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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pediu-se que não se atirasse ao pianista...

Hugo Gomes, 21.03.24

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Tal como a investigação que segue o mote da narrativa, a obra é feita de trilhos e entrelaçados, referências atrás de pistas, dando brindes a ruelas sem saída; é um filme de várias 'piscadelas', aromatizadas na cadência de “Chega de Saudade” (canção precursora interpretada por Jobim e escrita pelo poeta Vinicius de Moraes) e enriquecida com depoimentos de peso (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e João Donato), uma espécie de “Rossio pela Betesga a dentro”, ou melhor, a tentativa de enfiar o “Cristo Redentor no Beco das Cancelas”. Novamente unindo esforços com Javier Mariscal, Fernando Trueba revisita a animação e a música aí conjugadas (recordando “Chico & Rita”, em 2010, no calor do bolero), lançando-se na sua versão “Searching for the Sugar Man”, a demanda por um artista perdido - Francisco Tenório Júnior - pianista talentoso de samba-jazz brasileiro, colaborador do movimento/género bossa-nova, o macguffin que misteriosamente desapareceu em Buenos Aires [18 de Março de 1976], após sair do seu hotel na esperança de uma sanduíche, conforme está descrito no meu recado; acredita-se que a regime ditatorial argentina o tenha apanhado, e a tragédia é, como se sabe, iminente. 

Portanto, Trueba e Mariscal ancoram-se no seu protagonista detetivesco, Jeff Harris, jornalista musical nova-iorquino aventurado nesta encruzilhada pela música exótica, caído de paraquedas nesta particular história do talentoso pianista misterioso. Aqui, damos de ‘caras’ com a primeira piscadela: a voz de Harris está a cargo do ator e entusiasta do jazz Jeff Goldblum, que fora, por mais duas vezes, jornalista musical, seja em “Between the Lines” (Joan Micklin Silver, 1977), e posteriormente no spin-off não oficializado dessa personagem excêntrica em “The Big Chill” (Lawrence Kasdan, 1983). Entendendo tratar-se de um prolongamento dessa mesma personagem, obviamente mais madura, com nuances trazidas de Kasdan, mas mantendo o seu ativismo e iniciativa. 

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Depois, evidentemente, surge-nos o título - “They Shot the Piano Player” - que não foge ao espectro de um dos filmes mais subvalorizados, e, porém, mais influentes na carreira de François Truffaut - “Tirez sur le pianiste” (“Shoot the Piano Player”, 1960) - com o pianista Charles Aznavour envolvido em embrulhadas que lhe podem custar a vida, numa obra de improvisos e experimentações que tentou redefinir o tom de uma vaga cinematográfica que tão bem conhecemos, e que, devido ao fracasso financeiro, obrigou Truffaut a reger-se a filmes mais narrativamente clássicos, deixando a subversão da fórmula para os seus camaradas do igual eixo artístico. Esta referência não é somente um júbilo, é uma ponte invisível e contextual, que interliga o Brasil com a França, de um lado a música poética e melosa dessa comunidade artística, e do outro, o cinema Nouvelle Vague, de Godard a Truffaut, sublinhando este último e a sua trilogia romântica (“Les Quatre Cents Coups”, “‘Pianiste” e “Jules and Jim”) como inspirações, modelos ou apenas atmosferas importadas. Eram tempos de descobertas, revisões ou resgates criativos, tempos de “mãos à obra”, de florescimentos e fluidez entre artes, um Renascimento desconstrutivo, agressivo e, sobretudo, ditado nas suas classes. 

They Shot the Piano Player” pode muito bem ser um documentário ficcional (apenas desapontado pelo seu grafismo pobre) sobre música brasileira com dedos apontados a uma só personalidade e, consequentemente, trazendo na canção um subtexto político, mas é no embalo dessas melodias que nos chega, com saudade é verdade, um memorando para com esses tempos. De resto, pensamos nós, o que aconteceu? Simples, “abateram o pianista”.

Falando com Nuno Beato, dos "Os Demónios do meu Avô" à arte de "vender" animação à portuguesa

Hugo Gomes, 16.10.23

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Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

Após um episódio de burnout no seu escritório despoletado pela notícia da morte do seu avô (o homem que a criou), a citadina Rosa (com voz de Victoria Guerra) revisita o lugar onde a viu nascer, Vale de Sarronco. O que acaba por encontrar estava longe do que havia imaginado: uma terra seca, abandonada à malapata e amaldiçoada com a embruxada aridez. À medida que Rosa reside no seu austero refúgio, tentando resgatar e restaurar o seu inicial brilho, vai descobrindo a verdadeira natureza do homem que tanto amor lhe trouxe à sua vida. "Os Demónios do Meu Avô" é uma animação negra, de uma rugosa ruralidade e de uma vincada portugalidade, que se destacou como a primeira longa-metragem em stop-motion portuguesa, uma ambiciosa produção da "Sardinha em Lata", estúdio e produtora lisboeta dirigido por Nuno Beato, que também assume o cargo de realizador da obra.

O Cinematograficamente Falando... conversou [em setembro de 2022, em vésperas da sua estreia no festival MoteLX] com o realizador e produtor sobre a obra, ao som dos Gaiteiros de Lisboa, e os desafios que enfrentou no panorama nacional, especialmente no que diz respeito ao mercado, bem como à promoção do cinema de animação português, quer seja a “vender filmes” ou simplesmente dar a conhecer a nossa animação a um público que por vezes "olvida" da sua existência.

Começo esta conversa, por isso mesmo, pelo início, a génese, quer do projeto, quer da sua dedicação à animação?

Devo dizer que comecei como animador e tornei-me, rapidamente, num produtor, começando por realizar projetos muito pequenos. Posso garantir que a minha carreira está totalmente dedicada à animação. A minha maneira de pensar e o meu método, sem dúvida, estão profundamente ligados e encaixam-se perfeitamente nesse universo.

Quanto aos “Os Demónios do meu Avô”, a ideia original partiu dos vídeos na internet que ocasionalmente assistimos ou que nos são partilhados. Certo dia, deparei-me com um daqueles que demonstrava alguém numa súbita ira num escritório, atirando e partindo o computador, e, por fim, arrancando a impressora. Não vou negar que me diverti imenso com isso, mas depois comecei a refletir: "O que está por trás deste ato? Como é que se chega a este ponto? Porque é que alguém, com as condições que nós possuímos, vivendo em países privilegiados, se chega a este extremo? O que se passa? Por que não contar a história de alguém que se encontra neste ponto e entender a razão da sua desesperante raiva?" Foi por isso que decidi que o filme deveria começar sempre com essa questão em mente.

Portanto, o filme começa exatamente por essa ideia e conceito, como se fosse um vídeo online, o próprio vídeo. A minha ideia inicial surgiu aí. Mais tarde, durante o meu mestrado na Lusófona [Universidade], pude desenvolvê-la. Num dos cursos, foi-nos atribuída a tarefa de elaborar um tratamento para uma longa-metragem, e foi nessa altura que escrevi a história, que, na verdade, já estava bastante diferente naquela altura. Depois, a história ficou na gaveta por algum tempo, até que um dia decidi revisitá-la, questionando-me: porque não dar vida a isto? E foi assim que cheguei a este ponto.

E como é que chegou à aventurosa decisão da longa-metragem, e além disso, a opção pela estética do filme? Refiro obviamente ao stop motion.

Na verdade, desde que comecei a trabalhar em animação e me tornei produtor, sempre tive a ambição de dar um passo adiante na indústria do cinema, especialmente na área de animação a nível internacional. Em Portugal, tradicionalmente focamo-nos na produção de curtas-metragens, em parte devido ao financiamento disponível, principalmente através do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual). A animação concentrou-se, por conseguinte, em curtas-metragens, algum trabalho publicitário e projetos diversos, mas houve uma ausência relativa de produção comercial, entendendo como tal a produção de séries e longas-metragens que pudessem competir no mercado internacional.

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Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

Sempre vi-me não apenas como um realizador, mas também como um produtor de séries ou longas-metragens, e isso foi uma progressão natural na minha carreira. Há alguns anos, comecei a considerar essa possibilidade, e quando surgiu a oportunidade de um projeto, senti que era o momento certo para arriscar e mergulhar no mundo das longas-metragens.

Obviamente, isso aconteceu em parte devido a mudanças políticas, como o lançamento de um subsídio pelo ICA de um milhão de euros para longas-metragens, o que certamente deu um grande impulso ao nosso projeto e à realização dela. Tudo isto, em grande medida, resulta de uma estratégia política bem delineada. Quando existe uma estratégia e uma vontade [política], as ideias florescem, desenvolvem-se e ganham vida.

