo dos anos. Isso está relacionado com a vontade e o apoio, e mais uma vez, isso envolve a vontade política. Quando houver um compromisso e apoio direcionado para transformar a animação num setor industrial, tal como ocorreu na Irlanda, visando tornar-se um mercado exportador, acredito que a situação mudará. Precisamos mudar de paradigma e obter uma escala maior. É isso que nos falta.

Imagino o porquê de qualquer jovem ir para uma escola de cinema, tirar a licenciatura de animação e querer logo trabalhar fora, numa Pixar, por exemplo.

Neste momento, posso afirmar que em Portugal não temos espaço para acomodar todas as pessoas que estão a ser formadas na área. Muitos dos formados irão, sem dúvida, buscar oportunidades no mercado internacional. Isso não é necessariamente negativo, pois hoje em dia a abertura de fronteiras é simbiótica. Muitas dessas pessoas podem passar alguns anos no estrangeiro, adquirir experiência e, eventualmente, regressar com projetos e parcerias com produtores. Portanto, essa mobilidade não deve ser vista como nefasta.

No entanto, a continuidade na área é de facto um desafio, pois a animação é ainda um campo um pouco precário em Portugal. É uma luta constante para conseguirmos sustentar-nos nas artes, fazendo o que amamos, apesar das adversidades. 

Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

E é devido a essa abertura de fronteiras, que a nível internacional, existem cada vez mais filmes de animação.

O mercado da animação tem crescido. Este setor experimentou um crescimento notável com o advento das novas plataformas. Embora as salas de cinema tenham registado uma diminuição de público, a visualização de conteúdos animados aumentou significativamente. A forma de comercialização pode ter mudado, mas o consumo de produtos de animação continua a crescer, e isso é uma tendência crescente. 

Voltando ao holofote, ou a falta dele, na animação portuguesa. O Fernando Galrito [diretor artístico e programador] costumava dizer que, durante o Festival Monstra [o qual dirige e programa], uma parte significativa da imprensa a negligenciava. Parecia que ninguém se importava com isso. E que também os críticos de cinema não têm conhecimento da animação portuguesa e, na verdade, não estão interessados, conforme ele constantemente mencionava. Se o cinema português já é considerado um nicho, a animação é ainda mais marginalizada...

Lá está, isto vai ao encontro do mesmo. Enquanto na imagem real os atores são conhecidos, aparecem na televisão, nas telenovelas, e por isso existe um mercado paralelo - existe o cinema e existe o mercado industrial - na animação, não. Portanto, nós não temos o outro lado. E essa distância para com o público não ajuda. 

Ter atores conhecidos, como Nuno Lopes e Victoria Guerra, associados aos filmes de animação é algo que já vimos noutros contextos e que ajuda a familiarizar o público. Isso, por si só, é uma porta de entrada para chegar ao público. Claro, sei que, mesmo assim, o público pode estar um pouco distante do cinema português, mas, pelo menos, essas associações ajudam a atrair a atenção da imprensa e outros públicos. Essas estratégias são muito úteis. Na animação, infelizmente, não temos essa tradição e é muitas vezes considerada um nicho.

Não é só em Portugal, mas também a nível internacional a animação acaba por ter um peso menor na imprensa em comparação com a indústria do cinema real. Isso é uma realidade.

 

O filme será exibido no 8º episódio do Close-Up: Observatório do Cinema de Famalicão, ver programação aqui

Cresce e aparece! Close-Up recorda infâncias e adolescências na sua 8ª edição

Hugo Gomes, 12.10.23

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O tema pode ser "Infância e Adolescência", mas, ao contrário do que indica, o Close-Up está bem "crescido" nesta 8ª edição. A decorrer de 14 a 21 de outubro na Casa de Artes de Famalicão, o Observatório de Cinema apresenta-nos mais uma galeria cinematográfica que orbita em torno desse território familiar, expandindo-se para eventos e diálogos, novamente pontuados com convidados de honra para enriquecer as sessões, concertos, leituras e sobretudo, amor pelas imagens, digamos, e à boa maneira, um amor bem "adolescente". Sobre a programação, ninguém melhor do que o programador, Vítor Ribeiro, para nos falar dela. Através deste convite do Cinematograficamente Falando ... chega-nos um teaser para este tão esperado "coming-of-age".

