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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - Os Papéis do Inglês - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Os salteadores dos papéis perdidos ...

Hugo Gomes, 19.10.24

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Paulo Branco manifestou o quão pessoal este filme é, da sua experiência, e amizade para com o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), aos serviços “emprestados” na produção de um dos seus poucos trabalhos em cinema [“Móia: O Recado das Ilhas, 1989”], e a vontade que era em adaptar para grande ecrã a sua mais célebre criação literária, a trilogia “Os Filhos de Próspero”. Para tal necessitou encontrar um escritor/argumentista à altura dos seus calos nestas lides africanas, esse cargo calhou ao não menos talentoso José Eduardo Agualusa. Quanto à realização, segundo o produtor, a busca foi ainda mais exigente, pois era preciso encontrar um olhar que dignificasse e compreendesse a realidade subsaariana. 

O achado deu-se com Sérgio Graciano, que Paulo Branco viu num determinado filme (deste lado apostamos em "O Som que Desce na Terra", 2020), do qual o realizador demonstrou uma sensibilidade especial para com aqueles cenários e pessoas. Assim se formou a equipa: um realizador grosseiramente televisivo, um escritor que nos últimos tempos se tem aventurado no cinema ("Nayola", "Sobreviventes"), e um produtor conhecedor da obra de Carvalho, unindo forças para trazer este “Os Papéis do Inglês”, extracto memorial e temporal do eixo Namibe / Angola em ares coloniais. 

Debatendo não só essa identidade e como essas invocações do lusotropicalismo, o filme utiliza também um subtil “macguffin”, os ditos “papéis do inglês” (será um tesouro?) para “burlar” o espectador, e desta feito convidando-o a permanecer num tempo que parece estagnado, revisitado, poetizado em prol deste tributo a Carvalho. Curiosamente, Sérgio Graciano apresenta aqui o trabalho mais equilibrado da sua carreira, onde se notam os seus sacrifícios enquanto “autor”. Despojado dos vícios televisivos ou de o conceito de cinema “para todos os portugueses” (a tal trincheira comercial), através desse trato algo mefistotelicos (para com um produtor que por si é um autor por direito) reforça-se por diálogos ricos e interpretado de forma vigorosa por um elenco rico e multicultural, e adquire espaço e tempo do seu lado para induzir num ensaio de olhares e escutas, de histórias antológicas trovadas como painel multi-narrativo acima da eventualidade etnográfica e até antropológica. 

Não recorre a clichés técnicos, não cede ao excessivo uso de drones (César Mourão estou a olhar para ti) ou outros artifícios banais de esquadrias narrativas (o filme detém uma força anti-natural ao tempo do seu desenrolar, como se requeresse a nossa paciência e atenção a uma demanda remota) e os seus atos raivosamente ditadores. No fundo é uma viagem para longe, quer de nós, quer das memórias da civilização, dos contos dos expatriados, e no seu interior a história de um homem, Ruy Duarte de Carvalho (aqui interpretado por João Pedro Vaz), na sua demanda pelo seu lugar. 

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores [Pico] contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

O poeta, assim como o thriller, é um fingidor.

Hugo Gomes, 10.06.23

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The Nothingness Club: Não Sou Nada” presta-se a ficcionalizar a própria ficção envolto de Fernando Pessoa, o escritor e poeta, que tal como é lido, no intertítulo inicial, poderia ter “abocanhado” o Nobel da Literatura, se não fosse a Guerra a dominar a sua contemporaneidade. Assim, o mito que borboleteia a figura pessoana está nos seus "e se", nas suas hipotéticas e nas suas probabilidades. Embora seja verdade que Fernando Pessoa é mais o que teria sido, a genialidade irreconhecida e desdobrável a personas por si criadas, a que se dá pelo nome de heterónimos, terra fértil para as mais variadas instrumentações da sua obra e da sua presença. Pessoa é personagem e tanto para iguais cenários. 

No novo filme de Edgar Pêra, os heterónimos desfilam em corredores fantasiados ou em salas de reuniões obscuras como identidades repartidas e “coladas” a um whodunit clássico a cheirar a Agatha Christie, só que ao invés da induzida excitação em tentar deduzir “quem será o assassino?”, até porque ele encontra-se perfeitamente declarado entre nós, se não fosse o facto de todas as consequências desse thriller fabricado operem como um devaneio, um pensamento ilustrado e personificado. Humanamente característico, Pessoa adquire forma (ou formas), retrai-se da historicidade e da eventual biopic, é um exercício, que bem poderia estar ao jeito do autor, porém “The Nothingness Club: Não Sou Nada” é uma recorrente citação e recitação de Edgar Pêra e da sua estética, os visuais que acompanham uma narrativa rodopiante e hipnótica, mesmo que mais contido do que o normal, de maneira a não contrapor a versatilidade da figura-mestra. O realizador situa a sua corrente artística como auxílio fabulista do primor da sua intriga. 

