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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Uma "ereção violenta" de Cinema

Hugo Gomes, 17.09.24

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A odisseia de um homem que escapa pela rota do Oriente da mulher considerada "a mais teimosa do Mundo" configura um casamento que, movido por uma determinação inabalável, sugere ao semi-protagonista, Edward (interpretado por Gonçalo Waddington), uma sensação de aprisionamento. Esta premissa, aparentemente absurda, dilui-se rapidamente numa alegoria cinematográfica, pois a ideia, independentemente de qual seja, é transcendida, temida e, de certa forma, recusada como passível de negociação. O que seria das aventuras humanas se estas fossem, de alguma maneira, domesticadas?

Não se deve interpretar "Grand Tour" como um mero pesadelo matrimonial, mas antes como uma reflexão sobre os múltiplos simbolismos que o casamento, ou a mera possibilidade deste, acarreta. Esta instituição é aqui retratada como um "macguffin" inquieto, encarnado por Crista Alfaiate, que traz consigo o mais “irritante” dos tiques. Tal alusão ao conformismo ameaça as fantasias humanas, matéria com a qual o cinema frequentemente dialoga, e essas mesmas, apresentadas como relatos de terras distantes e exóticas, são aquilo que nutre o cinema de Miguel Gomes. Há nelas uma violência latente, uma vontade de as capturar, moldar e expor como troféus. 

Miguel Gomes navega nesta densa selva semiótica com plena consciência do seu papel enquanto realizador, mas não para revisitar histórias de colonizações ou evocar memórias do colonizador. Antes disso, é a imagética dos caminhos das especiarias, do exotismo que escapa ao nosso quotidiano, que se torna o verdadeiro estandarte da sua cinematografia. Para Gomes, o cinema permanece como uma janela aberta para o mundo — seja geográfica, intelectual, social, alegórica ou politicamente. É neste território que o realizador se move, onde a busca onírica pelo exotismo inalcançável se entrelaça com o sonho e a pretensão, elementos indissociáveis da linguagem cinematográfica. De certa forma, esta exploração da fantasia humana desde os seus primórdios sapientes confunde-se com a própria essência do cinema, inscrito num mesmo processo evolutivo. Já havia dito que paralelismos causavam-lhe vertigens, tonturas desgarradas nas apresentações da trilogia “As Mil e uma Noites” (2015), contudo, é essa subjugação ao seu mal-estar que Gomes se expõe em tela. 

Um dos momentos de maior destaque em “Grand Tour” ocorre quando Edward, em plena fuga de comboio em direção a Saigão, é envolvido pelos sons imersivos e indecifráveis da floresta. De súbito, uma "ereção violenta" o detém, algo que não vemos, mas que nos é comunicado por um narrador omnisciente e omnipresente. A cena, contudo, apenas nos mostra a perspetiva traseira da carruagem, com os carris que se prolongam infinitamente e um horizonte que se desvanece, preenchido por lugares inexplorados. O narrador informa-nos que Edward adormece, e, assim, o sonho começa por breves instantes. Curiosamente, “Grand Tour”, embora distante da estética murnauiana de “Tabu” (2012), evoca um certo encantamento dos maneirismos do cinema mudo (sente-se mais Dreyer aqui). Existe um "primitivismo" deliberado, uma invocação de uma época em que o cinema surpreendia não apenas pelas suas possibilidades técnicas, mas pelo seu poder de "faz de conta" e lirismo. Todavia, o sonho aqui é a cores, realista e contemporâneo, acima de tudo documental — o expoente máximo do cinema moderno. Uma bela alegoria: o cinema a preto e branco que sonha em cores, o cinema do passado que sonha com o futuro, o cinema fabulista que sonha com o real.

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É possível que Miguel Gomes, com o seu passado de crítico de cinema, esteja constantemente a falar sobre a própria arte nos seus filmes. Mais do que utilizar narrativas lineares ou transmitir mensagens explícitas, “Grand Tour”, a sua quinta longa-metragem a solo (se considerarmos “As Mil e uma Noites” como uma única obra), funciona como um espelho do Cinema e do seu Cinema, não apenas o referenciado, mas também o que pratica. Nesta "demanda", o espectador é convidado a ver as costuras do filme, identificando nelas os "tiques e manias" que marcam as suas obras anteriores: o cruzamento de tempos, memórias e naturezas, todos condensados num único espaço, tal como a narrativa, que se divide em dois atos, alternando conforme a perspetiva do seu eventual protagonista. Havia feito, salientemente, com “A Cara que Mereces” (2004) e com “Tabu”. Esse salto ao eixo. Se Edward prossegue a sua jornada pela Ásia Oriental como uma comédia de acasos, fisicamente débil, já Molly (Alfaiate) encarna uma tragicomédia de uma determinação implacável até à exaustão. E é através de Molly — novamente com uma interpretação exuberante de Alfaiate — que sentimos o fado desta arte, do Cinema propriamente dito e sem hesitações, na ilusão do seu happy ending idealizado, e nunca materializado, esperado o trágico com que a existência da determinação se afunda nas sua próprias projeções. 