Gosto de pensar no Close-Up como algo animado, com vida própria, aproveitando os seus temas, títulos digamos assim, que fortalecem essa imaginada existência. Depois da viagem, o Observatório de Cinema assentou, constituiu família e agora recomeça sob o mote da Infância e Adolescência. Gostaria que me falasse do tema e de que forma enquadra-se na mostra deste anos, e já agora, sem querer revelar os ‘segredos’, como funciona a escolha destes temas, se esta narrativa é só da minha parte ou existe mesmo intenção de dar vida própria ao Close-Up?

Sim, a tua abordagem é correcta: há uma tendência dos motes se entrelaçarem com os anteriores, como se fossem sequelas de um filme que começamos a rodar em Outubro de 2016. O tema Infância e Juventude esteve no Close-up desde a primeira edição, inicialmente como secção. O cinema ao longo da sua história sempre integrou esta temática e permitiu apresentar olhares complexos sobre um dos períodos mais desafiantes da nossa existência, em que em simultâneo nos desafiamos na conquista da autonomia, enquanto assistimos à transformação do nosso corpo e das tensões que isso provoca com o contexto familiar e social. Curiosamente, nos últimos anos estrearam vários filmes de autores que trabalham esta temática, em que destacamos Jonas Carpignano, do qual exibiremos “A Chiara, o que permite uma boa mescla com filmes de autores importantes da história do cinema que revelaram habilidades particulares a lidar com a infância e juventude, como Abbas Kiarostami ou Maurice Pialat.    

É difícil falar de Infância no Cinema sem sequer mencionar o trabalho de Abbas Kiarostami, evidentemente o santo padroeiro do “Close-Up”, na programação o escolhido para representar essa filmografia é “Onde Fica a Casa do Meu Amigo” (“Where Is the Friend’s House?”, 1987). Sabendo que Kiarostami tem vasta obra sobre infância, crescimentos e até mesmo escolaridades, como recaiu a escolha deste determinado filme?

Onde Fica a Casa do Meu Amigo” é um filme muito importante dentro deste tema e também quando se olha para a obra de Kiarostami. Por um lado, não é possível fazer uma genealogia de um cinema sobre a infância sem incluir este filme, sem pensarmos nesta criança, em Ahmed, e na sua jornada para cumprir a missão de devolver o caderno do amigo. Uma criança que conquista a autonomia a pulso, que percorre uma larga distância num território difícil, analogia também de um regime político opressivo, o do Irão. É também o filme que abre a Trilogia do Terramoto, que permitiu a Kiarostami começar a desenhar a estrada da sua filmografia com a descoberta do seu cinema na Europa, premiado com o Leopardo de Ouro em Locarno

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História Trágica com Final Feliz (Regina Pessoa, 2005)

Reparei que esta edição seja provavelmente das que menos acompanha a “espuma dos dias” em relação aos filmes, temos este ano uma programação que reúne, não só Kiarostami de ‘87, mas como também John Cassavetes, Glauber Rocha, Maurice Pialat e a obra-prima de Vittorio de Sica [“Ladri di Biciclette”].  

O programa do Close-up procura sempre o cruzamento entre cinema do presente e história do cinema, na concepção de que o desenho de uma programação pode acrescentar importância e singularidade a cada um desses filmes, que assim conversam uns com os outros. Se há algo que define o cinema é a sua capacidade de incutir memórias, de as transmitir entre gerações. Procuramos aproveitar um crescente e positivo movimento na distribuição, na disponibilidade de títulos da história do cinema com obras restauradas digitalizadas. E procuramos retirar peso à ideia de história do cinema, e fazê-la chegar aos vários públicos, incluindo a população escolar, na exibição de “Ladrões de Bicicletas”, que para além de se constituir como um objeto incontornável do neorrealismo, é também uma narrativa sem tempo, uma história universal, a relação entre um pai e um filho. Quando juntamos Cassavetes a Glauber Rocha, procuramos um diálogo possível, estabelecido numa barra temporal, mas também num discurso e num conjunto de ascendências comuns a estes dois cineastas. 

O que me pode dizer sobre os convidados deste ano, e do foco da animação portuguesa (especialmente a retrospectiva a Regina Pessoa) neste Close-Up.

