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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Neste Obscuro Objeto, passeio pelo Presente e Passado.

Hugo Gomes, 05.07.25

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E com dezasseis, já falta pouco para sentir os noventa e seis”, já dizia aquela bela canção dos GNR, uma ironia melancólica que adequa-se como epígrafe a este “Belle Toujours, filmado por Manoel de Oliveira de 97 anos, que revisita — ou melhor, reinventa — o universo de “Belle de Jour (Luis Buñuel, 1967), não com intenção de continuá-lo, mas de espreitar-lhe as brechas, embarafustar fantasmas e provocar, discretamente, a sua memória.

Passaram-se 39 anos desde que Catherine Deneuve encarnou a sua célebre Séverine Serizy, a burguesa que, sob o véu do tédio matrimonial, mergulhava na fantasia da submissão e da prostituição ocasional. Oliveira regressa àquelas figuras numa sequela não definida e sem acordos oficializados, sem o gesto explicativo ou desvendador do que Buñuel deixara em suspensão (e nisso é fiel ao espírito do espanhol), antes para ensaiar um jogo especular, envelhecido, entre aquilo que a memória guarda e o que a ausência silenciosamente esvazia. 

Aqui, Michel Piccoli retoma o papel de Henri Husson — evidentemente já marcado pelo “tempo-velhaco” —, que reencontra uma Séverine igualmente transformada (interpretada pela atriz Bulle Ogier, cuja substituição assume a função simbólica da transfiguração, e igualmente compadecemos de Deneuve em não regressar ao seu devido palco). O encontro dá-se num recital de música clássica, e a partir daí, Husson persegue-a, não em busca de prazer com sabor de saudade, e sim um reencontro com o não-dito: o enigma daquilo que terá sussurrado ao marido dela, reduzido a um corpo mudo após o disparo de um dos amantes de Séverine. Essa frase, esse segredo mantido a “sete-chaves”, paira sobre todo o filme como uma sombra irrepresentável, um vaivém na possível transgressão à mitologia que Oliveira ameaça esvaziar … bluff talvez, ou o amor inflamado para com a obra original não o permite traições de tamanha insolência. 

Belle Toujours habita os interstícios: entre o dito e o silenciado, o passado e o simulacro, a homenagem e a ironia. A sua beleza está tanto na contenção narrativa, austera, pontuada por longos silêncios e contemplações, como na composição plástica: os interiores, as luzes, os gestos, tudo compondo uma mise-en-scène que se recusa ao corte fácil ou à explicação redentora. A fotografia [de Sabine Lancelin], sensível à penumbra e à geometria parisiense, reforça o tom de um requiem discreto, por vezes zombeteiro. Oliveira não se posiciona como um continuador de Buñuel, mas como alguém que, conhecendo os limites da sua linguagem e da original, venera o mistério e a prolonga como vitamínico desta passagem intitulada Vida. Há um gesto de reverência e, simultaneamente, uma subtileza crítica: “Belle Toujours” não desmonta o mito, mas dialoga com ele num registo entre a paródia cerimoniosa e a metafísica do não-fechamento.

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É também, inevitavelmente, um filme de vetustez: o tempo que se arrasta, os diálogos que soam por vezes anacrónicos (ou deliberadamente desfasados), o espaço rarefeito. Por outro lado, indico a presença habitual de Ricardo Trêpa (aqui possivelmente no seu mais energético contributo no cinema do seu avô) como a sua grande fragilidade, não escapando à sua teatralidade que frequentemente marca o trabalho do realizador, contribuindo para cenas de uma artificialidade declarada e proclama. Ainda assim, é uma obra singular. Imperfeita, sim, mas irrecusavelmente única dentro da filmografia portuguesa e do imaginário cinéfilo além-fronteiras. Um gesto de revisitação e preservação ao original, não por fidelidade servil, mas por compreender que certos enigmas sobrevivem melhor enquanto … isso mesmos … enigmas. A vénia final, materializada de galináceo conserva esse misticismo aromatizado às nossas releituras. Viva o mistério!

Na memória de um bon vivant!

Hugo Gomes, 18.05.20

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La grande bouffe (Marco Ferreri, 1973)

Michel Piccoli é sobretudo uma figura que nos remete automaticamente às extravagâncias e às luxurias de vida. Sejam as grandes farras como código vivente, seja os segredos das belas do dia que guia-nos a desprezados caminhos à beira-mar, ou as festas defraudadas e chamadas telefónicas que alteram o destino dos seus matrimónios. Memórias foram muitas, aquelas que um gigante como Michel Piccoli me trouxe durante a minha, ainda breve, cinefilia. As segundas-feiras são por si tristes por naturezas, mas esta tornar-se mais acinzentada (contrariando o sol radiante).

Michel Piccoli (1925 – 2020)