“Grand Tour” é Miguel Gomes sendo Miguel Gomes, sendo a Molly, corajosa e irrefutável, que persegue o seu Edward, por mais avisos que lhe dirigem. A isso, chamamos de autor … 

Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"

Hugo Gomes, 24.08.21

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Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.

Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.

Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.

O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.

Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.

Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.

Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.

Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?

Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.

Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.

A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.

Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.

E se concorressem ao ICA...

Não havia tempo sequer…

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?

Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.

O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?

Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.

O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra. 

Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.

Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.

Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.

Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.

Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?

Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.

Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.

Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?

Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.

E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.

É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?

As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.

Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?

Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.

Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.

Falando com Crista Alfaiate, a musa confinada de Miguel Gomes e de Maureen Fazendeiro

Hugo Gomes, 17.08.21

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Impossibilitado de levar avante os seus projetos por causa da pandemia, Miguel Gomes e a sua companheira e cineasta Maureen Fazendeiro fecharam-se numa herdade com uma equipa e três atores em agosto de 2020 para procurar a cerne de todos os “filmes de confinamento”.

Diários De Otsoga”, o resultado, tem um pouco de tudo: absurdismo, experimentalismo e estética. É uma obra em permanente busca do seu espírito, sem nunca perder a sua liberdade, recebida com inúmeros elogios após a apresentação na secção paralela “Quinzena dos Realizadores” da mais recente edição do Festival de Cannes.

No caso de Miguel Gomes, este desafio cinematográfico foi também um reencontro com Crista Alfaiate, atriz que há poucos anos figurou num lugar de destaque nas “crónicas do país triste” de “As Mil e uma Noites”: ela foi Sherazade, não por um dia, mas por três filmes.

Agora é ela própria num filme ao lado de Carloto Cotta e a revelação de “MosquitoJoão Nunes Monteiro, onde se revela uma artesã do improviso, da experimentação e, sobretudo, da liberdade artística.

Antes de mais, gostaria que me explicasse como surgiu a ideia para este projeto e como o integrou?

O Miguel tem mencionado um encontro específico - a primeira vez que saíram de casa [depois do confinamento] - em minha casa e a do Rui Monteiro [técnico de iluminação]. Aí conversámos sobre a impossibilidade de se realizar espetáculos, de teatro - como é o meu caso e do Rui - e de cinema, como era o caso do Miguel, que tinha duas produções paradas. Nessa conversa surgiu uma ideia contracorrente, uma motivação resumida como "temos que, imperativamente, fazer um filme". Contornar esta impaciência, esta realidade, esta fatalidade, em suma, esta pandemia. Partimos para dentro desta casa, todos nós testados, e tendo em conta o tempo, embarcamos nesta viagem sem um guião estabelecido.

Ou seja, este é um filme totalmente dependente do improviso?

Existe muita 'coisa' planeada, nomeada a estrutura trazida pela Maureen e pelo Miguel, mas no geral o filme foi movido pela improvisação, tendo muito sido escrito ao longo do processo de rodagem. Respondendo à pergunta, sim, houve uma experimentação ao longo desta produção, mas estabeleceram-se balizas para o que se propunha.

Então, o que poderemos considerar real e que é ficção no “Diários de Otsoga”?

Acho mesmo que o interessante do filme é o de não ter a perceção do que é real e o que foi simplesmente encenado. É algo que deixamos no ar, para que o espectador pense no que realmente está a ver, até porque a mecânica do mesmo é exposta. A maneira como se filma, a equipa que filma e até mesmo a localização da câmara. Este jogo, que é uma certa manipulação por parte da Maureen e do Miguel na sala de montagem, e não só, é conceção da estrutura, é interessante e é estimulante ficar-se com dúvidas. Ou seja, uma resposta para uma dessas perguntas é que não responde ao que se pretende.