Na secção Fantasia Lusitana procuramos distinguir um cineasta ou uma corrente singular do cinema português. Num ano em que se assinala o centenário da animação portuguesa, Regina Pessoa foi a escolha imediata para esta edição. O percurso premiadíssimo dos seus filmes não é suficiente para definir a importância de uma obra dentro do cinema de animação, que estabelecerá por certo uma influência nas próximas gerações. Regina Pessoa convoca para o seu trabalho um conjunto de temas, arriscaria obsessões, que a tornam uma artista única e que deve ser vista também fora dos festivais de animação e por vários públicos, incluindo o escolar e quem está a aprender a trabalhar com imagens, animadas ou outras. 

Este ano temos Paul Schrader e terror à portuguesa, mas em leitura. Pergunto desta forma, cinicamente ingênuo, o Cinema também se lê?

Os livros começaram a aparecer naturalmente no programa do Close-up, quando criamos a rubrica Café Kiarostami, que permite desenhar tangentes com a sala de cinema, através de outras disciplinas. Os livros sobre cinema são um contributo indispensável para uma relação privilegiada com o cinema, no âmbito da crítica ou da estética. Os exemplos desta edição ajudam a esclarecer as nossas motivações. O livro do Paul Schrader – “O Estilo Transcendental no Cinema”– auxilia a relação com um dos autores importantes do cinema americano, primeiro como guionista e cronistas dos anos setenta, para depois se impor como realizador, um autor que mantém a sua relevância no presente. O caso da edição de “O Quarto Perdido do Motelx", ajuda a descobrir filmes e autores do cinema português, com várias vozes que nos orientam nesse labirinto. 

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Where Is the Friend’s House? (Abbas Kiarostami, 1987)

40 Anos de Sétima Legião … Comemoração, ou urgência de reavivar a banda de sucesso, hoje, digamos, muito discreta?

Um dos destaques de cada edição do Close-up são os cruzamentos artísticos, principalmente entre cinema e música, que conduziu em anos anteriores a respostas a encomendas da Casa das Artes que resultaram em filmes-concerto em estreia por Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Mão Morta ou Orquestra Jazz de Matosinhos. É uma forma, também, de dialogar com a história do cinema, que foi o que proporcionou esta relação com a Sétima Legião, com quem queríamos há muito colaborar. Esta apresentação da Sétima Legião abrirá com a música em diálogo com “Um Tesoiro” (1958), uma curta-metragem de António Campos, um autor com quem a Sétima Legião encontrou fortes afinidades temáticas neste trabalho conjunto. O concerto que se seguirá, celebrará de forma viva quarenta anos de canções, de uma das bandas que melhor preenche o património das nossas memórias.  

Tendo em conta o percurso do Close-Up, para o ano estará a viver os primeiros romances?

Daria um bom mote. Mas para o episódio 9 ainda não o definimos, até porque ainda estamos a pensar nas réplicas do episódio 8, três momentos de programação (Janeiro, Março e Maio) onde voltaremos ao tema Infância e Juventude, e às obras de John Cassavetes e Glauber Rocha. O mote de cada edição, além dessa preocupação de se relacionar com as edições anteriores, depende em grande medida dos filmes e dos autores que queremos mostrar e associar. Como um bom treinador, que define a sua equipa não tanto através da obsessão de cumprir uma táctica ou um sistema, mas antes na preocupação de colocar em campo os melhores jogadores.

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De tripas de fora, o meu coração transforma ...

Hugo Gomes, 19.09.23

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Em coro, noticiamos um filme que se impõe numa vertente fabulista. Uma dívida de carne cometida por uma mãe vitimada pelas ameaças de uma “comedora de lobos”, criatura nefasta que se metamorfoseia em tudo o que mata, e que, num determinado dia, 'invade' o seu domicílio. O preço era a criança que segurava nos seus braços sob o olhar aterrorizado da progenitora, um pacto de sangue feito e cumprido… quer dizer, nunca chegando a esse propósito, visto que a criança, uma menina, é posteriormente mantida em segredo numa gruta, longe dos olhares humanos e sob a proteção da natureza perante aquela semi-bruxa disfarçada. 