Quando estou a fazer um filme, costumo explorar técnicas diferentes e caminhos diversos. Para mim, a técnica deve sempre servir a narrativa e não o contrário. Procuro que a técnica seja uma aliada na forma de “contar a história”. O argumento passou por várias revisões, com a contribuição do Possidónio [Cachapa] e de outros argumentistas, incluindo a Cristina [Pinheiro], que é uma historiadora. Queria que a técnica usada complementasse a narrativa. A personagem principal viveu em dois mundos distintos, ou experimentou dois momentos da sua vida de maneiras muito diferentes. Tentei expressar isso esteticamente, inicialmente optando pelo 2D para a primeira parte do filme, porque Rosa está na cidade e afastada dos outros, do avô e até de si mesma. Usei cores mais frias e traços rígidos para transmitir essa distância. O espectador também sente essa distância no início do filme. 

Quando a história se desloca para o campo, a estética muda, tornando-se mais acolhedora. A presença da cerâmica do avô, inspirada nas peças de Barcelos e na obra de Rosa Ramalho, é evidente ao longo do filme. O nome da personagem, Rosa, também é uma homenagem a essa tradição cerâmica. O barro tem uma conotação importante no filme, e a água desempenha um papel fundamental na história, refletindo nas paisagens e na narrativa.

A textura e a estética do filme desempenham um papel essencial na narrativa, ajudando-nos a compreender o que está a ser contado. Esta abordagem resultou numa diferença marcante entre o stop motion e o 2D, e permitiu-nos destacar a natureza bruta do stop motion. Assim como as peças de Rosa Ramalho são um pouco rústicas, nunca quis que o stop motion fosse demasiado polido e perfeito. Optei por um estilo mais áspero, destacando as imperfeições naturais do stop motion.

Algo que, tematicamente, agradou-me o seu filme é o de fugir à lógica, diria, disnesca, da sagrada família. Ou seja, aqui, Rosa vai descobrir os “fantasmas” que o avô guardava secretamente, demonstrando uma faceta demasiada ambígua, ou cruel, vá. O que quero dizer é que o seu filme revela que não conhecemos verdadeiramente as pessoas que amamos, ou julgamos conhecer, uma ideia que vai contracorrente às produções animadas dirigidas ao público mais jovem.

Na verdade, sou um pouco contra o estereótipo maniqueísta do bem e do mal. Todos nós detemos um pouco de bondade e um pouco de maldade, e isso pode depender das fases da vida em que nos encontramos e dos momentos que atravessamos. Tento refletir isso nas minhas personagens. Não gosto de contar histórias com personagens estritamente boas ou más, porque acredito que a vida não é tão simplista. Como o nome do filme sugere - "Os Demónios do meu Avô" - os demônios que menciono frequentemente não são necessariamente demónios físicos, mas sim os obstáculos que criamos nas nossas mentes. O filme aborda a ideia de alimentarmos esses demónios internos e de como podemos mudar a partir de dentro, em vez de esperar que os outros mudem.

Além disso, o filme trata principalmente das relações humanas e de como podemos resolvê-las através de uma transformação interna. Tentei incorporar essas ideias na história de forma a que seja acessível a um público amplo. Evitei criar um filme demasiado alternativo, porque não era esse o meu objetivo. No entanto, também não busquei uma abordagem estritamente mainstream. Prefiro encontrar um meio termo, onde possa contar histórias de forma diferente, mas que ainda sejam atraentes para o público em geral. O público é essencial para mim. Sinto-me frustrado se não conseguir alcançar um público mais amplo e se a minha história ficar restrita a um nicho dentro do cinema.

No que diz respeito à classificação do filme, é um desafio definir com precisão onde ele se encaixa. A animação muitas vezes é associada ao público infantil, mas aqueles que trabalham no campo da animação procuram demonstrar que pode ser apreciada por todas as idades e que existem produções voltadas para diferentes públicos-alvos. Este filme, apesar da história mais adulta, foi concebido tendo em mente o mercado e o desejo de chegar a uma audiência diversificada. Dado que, em muitos países, incluindo Portugal, o mercado de animação não infantil é praticamente inexistente, tive o cuidado de incluir elementos que podem ser apreciados tanto por crianças como também por adultos. A narrativa tem camadas que permitem que as crianças a entendam de uma forma mais simples, enquanto os adultos podem extrair significados mais profundos. Acredito que é uma história que pode funcionar bem para toda a família.

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Algumas marionetas usadas no filme "Os Demónios do Meu Avô" (Nuno Beato, 2022)

Durante o decorrer do Festival Guiões, Carlos Saldanha, o realizador de animações como “Ice Age” e “Rio”, afirmou em masterclass, que o segredo para escrever uma boa animação infantil é de nunca escrevê-la exclusivamente para esse público.  

Talvez. Possivelmente já abordamos isso de forma bastante natural. Acredito que também existem diferenças nas abordagens entre a Europa e os Estados Unidos. Carlos Saldanha, embora seja brasileiro, trabalhou nos Estados Unidos durante um longo período. Para concluir, quando me refiro ao mercado americano, o Brasil pode ser uma boa adaptação. No entanto, quando atravessamos o Atlântico, percebemos que a maneira de encarar o cinema é um pouco diferente. Lá, estão mais alinhados com o estereótipo descrito do cinema americano, que é uma força impressionante. 

Aqui na Europa, mesmo assim, conseguimos buscar outras influências. Acredito que isso não deve ser encarado como uma barreira na forma de pensar. Ou seja, ainda não estamos condicionados a pensar em cinema de animação apenas para crianças. Essa mentalidade não está tão arraigada, até porque, ao longo dos anos, a produção de longas-metragens e até mesmo de curtas-metragens para crianças não foi muito explorada em Portugal. É mais o oposto; muitas vezes, precisamos recorrer a produções estrangeiras para atender às necessidades do público infantil.

Mas já que falamos desse mercado e com a intenção de lançar "Os Demónios do Meu Avô" no circuito comercial, e visto estar presente na programação do Motelx [em 2022], um festival dedicado ao género do terror, não tem receio dos medos que o mercado português possa suscitar. A questão que se coloca, ao entrar nesta vertente, não é apenas a perspetiva de realizador, mas também a de como se pode vender um filme como este?

Sem dúvida, é um risco. Apenas podemos nos dar ao luxo de assumir esses riscos graças ao financiamento público. Se dependêssemos de financiamento privado, seria muito difícil concretizar um projeto como este. No entanto, acredito que é para isso que serve o financiamento público: permitir que projetos inovadores vejam a luz do dia, projetos que talvez nunca fossem viáveis com financiamento privado. Claro, é essencial que esses projetos funcionem e conquistem o público.

Desafiar o público é sempre um caminho arriscado, porque as audiências estão muito acostumadas a filmes de animação cômicos, mesmo que não sejam necessariamente infantis. Filmes humorísticos costumam ter sucesso. Apresentar um filme de animação em Portugal, no mercado local, que não se encaixe no estereótipo ao qual o público está acostumado, é um desafio significativo. O receio de não conseguir atrair o público é real, especialmente quando se trata de um produto que não se enquadra na norma que estamos acostumados a ver. No entanto, a história foi concebida de forma a ser acessível ao público, embora desafie de alguma forma. Acredito que ela tem um lado original que, se as pessoas a assistirem, poderá ser apreciado.

Falo desta questão tendo como exemplo "Ma Vie de Courgette" de Claude Barras, que, para além da partilha do estilo de stop motion, apresenta uma história adulta que não conseguiu ter expressão no nosso mercado. 

É muito bom esse filme. Mas é verdade que a nível internacional acabou por ter bons resultados.

Isto pode ser uma questão óbvia, mas tem aspirações internacionais com o seu filme?

Sem dúvida, é importante pensar no cinema em Portugal a um nível internacional. Embora o mercado português seja relevante e interessante para mim, um filme com um orçamento de 3 milhões de dólares não pode ser pensado apenas com o objetivo de ter sucesso em Portugal, na Península Ibérica ou na Rússia. Precisamos considerar um filme que funcione a nível internacional. Se eu optasse por fazer um filme que seguisse a fórmula da Disney, não estaria competindo em igualdade de condições com uma empresa que é muito experiente nesse tipo de produção. Além disso, comparando um orçamento de 3 milhões com um orçamento de 100 a 200 milhões, seria impossível alcançar os mesmos resultados.