Para o bem e para o mal, eis um filme que fascina e igualmente cansa, sobretudo quem anseia por um lado terreno, ao invés de sentir-se acorrentado às alternativas históricas, nesse aspeto Saramago o faria mais dignificante em papel [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”], ou a dupla André F. Morgado e Alexandre Leoni [“A Vida Secreta de Fernando Pessoa”] em quadradinhos. No cinema, João Botelho e Eugène Green fizeram-se convidados neste universo denso, lotado mas igualmente sós. Pêra apenas se junta ao seu clube do nada. 

Crónicas de uma juventude abstrata

Hugo Gomes, 21.11.19

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A adaptação da homónima peça de teatro de Tiago Gomes Rodrigues, que já conta com oito anos, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” estreia como algo datado no frenesim das estreias no circuito comercial de cinema. É um filme sobre um país nos ares da troika, onde a austeridade estabeleceu um certo abstrato a um Portugal em plena fuga (ninguém sabe para onde). E é através desse surrealismo que nos fiamos na figura da girafa, animal esse que, segundo a nossa protagonista, seria uma criação mitológica se não existisse na realidade. A girafa é então a representação dessa disfuncionalidade que opera como um organismo único, e como tal Tiago Guedes, que antes de embarcar na grande produção de Paulo Branco – “A Herdade” – materializa a encenação e a enquadra visualmente numa alegoria universal e mesmo assim reconhecível.

Contra as vozes que querem transmitir o desespero da nossa subjugação à Europa e aos seus fundos e mais fundos para os dias de hoje, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” encontra apoio na sua protagonista (Maria Abreu), pré-adolescente inadaptada à realidade que a espera, e cuja jornada vai ser traduzida como um "comig-to-age"… ao lado do seu brejeiro ursinho de pelúcia, Judy Garland (Tónan Quito)… como uma alusão à nossa ingenuidade política e social. Aqui a imaginação e as desventuras de um “regresso a casa” diluem-se como aquarelas na narrativa do filme, que se prolonga no seu intenso “faz-de-conta”, respeitando a natureza da peça e, acima de tudo, o regulamento funcional do teatro enquanto arte de contar histórias.

Em tempos em que o público português pede ao seu cinema o realismo que a aura autoral nega, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” vem desafiar essa “necessidade” com uma absurda parábola que nos coloca em cheque quanto ao “estado das coisas”, desde as ruas afirmadas como tais até às ilusões que cada cidadão detém como motivação nas suas mundanas vidas. Infelizmente, chega às nossas salas depois de “A Herdade” e em oposição de um filme à moda de Paulo Branco, temos aqui um trabalho assumidamente Tiago Guedes (mesmo que seja tecnicamente descuidado face ao anterior/posterior).

O final violento e trágico marca essa passagem na vida. Por vezes somos obrigados a abandonar as nossas convicções de longa data para nos integrarmos nos conformes socialmente aceites deste quotidiano. Acima de tudo, o que o filme nos diz é que este Portugal da troika ainda vive em nós, quer para a alegria ou para a tristeza, como uma dualidade, daquelas falsamente impostas pela versatilidade do desempenho de Miguel Borges.

Carga fora!

Hugo Gomes, 08.11.18

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Esperamos ouvir falar futuramente mais do estreante Bruno Gascon, até porque em “Carga” existe uma garra, um amor à técnica visual e sonora e sobretudo a aptidão para construir um espetáculo de cinema, sublinhando, em recurso português. Porém, é neste mesmo primeiro trabalho que é revelada a sua grande fraqueza, a dependência para com o tema, e não só, pelo “suco” extraído do mesmo, sob um tom pedagógico e meramente descritivo.

Da mente deste vosso escriba surge automaticamente “Traffic” (2000), de forma a especificar como uma temática (no caso da obra de Steven Soderbergh a “patologia humana” era o narcotráfico) é encarada como combustão para um desfragmentado filme-mosaico (pelo menos a proposta é tentada). Gascon entra nas redes de tráfico humano para se lançar na deriva do “choque” atmosférico, em prol de uma fotografia esgalhada por parte de Jp Caldeano, ou de uma técnica por vezes subtil e com rasgos de primor (a destacar o plano-sequência do suicídio).

Mas é nesse mesmo “cast away” que o jovem realizador se perde, as personagens são esquemáticas servindo como protótipos de “exemplos dados às criancinhas”, a banda sonora marca uma omnipresença alarmante e todo o enredo remexe em habituais cantos do senso comum do espectador referente à abordagem. Por cada prova de ambição, Carga se escurece nos modelos mainstream e na demasiada sobreliterarização do panfleto, enquanto que o elenco ou cai na mouche (Michalina Olszanska, Duarte Grilo e Miguel Borges) ou persistes nos personagens-tipos do nosso universo cinematográfico (Vítor Norte, Rita Blanco, Dmitry Bogomolov).