Dezasseis anos passaram, a menina cresceu numa bela jovem (Sara Klimoska), animalesca como seria de esperar pelo incompreendido exílio, desconhecendo o mundo para além daquelas paredes cavernosas, a galeria rochosa que recebiam ocasionalmente a sua mãe, agora mulher obsessivamente paranoica. A fortaleza é previsivelmente 'desfeita' pelo pico da maioridade, a 'criatura' que há mais de uma década prometeu recolher o seu “prémio", chega sob a forma de uma rapina, atenta e astuta. A jovem é então “libertada” da sua progenitora biológica e adotada como cria desta figura-bruxedo, ensinando a morte como quotidiano e o isolamento como regra de ouro para a sua subsistência, e como recompensa, a transformação como parte do seu desígnio. Durante dezasseis anos a gruta foi tudo o que ela conhecera, a sua Caverna de Platão, agora a sobre-informação deste novo ambiente a leva ao extremo da curiosidade, ao incompreensível e nesse signo, a sua 'infiltração' na comunidade humana. 

Através destes golpes e apropriações identitárias e corporais, visto que é parte da visceral matança que a agora criatura assume a forma da sua presa, a protagonista vai incorporando lições de género naquele simplório estatuto social. Primeiro a mulher - aqui Noomi Rapace bailando nos ritmos da loucura numa liberdade performativa impressionante - assumindo a sua opressiva forma de ser, ordenada às lides caseiras e maternais, contando com a comoção de outras mulheres e a objetificação do seu bruto marido. Mais tarde, o homem - Carloto Cotta, no seu estado delirantemente natural - gozando de um poder imenso posicionado na sua genitália e igualmente esmagado pela pressão do patriarcado, o qual afigura. E, por fim, a criança, o crescimento e o ritmo fluidamente natural com que parte, é através desta perspetiva que o equilíbrio dos seus anos perdidos, aqueles remotamente figurados na fortaleza natural enquanto berço de dezasseis anos. 

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"You Won't Be Alone" (co-produção australiana, inglesa e sérvia) é, usufruindo do seu folclore macedónico, uma reflexão à Humanidade, repartida nos seus valores sociais, identitários e de género. O que valida ser humano? Goran Stolevski dirigiu e escreveu este tratado no seu território fantástico, violentíssimo reconto das infraestruturas humanas que intensifica enquanto filosofar vivente (não há absolutismos, só dúvidas gerando mais dúvidas), porém, aquilo que foi aqui descrito poderá abrir o apetite a recém-visitantes, só que a execução é preguiçosamente encostada a um efeito autoral miope, ou seja, o filme segue o registo malickiano (ou maliquices taradas); voz-off, sequências desconectas e longínquas de um natural raccord, a quasi-ausência de diálogos entre personagens, subserviente à tese ao invés da ação. É uma viagem com princípio na lenda e com percurso agreste naquilo que a autoralidade é confundida, neste caso, a noção autoral (apesar de tudo, uma tendência tão americanizada) de um Malick emprenhado e embelezado. Chamemos um exorcista para expulsar tal espírito malevolente!

Uma pena, que perante estas escolhas artístico-narrativas se sacrifique uma 'criança' com bastante potencial. Daqueles exercícios que preenchem teorias, só que desengonçados na sua prática.

"A Semente do Mal": entre manos e manias, é tudo família ...

Hugo Gomes, 16.09.23

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Parece novela, mas dois gémeos se encontram passados 30 anos, separados devido a circunstâncias misteriosas. Edward (Carloto Cotta) parte de Nova Iorque à descoberta do que resta da sua família, possível graças a um teste de DNA oferecido pela sua namorada, Riley (Brigette Lindy-Paine), cujo resultado o conduz para Portugal, mais precisamente para um casarão 'perdido' no meio da floresta transmontana, onde reside o seu “perdido” irmão (novamente Cotta) e a sua desfigurada mãe (Alba Baptista / Anabela Moreira). Um reencontro há muito esperado que desvendará alguns segredos macabros e perversos.