A única maneira de competir internacionalmente é com um produto que se destaque pela sua singularidade. Pode ser um produto que tenha características portuguesas, mas que seja contado de uma maneira que tente alcançar um público amplo, não se limitando a um público intelectual, por exemplo. Acredito que este é o caminho viável para Portugal no contexto do cinema internacional. Se conseguirmos obter reconhecimento internacional, isso acabará por beneficiar Portugal. No entanto, não podemos conceber o produto apenas para o mercado português. É essencial pensar em termos internacionais ao desenvolver um produto, seja um filme, uma série ou, neste caso, "Os Demónios do meu Avô". O objetivo deve ser criar algo que funcione em escala global. Claro, há considerações a fazer para entrar em mercados públicos, como a necessidade de garantir que o filme tenha um apelo mais amplo, sem ser catalogado apenas como um filme para adultos. Isso requer atenção cuidadosa no roteiro e na realização do filme.

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Nuno Beato / Foto.: Femma / Philippe Lebruman

Fica a pergunta da praxe para animações stop motion, fale-nos do processo e do tempo do processo [risos]?

Tivemos um ano de filmagens. Durante esse período, estávamos trabalhando simultaneamente com stop motion e 3D, com a colaboração de uma equipa que incluía Portugal, França e Espanha. Na maior parte do tempo, tínhamos seis animadores a trabalhar. Cada animador, quando atingíamos um bom ritmo, conseguia uma média de, aproximadamente, 100 fotogramas por dia, o que equivale a cerca de 4 segundos de animação por dia, por animador. É apesar de tudo uma média muito produtiva.

Trabalhávamos com 12 sets montados simultaneamente, o que é um número considerável. Era um processo intenso, quase como filmar uma telenovela, com vários sets em funcionamento ao mesmo tempo. Foram dois anos de trabalho intenso, especialmente durante o último ano das filmagens. Tivemos uma equipa relativamente grande para os padrões portugueses, e contamos com a contribuição de algumas pessoas de fora, principalmente devido a coproduções. Em Portugal, não temos profissionais em número suficiente para atender a esse tipo de produção, pelo menos nas cenas que exigem um maior número de recursos.

Você mencionou que já produziu alguns filmes, em colaboração com José Miguel Ribeiro, e gostaria de saber como vê a animação em Portugal. Há nomes internacionalmente conhecidos, como Regina Pessoa, Abi Feijó, e Laura Gonçalves, que estão a conquistar reconhecimento no exterior. Por outro lado, parece haver um certo desprezo geral, especialmente na comunidade cinematográfica e na imprensa, em relação à animação portuguesa.

Acredito que a animação, assim como muitos outros setores no nosso país, frequentemente depende do reconhecimento internacional para ganhar destaque. Isso é algo comum em Portugal, não apenas na animação, mas em várias áreas. A questão que eu sinto que é mais premente é a necessidade de alcançar o público. Enquanto podemos ganhar prémios de "Melhor Filme" em festivais internacionais, e Portugal já conquistou vários prémios e fez um trabalho notável, especialmente em curtas-metragens, o verdadeiro desafio é chegar ao público em geral. Porquê? Porque, em grande parte, essa animação não é um produto comercial. Quando digo isto, não estou a falar da qualidade do produto em si, mas sim do facto de não ser um produto com um objetivo comercial, ou seja, um produto destinado a mercados de vendas.

Quando conseguirmos produzir produtos comerciais, as pessoas começarão a conhecer melhor a animação portuguesa. Penso que toda a gente conhece "Os Patinhos" [risos], que é uma animação portuguesa, ou reconhecer "A Ilha das Cores", e esses produtos que chegam à televisão e a públicos mais vastos contribuem para um maior reconhecimento e valorização. Uma vez que o público conhece e tem acesso, a animação portuguesa começa a ganhar mais valor.

O que falta, às vezes, é essa chegada ao público, que só é possível ao entrar no mercado comercial. Penso que é o que nos falta. Temos a capacidade, temos talento, temos estúdios (embora ainda em número limitado), temos formação. No entanto, o crescimento do mercado tem sido lento ao longo dos anos. Isso está relacionado com a vontade e o apoio, e mais uma vez, isso envolve a vontade política. Quando houver um compromisso e apoio direcionado para transformar a animação num setor industrial, tal como ocorreu na Irlanda, visando tornar-se um mercado exportador, acredito que a situação mudará. Precisamos mudar de paradigma e obter uma escala maior. É isso que nos falta.

Imagino o porquê de qualquer jovem ir para uma escola de cinema, tirar a licenciatura de animação e querer logo trabalhar fora, numa Pixar, por exemplo.

Neste momento, posso afirmar que em Portugal não temos espaço para acomodar todas as pessoas que estão a ser formadas na área. Muitos dos formados irão, sem dúvida, buscar oportunidades no mercado internacional. Isso não é necessariamente negativo, pois hoje em dia a abertura de fronteiras é simbiótica. Muitas dessas pessoas podem passar alguns anos no estrangeiro, adquirir experiência e, eventualmente, regressar com projetos e parcerias com produtores. Portanto, essa mobilidade não deve ser vista como nefasta.

No entanto, a continuidade na área é de facto um desafio, pois a animação é ainda um campo um pouco precário em Portugal. É uma luta constante para conseguirmos sustentar-nos nas artes, fazendo o que amamos, apesar das adversidades. 

Os Demónios do Meu Avô (Nuno Beato, 2022)

E é devido a essa abertura de fronteiras, que a nível internacional, existem cada vez mais filmes de animação.

O mercado da animação tem crescido. Este setor experimentou um crescimento notável com o advento das novas plataformas. Embora as salas de cinema tenham registado uma diminuição de público, a visualização de conteúdos animados aumentou significativamente. A forma de comercialização pode ter mudado, mas o consumo de produtos de animação continua a crescer, e isso é uma tendência crescente. 

Voltando ao holofote, ou a falta dele, na animação portuguesa. O Fernando Galrito [diretor artístico e programador] costumava dizer que, durante o Festival Monstra [o qual dirige e programa], uma parte significativa da imprensa a negligenciava. Parecia que ninguém se importava com isso. E que também os críticos de cinema não têm conhecimento da animação portuguesa e, na verdade, não estão interessados, conforme ele constantemente mencionava. Se o cinema português já é considerado um nicho, a animação é ainda mais marginalizada...

Lá está, isto vai ao encontro do mesmo. Enquanto na imagem real os atores são conhecidos, aparecem na televisão, nas telenovelas, e por isso existe um mercado paralelo - existe o cinema e existe o mercado industrial - na animação, não. Portanto, nós não temos o outro lado. E essa distância para com o público não ajuda. 

Ter atores conhecidos, como Nuno Lopes e Victoria Guerra, associados aos filmes de animação é algo que já vimos noutros contextos e que ajuda a familiarizar o público. Isso, por si só, é uma porta de entrada para chegar ao público. Claro, sei que, mesmo assim, o público pode estar um pouco distante do cinema português, mas, pelo menos, essas associações ajudam a atrair a atenção da imprensa e outros públicos. Essas estratégias são muito úteis. Na animação, infelizmente, não temos essa tradição e é muitas vezes considerada um nicho.

Não é só em Portugal, mas também a nível internacional a animação acaba por ter um peso menor na imprensa em comparação com a indústria do cinema real. Isso é uma realidade.

 

O filme será exibido no 8º episódio do Close-Up: Observatório do Cinema de Famalicão, ver programação aqui

Portugalidades em movimento

Hugo Gomes, 16.06.23

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Um ambicioso projeto da produtora/estúdio 'Sardinha em Lata' que enriquece esse universo tão pouco falado entre nós, a nossa animação portuguesa. Deveríamos declará-lo como um género à parte, mas fiquemos com as proezas, neste caso com “Os Demónios do Meu Avô”, a nossa primeira longa-metragem em stop-motion, arte resolvida com muita persistência (e paciência), aqui entendida com muita 'portugalidade'

Mas vamos por partes, após a 'propaganda' do seu estilo, o espectador poderá entrar desiludido por um início computadorizado, onde somos acolhidos pela protagonista, Rosa (Victoria Guerra), uma citadina workaholic e deveras solitária (sem admitir tal), que decide partir em direção às suas raízes após a notícia da morte do seu avô, que a criou, e que gradualmente se afastou, e um descambar da sua 'aparente' e sonhada vida. De volta à ruralidade, tenta vender a casa albergante das suas memórias de infância, sem antes a tentar reconstruir e solucionar o problema de água existente no Vale de Sarronco - uma maldição segundo a crença dos habitantes e vizinhos do falecido parente, um agouro trazido por demónios e outras criaturas nefastas. Na transição da animação digital para o stop-motion (como uma espécie de salto a duas dimensões opostas - urbana e rural), o barro em abundância acrescenta uma rugosidade rústica e austeridade que posicionam aquele meio proto-transmontano numa espécie de falso-faroeste com caretos e parentescos. 

