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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Anora, mon amour, a noite foi tua ... mas a que custo?

Hugo Gomes, 03.03.25

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Começo pelo fim, como habitualmente faço ao encerrar esta conversa: “Acabaram os Óscares, voltemos ao cinema.” Com mais uma noite no Kodak Theatre, o cinema ficou-se pelo glamour que muitos ousam sonhar. O clube restrito está fechado, só entra com convite.

Pausemos o cinismo da passadeira vermelha e a feira das novidades por um momento, e encaremos a lista de premiações ao de leve: as hipóteses de Fernanda Torres vencer a estatueta – mesmo com “Ainda Estou Aqui” consagrado como Melhor Filme Internacional, batendo “Emilia Perez”, um musical de ódios e montra de certo virtuosismo ocidental (um dia gostaria de esmiuçar esse exercício de mediocridade de Audiard, mas o backlash generalizado fez-me ter pena) – e o Brasil levar o ouro para casa, foram esmagadas pelo sangue novo injetado por Mikey Madison, a jovem atriz pode contar com “Anora”, o grande vencedor da noite, como, e talvez, o ponto mais alto da sua carreira. Mas, em relação aos Óscares, prefiro vê-los como através de uma bola de cristal – e a sua vidência traz pistas sobre o pensamento corrente da Academia e a relação desta com um mundo em metamorfose. “Anora” não representa o melhor da produção global, mas talvez o melhor encantado pela indústria americana, e, pelos vistos, os votantes dão cada vez mais valor à chancela externa, com a Palma de Ouro a brilhar-lhes na face.

Sobre este vencedor, algo me inquieta: ver Sean Baker laureado como Melhor Realizador e o seu filme a erguer o troféu máximo faz-me prever um adeus ao autor de cinema independente. O que virá daqui? A maldição do Óscar fará efeito sobre Baker? O seu cinema industrializar-se-á? Quanto à jornada da stripper no “País das Maravilhas”, leio-a como uma abstração do sonho americano, e o sexo, esse elemento cada vez mais entortecido pelo puritanismo yankee e pelos moralismos aí enraizados, surge aqui sem condescendência, e sim como um contacto possível num tempo em que nos tornamos cada vez mais distantes uns dos outros. O final do filme prova essa tese – um dos mais tristemente belos que os EUA desencalharam em 2024.

Já o fantasma de “Emilia Perez" fez-se sentir nos prémios: Zoe Saldana venceu a previsível categoria de Atriz Secundária com o seu mau espanhol, “El Mal" levou Melhor Canção. “The Brutalist" pagou o preço das denúncias sobre o uso de IA, mas as consequências foram amenizadas: Adrien Brody conseguiu o seu segundo Óscar, ainda levou Melhor Fotografia e Banda Sonora (merecidíssimo). Rory Culkin, sem surpresas, venceu Ator Secundário graças ao seu papel co-protagonista em “Real Pain”.

No Other Land” levou Documentário, “Flow” brilhou em Animação, enquanto The Substance” e “The Wicked” saíram como os grandes derrotados. Os Óscares foram, por fim, uma disputa renhida, mas a ameaça de uma Hollywood MAGA-friendly pode colocar estes prémios em xeque num futuro próximo.

A ver vamos… Por enquanto, “Anora” brilhou!

Um diamante bruto que se dá pelo nome de Anora

Hugo Gomes, 30.10.24

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O sexo é a moeda de troca nesta América “redesenhada” por Sean Baker, é o seu mote, o seu mantra, a partir do qual florescem histórias da sua visão yankee. Realizador que, nos últimos tempos, muito devido ao seu “filme de rua” “Tangerine” (2015), captado por um iPhone, conquistou o estatuto de grande nome do cinema independente norte-americano, isto num momento em que essa cinematografia de baixo orçamento parece ceder a fórmulas sundescas, com um ou dois nomes destacados. Depois desse “Kids” transgressivo, Baker acampou às portas da Disney numa busca incessante pela inocência, distanciando-se do mercantilismo e da desfiguração trazida pelos “pecados capitais” dos EUA em “The Florida Project (2017). Seguiu-se “Red Rocket (2021), onde resgatou o ator Simon Rex, conhecido pelas suas comédias disparatadas, impondo-lhe o papel de uma decadente estrela pornográfica, protagonizando uma série de peripécias tragicómicas sem qualquer réstia de redenção.