Ora, como é possível verificar, é Carloto Cotta a dobrar num prometido regresso de Gabriel Abrantes à longa-metragem (cinco anos depois de “Diamantino”), resultando numa produção competentíssima, aliás, das mais universalmente competentes no que se refere às nossas 'aventuras' pelo género... isto, falando num senso comum de mercado. E é aí que “A Semente do Mal” (“Amelia’s Children” para os ‘amigos’ gringos) mais falha, o de não conseguir prosseguir enquanto exercício personalizado, visto que é o nome Gabriel Abrantes a surgir nos créditos. É Abrantes, sim, como poderia ser outro qualquer 'sujeito' e o resultado seria o mesmo: num profissionalismo embrulhado em semiótica reconhecível e pior que isso... algo que não perdoo nesta “altura do campeonato”... o uso fácil dos jumpscares, isso, ao invés da aposta atmosférica (sendo o material frutífero para tal e muito mais). Onde se nota o cobiçado 'toque-abrantes' em todo este cenário é na tecnologia enquanto alavanca narrativa, neste caso o mecanismo e a respetiva aplicação de DNA, a possibilidade e a impossibilidade unidas em futurismos como mandou parte do cinema do realizador (aqui menos delirante e mais propenso a montar um filme de terror seguindo as instruções de um manual).

Talvez esteja a ser injusto, ou até incapaz de gerir desilusão perante uma pintura assinada por Gabriel Abrantes. Este "cruzamento" entre "Suspiria" (o último ato leva-nos a esse território) e "X" de Ti West vai agradar 'gente', mas é um caso “Rabo de Peixe” da Netflix, não detém expressão, simplesmente confunde-se com o habitual.

Portugalidades em movimento

Hugo Gomes, 16.06.23

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Um ambicioso projeto da produtora/estúdio 'Sardinha em Lata' que enriquece esse universo tão pouco falado entre nós, a nossa animação portuguesa. Deveríamos declará-lo como um género à parte, mas fiquemos com as proezas, neste caso com “Os Demónios do Meu Avô”, a nossa primeira longa-metragem em stop-motion, arte resolvida com muita persistência (e paciência), aqui entendida com muita 'portugalidade'

Mas vamos por partes, após a 'propaganda' do seu estilo, o espectador poderá entrar desiludido por um início computadorizado, onde somos acolhidos pela protagonista, Rosa (Victoria Guerra), uma citadina workaholic e deveras solitária (sem admitir tal), que decide partir em direção às suas raízes após a notícia da morte do seu avô, que a criou, e que gradualmente se afastou, e um descambar da sua 'aparente' e sonhada vida. De volta à ruralidade, tenta vender a casa albergante das suas memórias de infância, sem antes a tentar reconstruir e solucionar o problema de água existente no Vale de Sarronco - uma maldição segundo a crença dos habitantes e vizinhos do falecido parente, um agouro trazido por demónios e outras criaturas nefastas. Na transição da animação digital para o stop-motion (como uma espécie de salto a duas dimensões opostas - urbana e rural), o barro em abundância acrescenta uma rugosidade rústica e austeridade que posicionam aquele meio proto-transmontano numa espécie de falso-faroeste com caretos e parentescos. 

Digamos que é um estilo artesanal de inegável identidade portuguesa na sua alma, tradicionalmente guiado por essa identidade folclórica, cujas criaturas são abstrações dessas lendas oriundas de regiões remotas e do resquício pagão. De estética maneirista, aliando-se à sua sonoridade, desde o trabalho vocal dos atores até à banda sonora rompante composta pelo alarido folclórico dito transmontano, enraizado em gaitas-de-foles, bombos ou sanfonas (da autoria de Carlos Guerreiro e Manuel Riveiro, em colaboração com os Gaiteiros de Lisboa), que conectam a narrativa com a sua aura ancestral e fantástica, “Os Demónios do Meu Avô” é um mimo técnico (e não devendo limitá-lo a uma condescendência nacional) luso-fabulista para deleite do espectador. Já no seu argumento, a narrativa afasta-se da batida ternura imposta por uma Disney ou dos estúdios mainstream, aqui, a ambiguidade é o motor reconhecível, sem perdões epifânicos, de igual forma que nunca romantiza os habitantes rurais, retirando-os do estereótipo de 'humildade imperativa a seu estatuto precário', em voga desde regimes passados. 

O grande senão da animação de Nuno Beato é a sua abstrata noção de tempo, difusa e empapada em um ritmo acelerado (também, convém afirmar os recursos da animação, dispendiosos aos diferentes níveis, humanos, monetários e produtivos). Nesse termo, “Nayola” de João Miguel Ribeiro joga em melhor posição.

Mais que canibalismos ...

Hugo Gomes, 29.12.22

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Ruggero Deodato

Foi num banco de jardim em frente ao Cinema de São Jorge, no qual tive a oportunidade de conhecer Ruggero Deodato, no meio dos festejos do MOTELx o qual se sintetizava como o ilustre “Mestre Vivo”, em 2016. 