Digamos que é um estilo artesanal de inegável identidade portuguesa na sua alma, tradicionalmente guiado por essa identidade folclórica, cujas criaturas são abstrações dessas lendas oriundas de regiões remotas e do resquício pagão. De estética maneirista, aliando-se à sua sonoridade, desde o trabalho vocal dos atores até à banda sonora rompante composta pelo alarido folclórico dito transmontano, enraizado em gaitas-de-foles, bombos ou sanfonas (da autoria de Carlos Guerreiro e Manuel Riveiro, em colaboração com os Gaiteiros de Lisboa), que conectam a narrativa com a sua aura ancestral e fantástica, “Os Demónios do Meu Avô” é um mimo técnico (e não devendo limitá-lo a uma condescendência nacional) luso-fabulista para deleite do espectador. Já no seu argumento, a narrativa afasta-se da batida ternura imposta por uma Disney ou dos estúdios mainstream, aqui, a ambiguidade é o motor reconhecível, sem perdões epifânicos, de igual forma que nunca romantiza os habitantes rurais, retirando-os do estereótipo de 'humildade imperativa a seu estatuto precário', em voga desde regimes passados. 

O grande senão da animação de Nuno Beato é a sua abstrata noção de tempo, difusa e empapada em um ritmo acelerado (também, convém afirmar os recursos da animação, dispendiosos aos diferentes níveis, humanos, monetários e produtivos). Nesse termo, “Nayola” de João Miguel Ribeiro joga em melhor posição.

Egrégios Avós ...

Hugo Gomes, 12.04.23

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Velha tendência, ou será antes a cerne do Cinema, o seu genuíno existencialismo? Serge Daney, na publicada entrevista-conversa de Serge Toubiana ["Perseverança"], confessava ‘procurar’ nos filmes o rasto do seu incógnito pai, diversas vezes iludido, graças à sua mãe e avó, de que a dublagem de muitas das produções, e a de um específico ator, preservavam as vocalidades da sua figura paterna. Acreditando nessa mentira, e persistentemente crendo-a como uma busca sem eira nem beira, o crítico de cinema confiava no Cinema enquanto território familiar, nela localizam os seus traços familiares, como um poeirento e esquecido álbum de fotografias. 

No cinema português, diversas vezes deparei-me em tertúlias cinéfilas com reclamações a várias das produções, principalmente em foros documentais ou nos primeiros passos neste universo, o qual tendiam (e pretendiam) servir de encontro e reencontro aos seus entes familiares. Os avós ou avôs seriam o “alvo” predileto nessas buscas para lá da ficção e para lá da veia documental. Talvez esse apelo emocional conquiste, e com muito sucesso, esse público que aceita o Cinema enquanto ponto de encontro, enquanto motivador de convívio familiar, ora em jeito detetivesco (“A Toca do Lobo” de Catarina Mourão), em modo de (bem-sucedida) instalação artística (“A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos) ou na demanda “cinema verité” (“Bostofrio” de Paulo Carneiro). A estes exemplos, acrescentamos “Soldado Nobre”, a primeira longa-metragem de Jorge Vaz Gomes, conduzida por mais de 6 anos (as primeiras filmagens iniciaram em 2013, as últimas em 2019), um (ree)ncontro com fantasmas de paradeiro desconhecido. 

O trajeto define-se envolto do vulto do seu bisavô. O realizador, que pouco ou nada conhece sobre este seu familiar - com excepção de que combateu na batalha de La Lys, Primeira Guerra Mundial, onde nela fez a sua derradeira morada - procura-o numa velha foto. Ali, dezenas de soldados posam firmemente em frente a uma parede de tijolos, o estado da fotografia desvirtua os detalhes da mesma, e sobretudo as características destes outrora jovens. Acreditando ser este o único retrato do seu parente, Jorge Vaz Gomes embarca numa investigação para, primeiramente, reconhecer o seu bisavô naquela mesma foto. Começa-se por três candidatos, reunidos pelas poucas e salientes semelhanças com os seus congêneres, contudo, quanto mais aprofundada a investigação se revela, mais afinidade o realizador tem com um determinado soldado desconhecido e semi-apagado do decadente registo.

“Soldado Nobre” salta de trincheira a trincheira a fim de concluir o seu objetivo. Se por um lado deseja conhecer o familiar “desaparecido” do registo, completando assim a árvore genealógica, por outro repensa a fotografia como conduta memorialista, e a desafia perante a ausência do seu objeto-estudo. Nesses termos, e evidentemente, o faz efetivamente através de uma visita ao Museu Louvre-Lens [nas imediações de La Lys], comparando o seu hipotético bisavô com a natureza dos retratos, esculpidos ou pintados dos seus artefactos históricos, mas é em específicas esculturas, silhuetas sem cabeça o qual depara uma relação direta com aquela pessoa-objeto. Jorge Vaz Gomes não inventa a “roda” nesta referida tendência, parte de uma foto, como tantos fizeram, e limita-se ao universo daquela mesma. Os “subúrbios” daquele pelotão, contextos históricos e geopolíticos, ou até mesmo o descortinar do papel de Portugal na Primeira Grande Guerra, ficam para outra altura. Não nos vemos em pedagogias, apenas em autognoses.

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Mais criativo e acima de tudo mais abrangente no seu “abraço” histórico, “Interdito a Cães Italianos” (“Interdit aux chiens et aux italiens”), uma animação stop-motion coproduzida entre Itália - Portugal - França- Suíça. Aqui, Alain Ughetto persiste em conhecer o seu avô e a restante linhagem familiar num registo autodocumental [um documentário sobre o seu próprio processo fílmico]. É um filme, felizmente, em constante desenvolvimento, e sem vergonha em esconder esses “andaimes", aos nossos olhos as figuras de "plasticina" formam personagens e essas personagens possuem memórias alicerçadas de “outrens” (uma possessão). É todo um processo, ora lúdico, ora repescatório de uma História recente, com Luigi, o avô e protagonista animado, homem de mil façanhas e de mil peles, atravessando fronteiras e esquadrias bélicas para que uma família possa, por fim, ser formada (e formalizada), tudo isso narrado pela avó de Ughetto, Cesira, também ela convertida em “boneco”, num pleno e imaginário diálogo com um realizador-criador onipresente. 

Homenagem, dirão muitos, malabarismo técnico, dirão outros, mas fora esse lado memorialista, “Interdito a Cães Italianos” (título alusivo a uma mensagem discriminatória à porta de um café francês) é a condensação de um século, o XX para sermos exatos, e as atribulações ocidentais, numa Europa dividida e “engolida” por movimentos fascistas e declarações de guerra concretizadas. Elemento narrativo latente na construção e resumo de uma árvore genealógica, Ughetto utiliza o seu talento de forma a descobrir a sua família, seja no conto e reconto das suas aventuras e desventuras, e dessa maneira redescobrir a si próprio.

Soldado Nobre” e “Interdito a Cães Italianos”, dois exemplos recentemente estreados de como o cinema continua a falar dos avós, e tratá-los como a sua força criativa e artística.

Na valsa com o chacal

Hugo Gomes, 25.03.23

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Comecemos pelos seguintes e básicos fact-checks:Nayola” tem como base uma peça teatral da autoria de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, é um filme sobre a História recente da Angola, da Guerra Civil até à sua inquieta e frágil “democracia”, e acima de tudo, resume-se como a primeira aventura de longa-duração de um dos grandes “peões” da animação portuguesa - José Miguel Ribeiro (“A Suspeita”, "Estilhaços"). Todos estes elementos que vos deixo poderia antever-nos a uma produção mimada através da sua narração e quem sabe pela importância, quase pedagógica, em difundir um cenário histórico para quem, como muitos europeus, desligam-se da realidade africana em geral, reduzindo-a a pontos habitués de telejornal na hora de jantar. Poderia, mas não é especificamente essa alusão. 

Nayola” é um teste à sua própria técnica, até porque a animação portuguesa presta contas à sua cobiçada etapa, o formato de longa-metragem. Juntamente com “Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato (composto por 80% de artístico stop-motion), estes são, algumas das primeiras obras de longa duração do seu género no nosso país (há quem debata para considerar “João Mata Sete” de António Costa Valente, Vitor Lopes e Carlos Silva como o pioneiro), porém, é fácil encontrar motivos logísticos na sua narrativa para que José Miguel Ribeiro reduzisse o seu todo numa somente curta, a opção da sua real natureza leva-nos a desfrutar a possibilidade e capacidade da sua estética, aqui alicerçada ao tempo como um brilharete técnico (o espectador é conjugado a sentir a respiração, os gestos e os olhares dos seus personagens, enquanto que a animação reage a esse tempo esculpido como um desafio da sua arte). Por isso, em jeito para totós, “Nayola” espremido não é mais do que um pequeno “conto”, e isso não o impede de conquistar o detalhe, de ajeitar a cadência, e de como evitar que o grafismo acalenta amarguras, ao invés disso são acentuadas essas mesmas dores (a carnificina, a degradação civilizacional, o infortúnio em eventos-irmãos que em tempos Ari Folman salpicou no seu esplendoroso "Waltz with Bashir”) . 