Aliás a comédia é uma droga que corre nas veias da cinematografia de Baker, de doses comedidas sem nunca induzir overdose, e é com esse humor presente que “Anora” se instala, manejando espaço para os seus lugares-confortáveis, a do sexo, aqui representado, industrialmente, pela nossa Anora - Ani como ela prefere ser chamada (Mikey Madison) - dançarina exótica que aceita serviços de protituição para o filho de um oligarca russo com uma quantas propostas indecentes e aliciantes pelo caminho. Neste primeiro ato de delírio e ostentação, o filme abraça uma espiral de excesso, como um sonho repetitivo e musicado, que se assemelha aos infinitos anúncios de excentricidades. No entanto, quando esse sonho se dissipa, um “banho de realidade” espreita para tomar a nossa protagonista, sem nunca a banhar por completo devido à sua entranhada fantasia / alucinação. É nesse momento que Baker encontra um ritmo perfeito: o filme aguarda, esclarece, e o humor aí sugerido revela-se numa especiaria de aprumo paliativo, cada momento que Ani experiencia é trágico, dramático para não dizer mais, mas o cómico da situação extrai desses enredos o seu quê de ridículo, até mesmo sexo é olhado de vesga como um embaraço.

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Anora” estabelece uma espécie de malapata improvisada, Coney Island e arredores a servirem de trilhos carroleanos de requinte, um “After Hours” brejeiro, deliciosamente brejeiro, onde um secundário, a passos da relevância, Yura Borisov (“Compartment Nº 6”),  estabelece um vínculo humano para com o espectador — algo que, por vezes, parece faltar a Ani. Mas vamos com calma… Sean Baker arrisca-se em território que lhe é confortável, e esses riscos trazem os seus frutos. A duração do filme contribui para a maturação das personagens e das suas demandas rocambolescas, bem como para a evolução do enredo e do tom, depois, é a comédia sem nunca encostar-se totalmente à sátira, e nisso bofeteia a tendência de caricaturas-supra dos super-ricos ou dos machos tóxicos que muitas produções populares, como a série “White Lotus” ou o recente fenómeno de género “The Substance”. Aqui a crítica é sóbria e mascada e discursada em poucos minutos, sem sobreliteralidades, sem imediatismos, de lições devidamente retiradas à Nova Hollywood que espelha como exemplo formal.

No final, a nossa Ani revela-se humana, sem que isso desculpe as suas “anomalias” sociais, partilhadas por tantos de nós, e nesse ato, quase como um canto do cisne, o sexo, novamente palavra de ordem, aponta ao seu holofote, desta vez sob uma cor fria, em que a carne anseia por um afeto qualquer, uma empatia, um abraço de conforto. Somos humanos, dançamos, e para Sean Baker, fornicamos igualmente como ato lúdico, cada vez mais afastada da interação pessoal. “Anora” é isso, um abraço quente em tempos frios.

"What's your favorite [elevated] scary movie?"

Hugo Gomes, 13.01.22

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Não há nada melhor que uma boa facada! Pelo menos é isso que nos querem tentar vender.  

Em cada prelúdio, a saga “Scream” nos brinda com um aperitivo daquilo que veremos posteriormente (um “teaser”, em recorrente linguagem mercantil), seja o engodo do filme inaugural de 1996 (com Drew Barrymore a ser esquartejada pelo misterioso assassino), seja na última sequela – “Scream 4” (a derradeira estância dirigida por Wes Craven e escrita por Kevin Williamson) – a protagonizar e a ironizar o teor meta com “reboot” como palavra em voga.  