Era uma “entrevista às três pancadas” arranjada pela equipa de comunicação do festival, mas curiosamente foi através daquele acaso, improvisado momento, que tornou-se especial, uma conversa maioritariamente educada numa noite amena que só o início de setembro consegue-nos dar. Lá estava eu, ao lado do meu colega Roni Nunes (ambos cobrindo o festival para o site C7nema) questionando o realizador por vias de trivialidades, até que num ato de fúria, insurge-se perante as comparações a Umberto Lenzi, conterrâneo seu também "especializado" em exploitation canibal (“Ma che cazzo, sempre Umberto Lenzi! Ma per che? Non posso piú!”). 

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Ruggero Deodato na rodagem de "Cannibal Holocaust" (1980)

Para Deodato, "Cannibal Holocaust”, a sua “obra-prima”, o seu filme-currículo, era mais que um objeto de selvajaria, era um choque entre o civilizado e o silvestre, e portanto, a questão permanente sobre o verdadeiro “bárbaro”? O nativo da floresta tropical ou o índio da selva de asfalto? São pertinências que pouco se atribuem a Deodato, salientando o preconceito em relação a um género e a um estilo, mas a verdade é que o seu filme, brutal e visceral (até hoje motivo de polémica pela crueldade animal, mantida no corte final), é uma comichão àquilo a que tornamos. Civilizados só de nome, somos mais selvagens que os próprios “selvagens”, porque aprendemos a destruir e a viver da destruição, e mais que isso a venerar essa mesma destruição. Narrativamente ou fora dela, “Holocausto Canibal” parte do pressuposto horror para nos aliciar a olhar, como um atrativo circense, e indignados ficamos no final da jornada dirigindo agressivamente ao realizador, porém o espelho está voltado a nós, não fomos obrigados apenas tentados ao apelativo engate dessa sedenta - Horror. 

Ruggero Deodato viu o pior de nós e disso fez uma obra. Hoje, tal criação concentra-se como uma Caixa de Pandora, como se a raiz desse mal residisse num mero “objeto” (neste caso filme). Talvez sentimo-nos melhores por isso, enganosamente melhores.

Ruggero Deodato (1939 - 2022)

Dario Argento sonha com as vitórias passadas ... "cegou-se" entretanto

Hugo Gomes, 09.09.22

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Talvez haja neste frenesim memorialista uma lição a reter; a de que movimentos, estéticas ou até fórmulas não estão impunes ao seu devido prazo de validação. 

No caso do cineasta - vulgo “maestro”, autor que nos envolveu em pesadelos em tons de carmim com o tão famoso “Suspiria” (1977), e  antes disso, recolocando o “giallo” [esse “maldito” produto B do cinema de género made in Italia], num laboratório de engenhosidades e de releituras [“The Bird with the Crystal Plumage”, “Deep Red”, são alguns dos exemplos] - não terá os seus tempos de glória facilmente restaurados por vias da reprodução dos mesmos elementos.  Talvez a adesão ao universo deste “Dark Glasses” diga mais sobre o espectador em questão do que propriamente ao filme, uma colectânea de velhos êxito iludindo-nos a um sintoma de saudade e com isso uma negação aos passos de progressão do seu género. Argento pode ter tido aqui a sua relevante obra em relação aos seus últimos anos de actividade e de ausência (contam-se 10 anos desde o imperdoável “Dracula 3D”), o que não impede de resultar num soco triunfante no vazio, pensando na vitória, mas subjugado à estratégia vencida pelo tempo. 

Entrando assim neste “giallo” resiliente, acompanhamos uma prostituta - Diana (Ilenia Pastorelli) - que ao tentar escapar de um serial-killer sofre um terrível acidente que a deixa cega. Envolvida num mundo de escuridão, literalmente, converte-se numa vítima e igualmente testemunha de um assassino a mote, desconhecido que persiste em persegui-la, aproveitando a sua “nova” fragilidade para a receber através do medo. “Dark Glasses” opera nessa totalidade de nadas, como óculos escuros, mencionados enquanto protetores de uma visão inexistente, não sendo mais que sinalizadores de uma “anomalia”. Aqui, é a protagonista que assume exatamente essa mesma função, localizar e simultaneamente “ofuscar” tais "deformidades", é nela, enquanto corpo, que evidenciamos o fruto de tentação de Argento, enquanto a sua filha, Asia, ressurge em plano secundário como tutora para essa tocha de perversão criativa.