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Há um percurso em Nayola [a personagem] - mulher que procura o seu desaparecido marido na frente de batalha, deixando para trás  a sua filha nos cuidados da avó (mais tarde, o seu rebento, Yara, viraria rapper e ativista anti-regime) - que é convidativo a acompanhar-nos para lá do deslumbramento, encontrando neste formato visual uma alegoria ora humanista, ora xamânica, de existencialidade condensada do Homem como uma “má piada” atirada por entes divinas. Desta forma, como “ninguém volta da Guerra”, frase ouvida e ecoada tempos em tempo, ‘chocamos’ como  maquinistas sem comboio que aclamam o Fim do conflito no mesmo espaço-tempo com que apontam a direção do vento e o chacal, animal acostumado a guiar almas defuntas e perdidas no Antigo Egipto, adquire novo cargo nesta Angola bélica, servindo-se de “coelho carrolleano” (mas nunca atrasado), em que conduz a nossa acidental guerreira à sua enfeitiçada epifania. Facilmente este seria o (outro) País das Maravilhas o qual Alice se perderia, por entre chapeleiros-loucos a rainha de copas com ânsia em decapitar … poderia, mas a Alice aqui é outra, chama-se Nayola, filha da Guerra, e não tão afortunada como a ‘menina’ do famoso conto. 

A Guerra feita por Homens que de maneira alguma nada lhe serve, apenas os confunde - “Porquê que estás a lutar do lado errado? / Mas que história essa do lado errado?” - idêntico ao castigo proferido por Deus, lançado aos “construtores” da Torre de Babel, cada um com a sua língua, não-comunicativos e em desacordo inconsciente. Felizmente esta animação nos deixa respirar … e além disso, dá-nos tempos para conquistar e não saquear-nos. Valeu a pena esperar por “Nayola”, mais uma certidão de que a animação portuguesa sempre fora GRANDE, o país é que sempre fora pequeno. 

Takes Monstra 2022: Morrer ou sobreviver, porque a animação é mais do que um instrumento para crianças

Hugo Gomes, 07.04.22

Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente

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Matar eu sei, e mato muito bem”. O cartoonista brasileiro Angeli fez da sua conhecida irreverência um extra mortal, a capacidade de dispensar afetivamente as suas personagens, conduzindo-se a um estatuto de Deus perante elas. A criação para que no momento exato, desfira o golpe de misericórdia. Angeli é convertido em personagem de stop-motion em “Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente”, animação com traços intimistas do artista que embarca na sua plena crise artística, como também a sua relação (ou aparente desapego) com as personagens que geraram do seu imaginário, incluindo o punk anarquista do título até ao seu pesar em forma de Rê Bordosa.

Para qualquer adepto do trabalho do cartoonista na igualmente irreverente revista “Chiclete com Banana”, o trabalho assinado por Cesar Cabral, apresenta-nos uma descida existencial a essa mente que como todos os artistas soa-nos perturbada, e que o seu ato predileto, o de “matar” personagens interpreta-se como um forçado crescimento tendo em conta que estas suas criações são parte do seu “eu”. Porém, este é um filme que desafia o próprio Angeli, colocando-o em xeque com a questão das questões: o que adianta crescer se isso implica perder um pouco de nós? Laerte, outra importante cartoonista do panorama brasileiro, deixa aqui a sua presença neste delicioso híbrido de tom rançoso para com a restante Humanidade. Nos debates que decorrem em tom de urgência atual, os limites de humor vão ao encontro da personalidade destes humoristas de satirizar os antagonistas da sociedade assim como os hipócritas da mesma.  

 

Even Mice Belongs to Heaven

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Há qualquer coisa de Antoine de Saint-Exupéry neste “Even Mice Belongs to Heaven” da dupla Jan Bubenicek e Denisa Grimmová, um tom adocicado e igualmente sábio que se aproxima da obra-mestra “O Principezinho”, conseguindo manobrar pelas ópticas das diferentes faixas-etárias. Ora, para quem acreditar piamente que este conto adaptado [do livro de Iva Procházková] em stop-motion - de uma rata e uma raposa que se reencontram no Paraíso e que a partir daí estão destinados a encontrar o seus próprios e respectivos caminhos (o sentido da vida verdadeiramente) - se resume a um filme exclusivo e de linguagem unicamente dirigida para o público mais infantil, perderá com isso a estrutura de um ensaio de superação que contraria facilitismos sensíveis por detrás da sua camada aparentemente imatura.

É uma história sobre a morte, aliás, sobre a perda direta e indiretamente, sem eufemismos nem suavidades, trazendo tais territórios e os tratando sem contradições. Porque há que lidar com as nossas perdas, sendo a partida destas a base da nossa maturidade, mas acima de tudo é a naturalidade com que encaramos a mais derradeira das perdas, a nossa existência, lição encoberta numa sociedade que parece esconder a sua mortalidade. Temas e abordagens constantemente negligenciadas para os mais novos, em resposta de uma preservação ainda maior do simbolismo da inocência (ou ingenuidade) na infância.

Hoje, desejamos atrasar até à extensão dos dias a Morte como tópico, dando a este universo infantil uma sensação anti-despedida, nada deixa ser vencido tudo tem uma solução. A grande fatia de filmes de super-heróis, por exemplo, tem-se sobretudo esquivado desse derradeiro destino encontrando alternativa ao fim dessas mesmas personagens, priorizando os seus atributos comerciais, mas cujo seu sucesso tem contributo para uma indiferença com a morte desde os “verdes anos” nesta geração de espectadores. Já não se fazem “Bambis”, mas "Even Mice Belongs to Heaven” é um recomendável antídoto.   

 

Flee

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Podemos pensar que o género do documentário é um género dependente das imagens alicerces ao seu tema, ou seja a necessidade da sua ilustração como autenticação dos factos, o que aponta-nos para uma determinada questão - o que fazer quando as imagens estão ausentes? O cambojano Rithy Panh tem contornando essa via através de uma figuração às suas memórias ou as dos outros com o utensílio de modelos, instalações artísticas ou cemitérios instantâneos. São as “Imagens que Faltam”, alusão à sua aclamada obra de 2013 [“The Missing Picture”] que tão bem serve como mote da sua carreira. Já “Flee”, de Jonas Poher Rasmussen, a “falta de imagens” tornam-se na sua maior arma, condensando as memórias de Amin (refugiado afegão que se abre no seu divã para contar a sua história de vida e de sobrevivência), a uma animação de rotoscopia que deixa fluir esse aspecto memorialista sem nunca confrontá-lo com real (neste caso a imagem), mesmo que as de arquivo surjam ocasionalmente para temporalmente contextualizar.

Enquanto isso, Rasmussen reafirma o universo da animação para lá do “entretenimento infantil”, e sim, um motivador de narrativas, um engenho criativo para que o cinema não reduza à sua estandardizada formalidade. Apesar disso, não podemos fugir a um simples factor, o cariz humanista com que “Flee” emprega no estatuto “refugiado”, palavra que tem-se colado a uma definição pejorativo e de fácil uso político, e ao mesmo tempo apontado para esse coletivo e concentrar numa história individual com os seus individualismos. É na base da empatia de um só indivíduo que basta para estimular uma optimização nossa enquanto seres humanos. “Flee” é, em todo o caso, um filme humano sem nunca vergar pelo panfletarismo ou a militância. De compaixão e de paixão, é do que é feito este cinema.    

 

La Traversée (The Crossing)

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Enquanto “Flee” remete-nos ao individualismo na condição de “refugiado”, nunca escondendo as suas origens para bens identitários da sua personagem (Amir vive da sua nacionalidade e dela parte para o seu debate existencial), “La Traversée” / “The Crossing” de Florence Miailhe especifica um país não identificado para restringir-se a um planificado exemplo de história-base desse mesmo campo. Sabendo que nos é avisado desde a abertura da obra que o filme abordaria um relato na primeira pessoa e de vivências em si marcantes para a autora, não podemos deixar de sentir uma estrutura Dickeana de infortúnios e desventuras, ora fabulistas, ora próximas às vivências de milhões. É um “coming-to-age” no limite das suas forças, sem com isso desligar-nos ao grande papel do filme em questão, a sua estética, desenhos à mão que ilustram esta jornada de jovens deslocados das suas origens, rodeados por “lobos famintos” que se aproveitam do seu miserabilismo. Nesse aspecto, é uma aposta arriscada que encontra interesse no seu artesanato, mas que se distancia do calor humano destas personagens. O belo fica, mas tudo soa passageiro, e até certo efeito, como a vida, onde as possibilidades são efêmeras, reféns da vontade do tempo.  