Assim, direto e a frio, escusamos de torturar-nos com experiências - Portugal não tem uma indústria cinematográfica – mas se futuramente existir qualquer indício do mesmo, possivelmente encontraremos mais dessa tendência em maçaricos como Justin Amorim (“Leviano”) ou em Bruno Gascon, do que em “veteranos” deste jogo como Leonel Vieira. Esperemos que sim, não cedendo às “palmadinhas nas costas” e às aclamações de um “bom trabalho”, mas o de “vamos estar atentos”. “Carga” falha, porém, que venham mais falhas como estas no nosso panorama.

Apresenta-se o "Soldado Milhões": uma conversa com João Arrais

Hugo Gomes, 11.04.18

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Tu és Milhais, mas vale Milhões”, assim foi batizado Aníbal Augusto Milhais, transmontano que foi um dos combatentes portugueses na Batalha de La Lys, Flandres, durante a Primeira Guerra Mundial. Milhais poderia ser apenas mais um nome entre os incorporados desse batalhão que conheceu tão pesada derrota, mas a sua bravura colocou-o nos anais da História Militar Portuguesa.

Soldado Milhões, o cognome deste humilde militar que após a Guerra foi utilizado pelo regime como imagem de propaganda, o seu ato de bravura converteu-se num exemplo a seguir, diluindo com os próprios conceitos de Deus, Pátria, Família de Salazar.

A história deste homem que não queria ser herói consagrado é adaptada ao cinema pelas mãos de Jorge Paixão da Costa (“O Mistério da Estrada de Sintra”) e Gonçalo Galvão-Teles (“Gelo”), que prometem criar, por fim, o mais bélicos dos bélicos portugueses. Para o papel de Milhais, que no fundo é Milhões, encontramos dois atores que contracenam costa-a-costa – João Arrais e Miguel Borges (o antes e pós Guerra respetivamente).

João Arrais, o jovem ator que conhece por fim o protagonismo neste filme de Guerra à portuguesa, fala-nos sobre a sua preparação e como o Cinema Nacional é desvalorizado face ao talento que contém.

É sabido que foi Miguel Borges que integrou primeiro esta produção. Sendo assim, teve que ser o João a trabalhar na personagem já estabelecida. Como funcionou esse trabalho conjunto na composição da personagem?

Exatamente. Para além de ter entrado primeiro, ele gravou primeiro. Em certa parte tive que me adaptar a ele. Mas por outras palavras, o Miguel Borges é inacreditável e por isso não me importo nada de ter sido guiado ao invés de ser o guia. Tivemos que trabalhar mais num processo de dramaturgia do que somente regermos a uma questão de tiques. Houve uma evolução de energia, tentar traçar os eventos da Primeira Guerra, e que essa energia obtida justificasse a outra face da personagem [Miguel Borges]. Portanto, foi por isso que falamos, mais a questão de energia e de interpretação, do que somente uma mimetização de tiques.

Antes do filme conhecia a História do Soldado Milhões?

Zero! Conhecia a História da Primeira Guerra na perspetiva portuguesa, mas em relação ao Soldado Milhões … nada.

Então como correu o seu trabalho de pesquisa?

Quando soube que ia fazer o casting a primeira coisa que fiz foi telefonar ao meu pai e ao meu avô a perguntar sobre a figura. Como ambos são dois amantes de História fizeram-me uma palestra sobre o Milhões, como estivessem a dirigir a um Grande Auditório numa faculdade [risos]. Sim, explicaram-me alguns factos, mas penso que este desconhecimento quanto à figura em si é uma questão mais geracional, visto que o Soldado Milhões foi utilizado por Salazar como uma propaganda humana. Portanto, era normal que eles conhecessem exatamente quem era e a minha geração nem por isso.

E tiveram preparação militar?

Nós tivemos duas recrutas, sendo que uma delas considerei dura. Uma foi em Alcochete e a outra em Mafra, essa última é que foi dura. Sim, eles olharam para nós do estilo: “olha carne fresca!”. Foi dura mas por um lado agradeço, porque aprendemos o quanto custa e dessa maneira preparamo-nos para a adversidade do campo de batalha. No fundo foi uma experiência divertida, mesmo acordado no dia seguinte com bolhas nos pés.

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O João integrou ainda ao elenco das “As Linhas de Wellington”, de Valeria Sarmiento, e mais recentemente “Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira. De certa forma tem grande parte da História Bélica Portuguesa no seu currículo.

