Neste Obscuro Objeto, passeio pelo Presente e Passado.
“E com dezasseis, já falta pouco para sentir os noventa e seis”, já dizia aquela bela canção dos GNR, uma ironia melancólica que adequa-se como epígrafe a este “Belle Toujours”, filmado por Manoel de Oliveira de 97 anos, que revisita — ou melhor, reinventa — o universo de “Belle de Jour” (Luis Buñuel, 1967), não com intenção de continuá-lo, mas de espreitar-lhe as brechas, embarafustar fantasmas e provocar, discretamente, a sua memória.
Passaram-se 39 anos desde que Catherine Deneuve encarnou a sua célebre Séverine Serizy, a burguesa que, sob o véu do tédio matrimonial, mergulhava na fantasia da submissão e da prostituição ocasional. Oliveira regressa àquelas figuras numa sequela não definida e sem acordos oficializados, sem o gesto explicativo ou desvendador do que Buñuel deixara em suspensão (e nisso é fiel ao espírito do espanhol), antes para ensaiar um jogo especular, envelhecido, entre aquilo que a memória guarda e o que a ausência silenciosamente esvazia.
Aqui, Michel Piccoli retoma o papel de Henri Husson — evidentemente já marcado pelo “tempo-velhaco” —, que reencontra uma Séverine igualmente transformada (interpretada pela atriz Bulle Ogier, cuja substituição assume a função simbólica da transfiguração, e igualmente compadecemos de Deneuve em não regressar ao seu devido palco). O encontro dá-se num recital de música clássica, e a partir daí, Husson persegue-a, não em busca de prazer com sabor de saudade, e sim um reencontro com o não-dito: o enigma daquilo que terá sussurrado ao marido dela, reduzido a um corpo mudo após o disparo de um dos amantes de Séverine. Essa frase, esse segredo mantido a “sete-chaves”, paira sobre todo o filme como uma sombra irrepresentável, um vaivém na possível transgressão à mitologia que Oliveira ameaça esvaziar … bluff talvez, ou o amor inflamado para com a obra original não o permite traições de tamanha insolência.
“Belle Toujours” habita os interstícios: entre o dito e o silenciado, o passado e o simulacro, a homenagem e a ironia. A sua beleza está tanto na contenção narrativa, austera, pontuada por longos silêncios e contemplações, como na composição plástica: os interiores, as luzes, os gestos, tudo compondo uma mise-en-scène que se recusa ao corte fácil ou à explicação redentora. A fotografia [de Sabine Lancelin], sensível à penumbra e à geometria parisiense, reforça o tom de um requiem discreto, por vezes zombeteiro. Oliveira não se posiciona como um continuador de Buñuel, mas como alguém que, conhecendo os limites da sua linguagem e da original, venera o mistério e a prolonga como vitamínico desta passagem intitulada Vida. Há um gesto de reverência e, simultaneamente, uma subtileza crítica: “Belle Toujours” não desmonta o mito, mas dialoga com ele num registo entre a paródia cerimoniosa e a metafísica do não-fechamento.
É também, inevitavelmente, um filme de vetustez: o tempo que se arrasta, os diálogos que soam por vezes anacrónicos (ou deliberadamente desfasados), o espaço rarefeito. Por outro lado, indico a presença habitual de Ricardo Trêpa (aqui possivelmente no seu mais energético contributo no cinema do seu avô) como a sua grande fragilidade, não escapando à sua teatralidade que frequentemente marca o trabalho do realizador, contribuindo para cenas de uma artificialidade declarada e proclama. Ainda assim, é uma obra singular. Imperfeita, sim, mas irrecusavelmente única dentro da filmografia portuguesa e do imaginário cinéfilo além-fronteiras. Um gesto de revisitação e preservação ao original, não por fidelidade servil, mas por compreender que certos enigmas sobrevivem melhor enquanto … isso mesmos … enigmas. A vénia final, materializada de galináceo conserva esse misticismo aromatizado às nossas releituras. Viva o mistério!