 

My Sunny Maad

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Com 'Swallows of Kabul', o recente 'Flee' e agora o seu ‘My Sunny Maad’, ficamos com a ideia de que a melhor forma de chegar ao Afeganistão é por via da animação?” Perguntei à realizadora e animadora Michaela Pavlátová (do oscarizado “Reci, reci, reci …”), confrontando-a com este “agrupado” de coincidências. A resposta que obtive não foi esclarecedora. Coincidências, será isso mesmo, ou a impossibilidade de retratar um país algo abstrato, que oscila entre mudanças sociopolíticas, e que atualmente vive essa regressão deixando o ocidente e o seu desejo de ocidentalização em um estado impotência? Questão que faço sem esperar resposta alguma, contudo, é com filmes como este “My Sunny Maad” que percebo a quão próxima a animação é para nós.

Inspirado no livro “Frista” de Petra Procházková, o enredo começa e prossegue num “olhar estrangeiro”, uma infiltração a uma família afegã que não é mais do que o espelho da sua sociedade. Nomeadamente “My Sunny Maad” é uma denúncia às diferenças entre homens e mulheres nessa contemporaneidade, pressentindo ser a história de uma mulher europeia que cai na “armadilha” do “exotismo” do seu marido, acabando por se aprisionar a esses costumes que a minimizem enquanto ser humano. Porém, é aí que a “porca torce o rabo”, Pavlátová não tem intenção de elaborar um panfleto unicamente focado no direito das mulheres, pintando elas como vítimas nas mãos de “homens-bestas”, a sensibilidade dela encontra-se sobretudo no retrato desses mesmo elenco masculino, brutos ou dóceis incompreendidos, ou acima de tudo, vítimas da sociedade onde inserem. Rompe maniqueísmos, conquista-se o espectador pela cativação com este mesmo e disfuncional grupo familiar. 

Claude Barras: "Os filmes da Disney são muito caros e têm menos liberdade no que abordam"

Hugo Gomes, 26.03.17

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“Ma Vie de Courgette” separa-se do destino do homónimo protagonista - Courgette -  pois a sorte bateu à porta desta longa-metragem de animação stop-motion assinada pelo suíço Claude Barras. Uma passagem feliz no Festival de Cannes, uma nomeação ao Óscar, para além de ter sido o candidato suíço à categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeira, e agora, a alta distinção na 16ª edição da MONSTRA.

“Ma Vie de Courgette” enche-se de orgulho, mas pouco foi uma questão de sorte e o filme fala por si. Tive a honra de conversar com o realizador sobre esta sua preciosa criação, um conto infantil agridoce com todos os requisitos do cinema social europeu e, claro, uma alternativa ao mercado imperativo da Disney. As crianças requerem diversidade, assim como nós. 

Como surgiu a ideia para este filme?

Quando tinha 10 anos li um livro o qual achei muito bom (“Autobiographie d'un courgette”), que me remetia às séries de órfãos como "Nobody 's Boy: Remi” ou a “Heidi". Hoje em dia há menos diversidade de filmes para crianças, não há muitos filmes realistas ou que simplesmente falam da realidade para os mais novos. Foi por isso que decidi adaptar o livro.

Courgette é um pouco diferente dos outros filmes. Em vez de ser um filme para crianças, é um filme sobre crianças.

É uma abordagem realista sobre a infância na animação, a dirigir-se também às crianças e com a estrutura de um conto. 

Como funcionou o processo de stop-motion?

Influenciou o lado realista no uso da luz e da mise-en-scène, a partir de marionetas muito simples para a animação. Foram 12 fotos por segundo com a pessoa que manipula a marioneta a alterar os braços, as pernas, a boca, faz pestanejar, imagem por imagem.

Em relação ao design, houve quem apontasse como uma influência ao universo de Tim Burton?

Sim, adoro os filmes dele, sobretudo pelo aspecto gráfico. Mas também sei que ele foi influenciado pela Rankin / Bass, uma dupla de cineastas da década de 60 que também recorreram ao uso de marionetas. Portanto, também me baseio no trabalho deles.

Acha que o Tim Burton vai gostar de ver o seu trabalho?

Não sei, espero que sim. (Risos)

O The Guardian aclamou que o seu filme era um “Ken Loach para as crianças“.

Gosto muito dos Ken Loach, dos Dardenne, aquele cinema social europeu. Sim. Penso que sim, que possa ser visto dessa maneira, cinema social de animação.

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É um statement político aquele que faz no filme, contra o mercado da Disney na animação?

Penso que as crianças têm necessidade de diversidade e que este é um pouco diferente dos outros. Penso que fiz bem em comparar a animação à realidade, à sociedade, à violência, à sexualidade, mas através de um muro, que é o da esperança. Os filmes da Disney são muito caros e têm menos liberdade no que abordam. Ao fazer um filme com um orçamento menor, consigo ter a liberdade que quero.

Como se sentiu por Courgette ser a sua primeira longa-metragem?

Estou muito contente com o resultado, foi muito duro. Mas é um filme coletivo, com uma grande colaboração técnica. Também estou feliz porque acho que vou continuar a dirigir-me às crianças com um lado ecológico, com estes temas importantes e que nos fazem refletir.

Como foi colaborar com a argumentista Céline Sciamma?

Gostei muito, admiro imenso o trabalho dela e foi o meu produtor que me propôs trabalhar com ela. Já tinha as personagens e uma primeira versão do argumento e, portanto, trabalhámos ao longo de um mês. Pelo meio tivemos uma pequena discussão, mas tive a impressão de que ela estava a escrever para mim. Ficámos a conhecer-nos bem pessoalmente e com a promoção do filme tornamo-nos muito amigos.

Alguns pensamentos sobre a nomeação aos Óscares e a passagem pelo Festival de Cannes?

Durante a rodagem, sabia que o filme agradaria às crianças, mas não tinha tanta certeza o quanto iria agradar uma audiência adulta. A passagem por Cannes foi muito forte, intensa, violenta, porque creio que dei mais de 100 entrevistas em apenas três dias [risos]. Mas foi uma chance enorme passar por um festival que deu uma projeção tremenda. A quantidade de jornalistas que falaram do filme atraiu um grande número de pessoas para vê-lo. Porque, infelizmente, é difícil filmes como “Ma Vie de Courgette” encontrarem um público.

Depois de Cannes passei 2 meses a fazer 30 projecções nos EUA. O produtor do filme tinha dinheiro para permitir a cobertura por revistas e pôs em movimento uma máquina de guerra. Para a seleção, são 200 pessoas que votam e foi bom ter a energia e dinheiro para fazer o filme chegar até elas. É uma competição difícil, é necessária muita publicidade. Mas gostei de ir à cerimónia, mesmo não tendo ganho, mas o único filme de animação não-americano a ser premiado com o Óscar até à data foi “Spirited Away” (“A Viagem de Chihiro”). Por isso, nada a fazer.

E quanto a novos projetos? Vai ficar-se pela stop-motion?

Sim, gosto muito da técnica que, ora está perto da animação, ora se aproxima do cinema “live action“, graças ao uso da luz e do mise-en-scène. Tem uma certa veia direta com o teatro e com a performance, daí poder surgir algo espontâneo, o que é muito bonito.

Ai ... a minha vida de Courgette!

Hugo Gomes, 23.03.17

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Icare, mais conhecido como Courgette, é um rapaz de nove anos cujo infortúnio bateu-lhe à porta: a sua mãe morreu. A criança é, assim, transportada para um orfanato onde tentará conviver com outros na mesma situação, ou não, que ele. Sob o olhar atencioso de Raymond, um policial que encarregou-se do seu caso, Courgette tentará por entre a sua vida caótica encontrar a felicidade nas pequenas coisas.

A primeira longa-metragem do suíço Claude Barras é uma aventura espirituosa que se assume como uma afronta ao legado mercantil da Disney, pois com uma duração com mais ou menos uma hora (não mais que isso) consegue construir uma trama igualmente emocional sem o recurso a conflitos demarcados e moralidades maniqueístas. Trata-se de um filme sobre crianças, ao contrário da tendência de filmes para crianças, uma obra honesta nas ambições dos seus “heróis” e verdadeiramente presente nestas.

Courgette, a figura, capta a nossa atenção pelo seu jeito doce, inocente e Claude Barras, em colaboração com Céline Sciamma (autora do argumento adaptado de uma obra de Gille Paris), invocam devidamente essa ingenuidade digna dos “enfants”. No meio desse olhar deliciado e subjugado aos efeitos de um tom intrinsecamente agridoce, “Ma Vie de Courgette” é aquilo que poderemos identificar como um dois em um. Uma animação stop-motion que encara o infortúnio como um ciclo vivente e despejado (sem vozes panfletárias) na superação, e, ao mesmo tempo, uma subversiva visão para com o sistema de tutores e de adoção.