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O realizador implementa (mais uma vez) a sua fantasia, a sensualidade fetichista com que recolhe a violência (uma sequência de cobras-de-água a adquirir um tom de gratuito bondage), e o faz em nome dos tempos dissipados. O filme parece envolver-se nesse coito com os elementos reconhecidos, saltitando em preliminares dedicados e terminando na previsibilidade do seu coito (existe também uma perda de consequência neste turbilhão, deixando claro que Argento assume, ainda mais, a sua obsessão). O mesmo parece acontecer com a música de Arnaud Rebotini, progressiva e psicadélica, bem ao seu gosto, não mais que uma variação às reconhecíveis cumplicidades com a banda “Goblin” (e umas "pitadinhas" de John Carpenter, se a minha audição não enganar). 

Ou seja, poderíamos andar aqui a petiscar e a saborear neste buffet de suspiros e fenómenos à mercê da recordação, mas o resultado é isso, não desprezando o nosso maestro perante tão simplista diagnóstico. Enfim, Argento não esquece, de maneira alguma, o passado (porquê? Visto que as memórias eram louros e ouro), porém, poderia o fazê-lo sem “olvidar” que fora um artista de um giallo em mutação. Agora, a necessitar de renovação.    

O canto das mulheres embruxadas e dos homens ridículos

Hugo Gomes, 21.08.22

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As bruxas do leste na óptica de Tereza Nvotová (“Filthy”) não são mais do que vítimas de um prolongado e intrínseco Patriarcado, essa palavra instigadora das mais polarizadas facções; de um lado motivando um ativismo feminista e de desconstrução social, do outro provocando a quem não encara a “culpa masculina” como repertório extendido. Porém, a realizadora declara que na sua segunda longa-metragem - “Nightsiren” (vencedor do Leopardo de Ouro de Locarno, na secção "Cineastas do Presente")- o objetivo não é o de executar um enésimo statement, e sim “resgatar” os negros tempos de bruxarias e lançá-las a uma “fogueira” de reflexão quanto a um obscurismo hoje duradouro.

Tal como o cartão que abre o filme, a supersticiosidade ainda compõem quotidianos nos países do leste (neste caso a Eslováquia), levando todos os indivíduos, seja de género for, a serem reduzidos a peças numa maquinaria de opressão e de culto masculino. “Nightsiren” ostenta esse lado de cenário sociopolítico enquanto testemunhamos uma jovem retornada ao seu local de origem, cujo um conjunto de traumas (sejam de infância, sejam na sua suposta fase de emancipação) a perseguem, induzindo-a a uma investigação própria. Ao longo da sua jornada, por vezes impactadas com “visitas de fantasmas do Natal Passado” acaba por ceder a uma “teia” de misticismo e de misoginia entranhada.

Facilmente poderia-se insinuar a citação de um registo folk horror, ou dos ambientes atmosféricos que fizeram “The VVitch: A New-England Folktale” de Robert Eggers (por exemplo) no sucesso de culto hoje descrito, porém Nvotová não se interessa em trabalhar atmosferas (mesmo que aquelas sequências florestais apelem a um outro filme, daqueles habitáveis no esoterismo sexual e no xamânico, fazendo uso carnal e orgástico da fotografia de Federico Cesca) e sim na introspecção da sua protagonista (Natalia Germani) e no choque com uma comunidade sistematicamente medievalista.

Portanto esse lado de “cinema de género”, nunca verdadeiramente abraçado, assume-se como um disfarce para eventos maiores, a linguagem em que muitos artesãos dialogam (de George A. Romero a Wes Craven, de Ishirô Honda a Luis Ospina, sem esquecer obviamente de Jordan Peele) de forma a abordar as políticas e preocupações em ensaios “mais ou menos” figurativos que prevalecem anos após anos. “Nightsiren” é somente a tradição, não convém aclamar um “terror contaminado pelas causas / agendas sociais” [segundo essas vozes críticas], visto que é através do “cinema de género” no qual deparamos com a via, a lente abstrata para ver este nosso mundo. Tereza Nvotová fala-nos de sistemas, e o resto operam como os seus palanques de oração.