Neste quinto “Scream”, integrado na irritante tendência da chamada “requel” (a tal sequela / reboot que traz de volta antigos protagonistas em favor à nostalgia), a entrada nos serve como uma contradição do popularizado termo de “elevated horror” (terror em vestes sociais e psicológicos, vulgo “terror de prestígio"), o qual a vítima (Jenna Ortega), perante o quiz mortal e habitual do assassino, revela predileção por “Babadook” de Jennifer Kent (uma obra australiana que foge dos eixos industriais do género que a saga usa como referência). Este tal “elevated horror” levanta questões quanto à sua própria definição, dando a entender que um cinema articulado por novos nomes do género como Jordan Peele, Robert Eggers ou Ari Aster (mencionando alguns dos mais mediáticos), desagua das convenções do estabelecido cânone por se apresentar uma proposta apelativamente mais complexa que o habitual.  

É presunçosa e redutora essa observação, visto que o horror ostentou, à sua maneira, com astúcia e por vezes em conotações políticas (“o único cinema político é o cinema de terror”, confessou-me o cineasta colombiano Camilo Restrepo na edição de 2021 do Indielisboa), tudo embrulhado em subcontextos disfarçados com o lado escapista de algumas destas obras. Colocar um acento no “elevated horror” é esquecer que um dia existiu “The Exorcist”, “Rosemary 's Baby” ou mesmo um “A Nightmare on Elm Street” como “antecessores” deste herdado “Scream”. 

A menção do último filme não foi em vão, Wes Craven prestou-se a ensaios sociopolíticos vincados no seu artesanato de sustos, e para tal basta repescar o crescendo “The People Under Stairs” (1991), filme que consolida um passado racial tenebroso dos EUA e o exorciza com um presente reprimido que apenas atenua temporariamente os seus antagonistas. Esse mesmo filme tem conseguido nos últimos tempos “abocanhado” lentes atuais para se assumir como um cenário de uma América oculta e, secretamente, perversa. Ou até a saga “Scream” tem servido como um exercício de auto-reflexão e meta-referencial aos elementos que se vulgarizaram no subgénero slasher (tendo conhecimento que o realizador havia tentado tal abordagem, dois anos antes, com “New Nightmare”, que ao contrário de “Scream” resultou num fracasso de bilheteira), sendo que essa mesma introspecção ressuscitou o estilo para as novas gerações e auxiliando uma nova vida ao terror geral. Possivelmente, e reforço no “possivelmente”, não existiria “Get Out”, nem “Hereditary” ou “The Witch”, se o “Scream” não tivesse revitalizado a força do terror na indústria (é tudo uma questão de mercado), o que torna disparatado a utilização de um novo filme como antídoto da sublinhada "intelectualização" do terror (uma terminologia elitista e quase higienizada ao universo em si)

A dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett (“Ready or Not”) mimetizaram uma tese de igual forma que replicaram uma fórmula anteriormente conduzida a quatro mãos (Craven e Williamson) e presunçosamente caíram num registo em contraditório para com os seus originais criadores. Wes Craven não foi um mero estafeta do slasher para “inglês ver”, assumiu-se mais que isso. Já “Scream” … peço desculpa “Scream 5” … apropria-se de um universo para reproduzir a velha sinfonia, só que a reflexão meta já havia sido citada e recitada nos últimos tempos, o que restou foi seguir o modelo que tanto satirizaram – a reciclagem da sequela-legado, ou simplesmente, neste caso bem “inserido”, “fan fiction”.

A cortina desce e a homenagem declarada ao velho mestre do terror é feita. Desconfio que este filme seja associado a um possível projetado por Craven, o uso das suas velhas personagens como alavanca para “novas frentes para as audiências futuras”. Contudo, o mais condizente tributo exposto aqui, sorrateiramente estabelecido na narrativa, é a devolução da “casa” enquanto símbolo de invoque ou impulsor de um clímax (“Last House on the Left”, “A Nightmare on Elm Street” e “The People Under Stairs”). Esgalhado, mas será que foi um gesto consciente?