Em relação às “Linhas de Wellington”, não é bem um bélico no sentido mais puro, e sim um filme de invasão. Mas poderemos considerar que sim, esse historial das Forças Armadas portuguesas. Com isto adquiri um certo “know how”, por exemplo, como segurar em armas, etc. O que me ajudou bastante a preparar-me para este papel, sem ter que perder tempo a preocupar-me com como comportar como um militar, visto que já tinha essa experiência comigo.

Para além do físico, como preparou a psicologia e emotividade do Soldado?

Tentei trabalhar o cansaço. Por exemplo, dormia bastante pouco nesses dias para chegar ao set cansado e completamente irritado. Queria mimetizar o stress que aqueles soldados encontravam-se constantemente naquele cenário de Guerra, e para isso o sono era o melhor remédio, sendo que fazia essa preparação em casa, dormindo mal, no chão, desconfortável.

Depois do filme, o que extraiu sobre esta personalidade histórica?

Era uma personalidade inacreditável. Era um herói, mas acima disso era humilde, visto que não pretendia esse estatuto heróico e que sempre fora contra esse mesmo cognome. Mas ele era realmente um herói, bem, vistas as coisas, não é qualquer um que continua a lutar perante um exército de alemães em sua direção, uma batalha perdida, mas ainda assim enfrentou-o com dignidade. O Milhões está de parabéns e merece que lhe dediquem um filme.

Expectativa para o filme?

Muita mesmo. Mas como dizia o João Pinto: “prognósticos só no final do jogo.

Novos projetos?

Neste momento estou a participar numa telenovela [“Vidas Opostas”], para além disso tenho alguns projetos na mira, mas ainda nada de certo.

Mas pretende continuar a fazer Cinema?

Pretendo sim, seja ele português ou outro qualquer. Pretendo continuar, sobretudo, a fazer bom cinema.

Então ambiciona trabalhar fora do país?

Acho que pelo menos tem que ter. Eu pelo menos eu tenho, gostaria de “navegar por outros mares nunca antes navegados”          

Em relação ao Cinema Português? Como o vê?

É um cinema que tem falta de apoio, como toda a gente sabe. Falta dinheiro, mas não vale a pena falar sobre isso. Bem poderíamos fazer uma crítica ou algum ensaio filosófico em relação a tal, porém, não estamos para isso. O Cinema Português é um cinema que eu adoro e que está rodeado de imenso talento … muito mesmo … que só é pena que as pessoas não conhecem ou nem sequer interessam-se em conhecer. Temos nomes que vale a pena espreitar, como o João Pedro Rodrigues, o Ivo M. Ferreira, o Pedro Pinho, o Carlos Conceição que tenho trabalhado diversas vezes, o Salaviza. Muitos talentos internacionais são uma questão de tempo até que as pessoas percebam que … não é só lá fora.

A dança dos "interesseiros"

Hugo Gomes, 18.05.16

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Três desconhecidos cercam uma isolada casa no Pico (Açores), aguardando pela vinda do seu habitante. O objetivo da espera deste trio – que se conheceram através de casualidades – diverge; um espera somente por dinheiro, outro por vingança e o último por compaixão. Não estava predestinado este dito climax, até porque não foi o destino que juntou estas três caricatas figuras, mas sim um complexo conjunto de acasos que apenas evidenciam que a mais recente obra de Luís Filipe Rocha, “Cinzento e Negro”, foi “montado” através de ideias dispares.

A segunda colaboração do realizador de “A Outra Margem” com o ator Filipe Duarte é um misto de western com neo-noir que divaga pela mais antiga das Histórias do Cinema: o golpe e a evasão. As claras alusões às tragédias gregas, nomeadamente ao clássico de Homero, “A Odisseia”, encontram-se perceptíveis na utilização deste cenário remoto, quase chamando pelos mais longínquos marinheiros e aventureiros. Porém, este “Cinzento e Negro” ao contrário da ambiguidade que o título parece indiciar é um exemplo afável de ingenuidade no cinema português.

A moralidade, felizmente, é dissipada em qualquer ato, mas o modo como caminha para esse suposto lado negro é de uma construção narrativa débil, onde os amontoados segredos das suas personagens, as suas origens e destinos, um dos ingredientes apostados pelo realizador, estão longe de captar a curiosidade do espectador. Este é um dos exemplos que não se adequa à expressão “a curiosidade matou o gato”.

Todavia, a fotografia de André Szankowski é uma agradável surpresa, trazendo consigo, principalmente no último tomo, um Pico indomável e intocável pela “mão humana”, mesmo que a casa esteja presente no dito “quadro”. Os desempenhos são outras valias, não ousando transgredir as personagens. O indicado foi somente preencher com rigor estes peões pitorescos, que tal como no filme de Sérgio Leone - “C'era una volta il West” - posicionam-se para “dançar” com os seus íntimos conflitos.