Em tempos de “Bambi”, onde a morte era vista como um trauma incontornável mas parte integral da vida (tal como ela é, sem floreados), “Ma Vie de Courgette” poderia ter triunfado na audiência mais jovem, mesmo com as claras sugestões que encontramos em determinadas personagens. Mas numa época como aquela que se vive hoje, onde os nossos filhos estão sob uma constante, e por vezes alarmante, vigilância e protecção (e nisso reflete a qualidade dos desenhos animados que assistem), o filme de Claude Barras será restringido  apenas a um público adulto.

Porém, espera-se que haja um passe-a-palavra, “Ma Vie de Courgette”, que teve a ventura de estrear em Cannes com algum entusiasmo e a nomeação ao Óscar ao lado de outros concorrentes de peso como “Kubo and the Two Strings” e “The Red Turtle” (o prémio, que infelizmente, caiu nas mãos do mais previsível e formatado candidato), é um mimo para a nossa sensibilidade. Um mimo acima do que aquilo que realmente merecemos!

Bill Plympton: "os EUA estão 50 anos atrás da Europa em termos de aceitar ideias diferentes no setor da animação"

Hugo Gomes, 10.03.16

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Cheatin' (Bill Plympton, 2013)

Bill Plympton chega a Portugal, em alturas da MONSTRA, para apresentar o seu último trabalho, “Revengeance”, para além de dirigir uma masterclass direcionada a todos aqueles cuja animação é uma arte a ser seguida. Um dos animadores independentes de maior renome dos EUA conversou sobre o futuro da animação, das diferentes perspectivas e das dificuldades de vingar neste meio fora dos grandes estúdios do género e do seu envolvimento no “The Prophet”. Contudo, ainda teve tempo para falar-nos sobre Kanye West!

Já esteve presente na edição de 2010 da Monstra. Este é o segundo ano que vem a Lisboa em alturas do Festival, certo? Como é regressar à capital portuguesa?

Para ser honesto, Lisboa é uma das minhas cidades preferidas. No dia de folga, fui para a praia, comi peixe num restaurante mesmo encostado ao mar. Excelente vinho, um ótimo sol, boa arquitetura, pessoas simpáticas, isto é um paraíso. Por isso desejei voltar.

Sendo independente, como consegue financiamento e produzir os seus filmes? Sabemos também que recorre várias vezes ao Kickstarter.

Já tinha usado o Kickstarter antes, na restauração do clássico “The Flying House”, a curta-metragem de Windsor McCay. Pedíamos 10 mil dólares e conseguimos 19 por ele. Sim, fiquei feliz. No caso de “Cheatin”, comecei por pedir 75 mil dólares e alcancei os 100 mil, foi de loucos, o que é bom. Por isso, devo dizer que amo o Kickstarter.

Enquanto para “Revengeance”, o meu novo filme, o qual vou mostrar alguns clipes no festival, começámos com os 80 mil, e chegamos aos 90. Sendo uma excelente maneira de evitar uma ida a Los Angeles para fazer Pitching Sessions com executivos de Hollywood.

Primeiro, porque não sou um grande nome. Ninguém sabe quem eu sou. Segundo, eu não tenho um grande estúdio. Terceiro, os meus filmes não são animados por computador como os que são direcionados a crianças. Eles são bastante adultos, independentes e penso que eles não vão “dar-me” dinheiro Por isso é bem melhor eu dirigir-me aos meus fãs, pessoas que realmente gostam do meu trabalho. Como tal, o Kickstarter é importante no desenvolvimento dos meus projetos.

Não sei se sabem muito sobre Kickstarter, mas esta plataforma não se resume a somente filmes ou animações, serve também para jogos, restaurantes, músicos, teatros, dança, bem como todas as artes. É por acaso um óptimo recurso para diferentes artistas criarem algo único.

E como consegue distribuí-los?

Esse é o problema. Nos EUA é muito difícil, simplesmente porque os americanos com tanta Disney e Pixar julgam que a animação é apenas restringida a crianças. Isso incomoda-me visto que na Europa tal não é um problema. Eles aceitam animações para graúdos. No Japão a mesma situação, aliás, eles possuem uma mente aberta em relação ao que a animação poderá ser. Mas por exemplo, quando terminei “Cheatin” mostrei a um dos meus amigos, que é distribuidor, a julgar que eventualmente poderia gostar de distribuí-lo. Ele olhou para mim e disse: “Sabes Bill, existe nudez no teu filme”, assustador (ironia), o que é de doidos até porque existe bastante nudez em quase metade dos filmes de Hollywood.

Não entendo o porquê de não existir nudez na animação. Porque esta tem que ser uma “arte para crianças”? É um problema que eu tenho com os EUA, tornando-se prejudicial para a distribuição dos meus filmes. No entretanto, distribuo-os através dos meus próprios meios: pela internet, DVDs. Acabo por fazer algum dinheiro, mas nada que me torne rico como os distribuidores de outros tipos de filmes. Isso acaba por ser um problema!

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Então para si, a animação é mais que um divertimento para crianças. É isso?

Absolutamente. Sabes, quando era criança adorava animações, desde Bugs Bunny até ao Daffy Duck, passando pelo Roadrunner, mas quando cheguei à fase adulta desejava ver ideias maduras, ideias que refletissem aquilo que eu pensava, a minha imaginação, e ninguém o fazia. E pelos vistos era impossível alguém o fazer. Penso que os EUA estão 50 anos atrás da Europa em termos de aceitar ideias diferentes no setor da animação. Eu espero que mude e que possa contribuir para essa mudança. Espero que chegue o dia em que os EUA aceite por fim essas novas visões na animação.

Você começou a sua carreira como cartoonista?

Sim, ilustrador.

De que maneira é que isso influenciou o seu trabalho?

Muito. Em primeiro lugar no humor. Eu fiz demasiados “cartoons” para revistas adultas; Hustle por exemplo, quase todos com conteúdo sexual, até porque é isso que motiva dinheiro. Como também fui ilustrador para artigos de revistas, e como tal eu adoro a técnica, a anatomia, adoro criar formas, uma “coisa” rara no cinema de animação independente, visto que existem muitas pessoas com excelentes ideias mas sem talento para o desenho. Como podem ver, eu adoro desenhar, adoro fazer mãos, faces, distorções, penso que isso é o ki do meu sucesso.

O que pode dizer sobre “Revengeance”, o seu novo filme.

Eu não escrevi a história. Foi escrita por um sujeito chamado Jim Lujan. Ele chegou a mim através de uma conferência que eu dei na Comic-Con e tornamo-nos grandes amigos. Divertimo-nos imenso e coisas do género. Ele deu-me uns DVDs para que eu pudesse ver o seu trabalho, aliás, eu recebo imensos quando vou à Comic-Con.

Três anos depois, num dia chuvoso em Nova Iorque, estava aborrecido e peguei num dos seus DVDs e vi. Foi fantástica a maneira como as suas personagens tinham uma noção de humor bastante idêntica à minha, assim como as minhas narrativas. Ele fez as vozes, o que é ótimo, visto que sabe fazer boas vozes, música, escrever as suas próprias histórias, mas mesmo assim pensei que ele precisava de ajuda. Porque os desenhos que ele fez eram péssimos. Bastante crus, aliás. Como tinha tempo e talento para fazer a animação, virei-me para ele e disse: "Tu escreves a história e se eu gostar, animo-a”.

Três meses depois, ele entrega-me o argumento e foi realmente algo divertido, muito bom, com diálogos sólidos, personagens com uma psicologia bem definida, ao jeito do film noir com toques de Tarantino western. Quase como um pulp fiction. Há dois anos para cá, comecei a desenhar, mas tive que interromper, julgo que comecei a trabalhar no “The Prophet”, em alguns anúncios, e mais alguns projetos para que pudesse fazer dinheiro. A boa notícia é que terminei ontem, fiz o último desenho de “Revengeance”.

E quantos desenhos tem o filme?

Cerca de 20 a 30 mil. Algo parecido. Mas foi feito de uma maneira bastante peculiar, foi desenhado com “sharpie pen”, que é diferente do lápis, o qual se podia apagar. Dá um look diferente, e até bastante rápido com isto. As personagens tornam-se bastante simples, quase primitivas, quase como "childlike”, muito ingénuas. É um estilo diferente e único. Mas penso que as pessoas vão gostar, é bastante diferente do meu estilo.

Nos anos 60, você enviou desenhos para a Disney mas acabou por ser recusado. Se atualmente o convidassem para integrar a equipa, aceitaria?