Nesse sentido, podemos considerar o filme como docuficção?

Diria que é mais... ficção. Mais do que docuficção.

A narrativa de “Diários de Otsoga” é inversa. Houve um convencionalismo na rodagem ou tudo se baseou na sala de montagem?

Poderemos dizer que foi uma rodagem convencional, porque seguimos à luz do diário, mas ao mesmo tempo não o foi, até porque estávamos todos na mesma casa, sem guião preparado, ou seja, pensávamos somente naquilo que iríamos fazer no instante, no seguinte. Não havia um cronograma rígido.

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Tendo com conta a sua experiência com o realizador na trilogia “As Mil e uma Noites”, sentiu estar num filme do Miguel Gomes ou da Maureen Fazendeiro?

Há “inputs” no filme que são muito diferentes. Aliás, tudo isto é uma combinação de duas fixações. Para já, a diferença é filmar com um realizador e o de filmar com dois realizadores. E depois há obsessões distintas, que na minha perspetiva, se juntaram muito bem. Ou seja, não existem particularmente ‘coisas’ que possamos apontar e afirmar que “isto é do Miguel e isto é da Maureen”. A construção da obsessão dos dois está muito... como diria... ligada. Também a grande diferença é que este filme está carregado da vida deles. A sua vida conjunta. No fundo, “Diários de Otsoga” é a vida de um casal e a chegada de um bebé que interfere nesse processo de criação e de realização. Tivemos que mudar todo o processo para que Maureen pudesse acompanhar as filmagens e, ao mesmo tempo, cuidar do seu bebé. Ela foi a única que pôde sair da casa – para a ecografia e nesse dia o Miguel teve que acompanhá-la –, o que alterou automaticamente toda a trajetória do filme, deixando nós [atores] a tomar conta e a continuar. Tudo muda, até mesmo a informação trazida deste casal “contamina-nos”, porque estávamos todos confinados e juntos.

Sobre esta emancipação do ator em relação ao filme e apropriando-me de uma frase do Carloto Cotta: esse dia foi um “desperdício de fita”?

Gastámos três bobines... só naquele dia! [risos] Filmamos várias cenas, grande parte não chegou à montagem final. Posso adiantar, por exemplo, que fechamos o diretor de fotografia, Mário Castanheira, na gaiola dos pássaros. Mas apesar de tudo isto, não acredito que tenha sido um "desperdício" de fita. Pelo processo, pela liberdade que tínhamos, pela proposta e sobretudo pela possibilidade de lançar três bobines para a mão de um trio de atores e de uma equipa e esperar para ver o que realmente acontece. Aconteceu neste filme, porque o Miguel e a Maureen estavam abertos a tais propostas, e tendo em conta que tínhamos em mão um projeto sem guião predefinido, nos deram possibilidades para integrar a experiência. O gesto foi o de “o que podemos retirar dos nossos dias” e nisso resultou uma provocação. Para nós, foi incrível sermos realizadores por um dia.

Visto que “Diários de Otsoga” é um filme sobre confinamento e, logicamente, de pandemia, como vê este cenário no vosso trabalho enquanto atores? Ou melhor, enquanto trabalhadores no ramo?

Aqui [França] já foi anunciado que, para aceder às salas de cinema, será necessário um certificado ou um comprovativo de teste negativo. Portugal possivelmente seguirá o mesmo caminho, o que será uma grande “facada” ao sector, não só para o cinema mas também para a cultura em geral. Esta medida será como “cortar as pernas” ao percurso destes projetos. E como vejo isso? Trágico. Simplesmente trágico, porque influencia a vida em todo o sentido. Não levará o trabalho ao seu máximo potencial e ao seu expoente de visualização. E já era assustador quando nos deparávamos com os números de cinema português, e ainda mais de teatro. Eram péssimos. E os orçamentos? Nem vale a pena mencionar isso. E só de pensar que não haverá algum tipo de retorno e alguns projetos nem irão arrancar. Isso afeta o nosso trabalho e a nossa vida.

O streaming como ser uma alternativa para o vosso trabalho? Tem sido anunciada a criação de algumas produções nacionais em plataformas como Netflix ou HBO.