Dependia do negócio. Eu sinto inveja com o tipo de distribuição que eles têm, o tipo de marketing, a promoção, e a reunião de grandes talentos a cooperar para fazer um grande projeto.

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The Prophet (Roger Allers, 2014)

Mas já chegou a ser convidado pela Disney, certo?

Sim, já o fizeram, mas apenas como animador. De momento gostaria de trabalhar como argumentista, realizador ou até mesmo ter envolvimento com a produção e história do filme. Mas julgo que eles têm medo de mim, sentem-se repugnados pela quantidade de sexo e violência, pelo surrealismo. É tipo: ”ele é um psicopata”. Mas na realidade sou muito normal, muito do tipo pacífico. Eu somente deposito toda a minha loucura nos meus filmes. Frisando. Sim, gostava que um dia a Disney, ou até a Pixar, trabalhassem num filme meu. Talvez no futuro, quem sabe.

No seu top 10 da Criterion, você menciona o filme “Brazil", de Terry Gilliam. Por norma, os críticos encontram influências desse cinema no teu trabalho. Concorda que existe realmente influência de Gilliam em si?

Bem, acho que todos os Monty Pythons tiveram influência no meu trabalho. Aquele humor surrealista, “deadpan” (performances de expressões vagas). Eu adoro esse tipo de humor. Aliás, tenho um filme, “Push Comes to Shove”, que é bastante “deadpan“, com personagens a fazer coisas estranhas com as suas cabeças, mas mesmo assim indiferentes a esse absurdismo. É por isso que os Monty Python são uma grande influência para mim, não somente Terry Gilliam.

Mas já conheceu Terry Gilliam?

Terry sempre foi um bom amigo. Conheci-o … julgo eu … na estreia de um dos seus filmes em Nova Iorque e convidaram-me à sessão e à festa, apresentei-me e tornamo-nos amigos desde então.

Nós tínhamos muitos amigos em comum, por isso telefonei-lhe e perguntei-lhe se queria produzir o filme “Idiots and Angels”. Ele disse que sim, que adorava, não perguntou por nenhum dinheiro, simplesmente “usa o meu nome da maneira que quiseres”. Sim, ele foi muito prestável. Aliás, ele adora apoiar outros artistas.

Mas essa perspetiva de animação adulta está aos poucos a mudar nos EUA. Basta ver a nomeação de “Anomalisa” aos Óscares.

Eu vi “Anomalisa”. Pena que não gostei tanto assim. Achei um filme único, bem especial até, mas para mim o problema foi ser demasiado lento. Eu, por outro lado, gosto de filmes mais visuais e entusiasmantes nesse sentido, mais surrealistas, coisas desse género. Mas fiquei bastante agradado pela sua nomeação ao Óscar, e por toda aquela publicidade que me fez inveja. Julgo que os meus filmes são tão divertidos como o dele, mas … hey… é Charlie Kaufman, por isso “devemos” dar-lhe imensa publicidade.

Mas é da opinião que os tempos estão a mudar para o setor da animação, incluindo mais diversidade?

Penso que vivemos tempos fantásticos no setor animado. Aliás, eu tenho vários estudantes nas minhas masterclasses. O futuro é brilhante para todos que gostam de animação e que tenham talento. Existem atualmente muitos estúdios a produzirem filmes e não só nos EUA, China, Japão, França, Espanha e Portugal. É uma excelente oportunidade para procurar trabalho, procurar sucesso.

Mas agora, eles trabalham para estúdios, como também são independentes, e isso é o que eu faço. Eles podem estar em casa com o seu iMac a fazerem grandes filmes, a partir somente da sua imaginação e isso é uma excelente oportunidade. Uma oportunidade que eu não tinha quando era jovem. Sempre julguei que era preciso ter “montes” de dinheiro, uma grande câmara, filmes da Kodak, grandes processos de filmagem, algo bastante difícil. Por isso, sim, são ótimos os tempos que se vivem atualmente.

O que é costume os estudantes perguntarem nessas masterclasses?

Perguntam-me por trabalho (risos), pedem para mostrar os seus filmes, que os avalie, mas sinceramente não gosto de fazer isso, porque tenho medo de dizer “coisas” negativas. Por vezes vejo algo brilhante como Jim Lujan, mas na maior parte das vezes, eles precisam de desenhar melhor, tornarem-se melhores artistas. Por vezes o storytelling não é bom. São jovens, é natural, como tal tenho medo de criticar demasiado o seu trabalho. Eles também perguntam questões como aquelas que vocês [jornalistas] costumam perguntar-me: “se tivesse uma oportunidade de trabalhar com a Disney, Pixar, ou qualquer outro”.

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Idiots and Angels (Bill Plympton, 2008)

Como foi trabalhar no filme “The Prophet” (“O Profeta”)?

Há cinco anos atrás, vieram-me perguntar se não queria “ilustrar” um dos segmentos animados do filme. Aliás, fui um dos primeiros a quem propuseram tal proposta. Um dos produtores dirigiu-se a mim e disse algo que nunca mais voltaria a ouvir: “nós temos muito dinheiro, tanto dinheiro que não sabemos o que fazer com ele” (risos). Porque havia muita gente do Médio Oriente que se encontrava interessado no projeto, e isto foi antes de Salma Hayek estar envolvida. Eles andavam atrás de animadores, tentaram arranjar um realizador e foi então que surgiu Salma Hayek.

Depois seguiram-se três anos, nos quais não ouvi mais nada sobre o filme. Nesse período não me contactaram, mas depois deram-me a notícia: “bem, temos tudo preparado, Roger Allen está na direção e a Hayek está na produção”. E eu proclamei que queria fazer o segmento do “Prazer”, e automaticamente responderam: “não, tu vais não fazer o Prazer, coisa nenhuma”. O que foi mau, porque eu sou fã do prazer. Eles queriam que eu fizesse o capítulo “Comida e Bebida”, e sim, aceitei. Então fiz um storyboard, algo que eu julgava ser divertido, tendo como referência o livro e a personagem de Mustafá. Eles não gostaram, argumentaram que era demasiado divertido e estranho, então pediram para basear-me palavra a palavra do livro.

Não me importei e fiz a vontade. O resultado ficou bom. Muito expressionista, aliás. No ano passado, a Salma Hayek convidou-me para ir a Cannes para a antestreia do filme. Foi uma ótima experiência, numa festa bastante hollywoodesca que se seguiu ao visionamento.

Já conta com duas nomeações para os Óscares, de que forma isso mudou a sua carreira?

Sim, sim, fui nomeado outra vez, o que foi bastante divertido. Aliás, com uma nomeação pode-se fazer qualquer coisa. Todos querem-te conhecer, dialogar contigo, trabalhar contigo. E eles tem uma coisa chamada “Gifting Suite”, conhecem?

Sim.

É de loucos! Foi no Beverly-Hilton Hotel, situando-se nos três últimos andares do hotel, com muitas salas. Aí, tu chegas lá e dizes que estás nomeado ao Óscar. Obviamente mostras o cartão como comprovativo, entras nessas salas e levas tudo o que quiseres; roupas, casacos, sapatos, óculos, ipads, ipods, tudo o que quiseres. Basta apenas tirar. Porque o que eles querem é que tu uses isso na cerimónia. Tudo porque somente estás nomeado para o Óscar, é de loucos. A minha companheira, que era a minha produtora, obteve um colar de diamantes só para usar. São tempos loucos, que gostaria de reviver.

Fez um vídeo musical para Kanye West, pode-nos contar como foi essa experiência?

Ele cresceu em Chicago, e a mãe levava-lhe a essas compilações de curtas animadas. Curiosamente, ele lembrava-se dos meus filmes. Kanye gostava do meu trabalho. O que aconteceu é que o realizador francês Michel Gondry fez-lhe um vídeo, mas ele detestou, achou aquilo terrível. Por isso telefonou-me a meio da noite: “É Bill Plympton?” “Sim” “Daqui é Kanye West, e preciso de um vídeo musical”.

Só tinha uma semana para o fazer, por isso tinha que ser rápido, mas precisava de dinheiro e sabia quem era o Kanye West. Por isso aceitei. Tive que trabalhar bastante e até tarde, mas no final foi um sucesso. Teve estreia num grande programa da MTV. Mas o engraçado é que ele pagou-me com dinheiro do seu bolso, o que foi bom. Eu gosto do Kanye, ele veio para o meu estúdio, eu desenhava e ele olhava através do meu ombro e dizia coisas como: “eu sou mais bonito que isso, faz-me melhor”. Esse é Kanye West, é um génio, conhece música, arte e é bastante visual. Eu conheço pessoas que têm problemas com ele, mas ele foi simpático comigo, por isso …