Pode ser uma alternativa de trabalho, mas não será uma solução para a produção nacional. O filme continua a querer ser visto na sala de cinema, com a qualidade que se quer e a qualidade que se tem. E com os tempos e duração específica de cada produção. Normalmente existe uma tendência de formatação e globalização, para que isto caiba num catálogo de streaming, mas que não é de todo a mesma ‘coisa’ que cinema de autor. Falo de cinema de autor, porque é aquele cinema que solicita o seu invariável tempo e a sua linguagem, e que não corresponde a um público-alvo ou a uma etiqueta do catálogo.

Fitas, borboletas e dias de desespero

Hugo Gomes, 25.07.21

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Ame-se ou odeie (é bem verdade que na última opção continua dependente a uma vincada ideologia de como o cinema português deve ser produzido e “consumido”), Miguel Gomes já estabeleceu o seu lugar na nossa cinematografia como dos mais ambiciosos realizadores da nossa praça, como também dos mais internacionais (apenas equiparado a Pedro Costa ou o legado deixado por Manoel de Oliveira).

Com a sensação que foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a aclamação unânime de “Tabu”, uma canção que ressoa nos cantos e recantos do passado colonialista, o pretensiosismo discutido das “crónicas de um país triste” numa recitação de um clássico intemporal literário – “As Mil e uma Noites” – e as promessas de um projeto ainda maior intitulado de “Selvajaria”, Gomes, em plena pandemia, retorna numa trajetória contra-maré, não somente narrativamente, e sim produtiva. 

Co-realizado com a sua companheira Maureen Fazendeiro (“Sol Negro”), “Diários de Otsoga” é a cerne dos filmes de confinamento, um verité de um método de construção e igualmente de desconstrução, o qual dois realizadores e a sua respetiva equipa barricam-se numa herdade com o intuito de concretizarem o seu filme. O “filme”, esse mal-amparado MacGuffin, é a tese em elaboração de como o cinema poderá se comportar perante as drásticas mudanças sociais que condicionam o seu processo criativo, sem nunca envergar pela limitação desse quadrante, pelo contrário, a ausência e a indisponibilidade de recursos. 

Carloto Cotta (presença repetente na filmografia de Gomes), Crista Alfaiate (descoberta do realizador em “As Mil e uma Noites”) e a revelação de “Mosquito”, João Nunes Monteiro (com o desafio de distorcer a sua própria imagem) são os atores desta inversa metamorfose (em paralelização com o borboletário e do marmelo em decomposição que serve de núcleo e de termostato a esta “história”) criada em constância pelos realizadores. Aprimorado por momentos humorísticos, satíricos para com o processo fílmico (basta verificar o ponto alto em que os atores comandam o filme, “que desperdício de fita” exclama Cotta) e de puro burlesco, a veia que Gomes parece ter herdado de João César Monteiro, “Diários de Otsoga” funcionam como um exercício labiríntico de devaneios e de busca inspiracional no seu formato de aparentado caos. 

Só que, e falando na língua de Miguel Gomes, o filme é marcado com uma regressão à génese [“A Cara que Mereces”], onde verificamos novamente o fascínio pelos inventários e do cinema regulamentado pelas suas estabelecidas e rígidas regras. Ou seja, há mais controlo nesta exibida “desarrumação” do que supostamente exibe. 

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Participação nos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre"

Hugo Gomes, 31.05.20

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Convidado para integrar/contribuir na lista dos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre", uma iniciativa do site Filmspot, que teve o mérito de reunir mais de 100 personalidades ligadas ao setor, entre atores, realizadores, técnicos, jornalistas, programadores e muitos mais. Aqui fica o link para consultar a lista consolidada e definitiva (acompanhada por ilustrações do artista Rui Cavaleiro) e ainda os tops individuais, incluindo o meu.

Ver aqui

A Década '10 traduzido a Cinema Português

Hugo Gomes, 19.12.19

O que reter numa década de cinema português? Um desafio difícil e um pouco ingrato, esse de deixar de fora uma produção que tem lutado contra anos zeros, faltas de apoios, público e por vezes falta de ideias. Mas este é o cinema que amo com todos os seus defeitos e virtudes (alguns dos filmes mais belos são sem dúvidas portugueses). Como tal, eis os 10 selecionados para marcar 10 anos de arte à portuguesa.

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A Batalha de Tabatô (João Viana, 2013)

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

A Fábrica do Nada (Pedro Pinho, 2018)

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Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016)

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Tabu (Miguel Gomes, 2012)

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Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)

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Mudar de Vida - José Mário Branco, a vida e a obra (Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, 2014)

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Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)

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O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, 2012)

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As Mil e uma Noites (Miguel Gomes, 2015)