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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma conversa animada

Hugo Gomes, 15.12.14

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Antes de preparar "L'Écume des Jours", Michel Gondry aventurou-se no registo do documentário/entrevista "Is the Man Who Is Tall Happy?”. Uma conversa com o célebre linguista e ativista Noam Chomsky, que poderia muito bem ser acompanhada por um formato quase televisivo ou modelizado do documentário de testemunho. Embora em teoria pareça um exercício académico, Gondry, habituado à excentricidade visual, narra todo este "blá blá blá" com animações da sua autoria e de igual interpretação. Talvez seja essa vertente que permita ao realizador trazer alguma frescura ao registo, mas essa singularidade visual não o transforma em algo mais transcendente do que um mero exercício de estilo.

Obviamente, esta conversa, difícil de acompanhar para quem não está familiarizado com o tema - até mesmo Gondry tem dúvidas em embarcar nesta filosofia coletiva - é extensa mas rica, por vezes divagando por temas sobre temas, esboçando a vida de Chomsky, os momentos que o marcaram e que o levaram a tornar-se no homem que é hoje, lembrado pelas suas teorias sobre inúmeros assuntos. Se a sua conversa intelectual e sugestiva preenche de forma cerebral as referidas e inundantes animações, “Is the Man Who Is Tall Happy?” resulta, ainda assim, num engodo devido ao método de Tadoma, citado pelo próprio Chomsky como uma leitura de expressões e linguagens através do tacto, formação especializada para deficientes audiovisuais. Quero com isto salientar que, através deste disfarce técnico, somos remetidos a uma cansativa demonstração de ego, mais do que à exploração das convenções e perspectivas dadas pelo linguista.

Assim, ficamos com ideias de tópicos sobre a complexidade do cérebro humano, o que funciona mal no ensino educacional, o quanto uma criança pode aprender sobre línguas e até as propriedades psíquicas dos objetos. Temas esses, quase reduzidos a conversas de café, são muitas vezes interrompidos pelas dificuldades linguísticas de Gondry ao formular questões. Vale pelo conceito e forma, mas, inerentemente, não nos deixa satisfeitos.

Pago para Esquecer

Hugo Gomes, 23.11.14

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Quem procurava as habituais “caretas” e outros portes simiescos providos pelo ator, bem podem "tirar o cavalinho da chuva", até porque “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” (“O Despertar da Mente”) funciona como um veículo da versatilidade que Jim Carrey detém na sua construção de personagens. Completamente subvalorizado pela Academia e pelo público que assume "venerá-lo", mas que somente espera pelo óbvio replicar dos seus êxitos na comédia, Carrey é agora o servo de uma distopia sobre paradigmas de espaços, tempos e emoções.

Aliás, este é mais que um simples exercício de ficção científica ou de romance, como as etiquetas atribuídas pela "esfomeada" indústria cinematográfica tendem a inserir. Não, Michel Gondry, "acabadinho" de sair do seu desastre crítico e financeiro - “Human Nature” (2001) - que porventura fora a sua primeira longa-metragem, oferece-nos um filme sobre a inteligência emocional, e a emancipação desta das recordações e memórias que nos estabelecem. Sob um argumento de Charlie Kaufman, novamente intrometido em assaltos cerebrais (relembramos o seu “Being John Malkovich”, sob a batuta de Spike Jonze), “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” revela-nos sob a brisa da habitual fórmula "boy meet girl", tão recorrente a qualquer comédia romântica. Felizmente, não estamos perante um produto deste género ou estilo, como quiserem apelidar, mas sim do arranque para uma aventura que nos leva ao encontro da própria medula do romance propriamente dito.

Aqui o sentido poético e romantizado de catalisar todas as emoções deste foro para as aurículas e ventrículos do coração são descartados, até porque o cérebro comanda a vida e as nossas emoções, ligadas às respectivas memórias, operando como combustões essenciais para um "motor" constantemente alimentado. Imaginem, se alguém ou alguma coisa, tal e qual um "heist", penetrar nessa mesma massa cinzenta e extrair esses pensamentos, ligados às pessoas pelo qual nutrimos de relações afetuosas, sentiríamos defraudados? Pelo que parece existe quem queira esquecer esses "déjà vus" vincados, e Jim Carrey é um deles.

Sob a pele de Joel, o “coração-em-pedaços” contrata uma empresa especializada em "apagar" memórias. O objectivo deste serviço é a destruição de qualquer vestígio da sua antiga relação - Clementine (infelizmente uma desaproveitada Kate Winslet) - uma mulher instintiva, cuja sua ausência tem feito Joel "gato-sapato", e o esquecimento seria, segundo este, um convite para prosseguir saudavelmente na vida que lhe resta … e que muito lhe resta. Contudo, e durante o processo de "erase", ironicamente transformando-se em epifanías, o protagonista se apercebe, por fim, do inevitável … um dia ele foi feliz com essa agora “infelicidade” sinalizada.  

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A luta, literalmente intrínseca, envolve na preservação de qualquer resíduo desta paixão, nas memórias que o enriqueceram e que o tornaram no homem de hoje. A importância emocional é relevante não só para a construção e para as elipses embutidas no protagonista, mas sobretudo para a própria conduta de uma obra que se adivinha fria, sublinho, tecnologicamente fria. Todo o clímax decorre no interior da cabeça de Joel, um confronto visível entre a emocionalidade adquirida pelas ocorrências impostas no filme e o automatismo do enredo. Uma batalha que requisita o melhor de Gondry, no sentido visual, ilustrando toda esta catarse aos pensamentos de Joel e da sua derradeira luta para manter Clementine na sua mente sob um jeito onírico e inventivamente estético. Esta reinvenção torna a experiência fora dos parâmetros do "faz-de-conta" e segue-se no registo do qual o cinema é veterano, atribuindo às ditas imagens um simbolismo de impulso emocional. O uso tecnológico do CGI encontra-se estampado na narrativa, não como uma cobertura autodidacta que muitas produções hollywoodescas de grande orçamento parecem manifestar, mas servido de bandeja para a concepção de tais ideias, eventualmente transmitidas acima do conceito.

“Eternal Sunshine of a Spotless Mind” é um filme independente até mesmo na sua forma de pensar, na instalação da sua narrativa e na recontagem dos parâmetros românticos que Michel Gondry assume odiar. Nesse sentido, temos uma obra que reúne dois futuros artesãos; Kaufman de um lado, a demonstrar a criativa manobragem em intrigas existencialistas e dotadas de um pálido humor, neste caso a existência está na própria natureza da inteligência emocional, e Gondry do outro, como um VJ que tenta preencher as lacunas da sua imagem (curiosamente Lacuna é o nome da empresa contratada por Jim Carrey) e compensar os seus erros anteriores (o realizador enumerou todos os fatores que conduziram o seu “Human Nature” para o conhecido fracasso). Uma dupla que adopta a febril experimentalidade da encarnação do amor platónico no grande ecrã, sucedendo, em certa parte, ao trabalho inspirado de Sofia Coppola em “Lost in Translation''. E como jeito de curiosidade, ambos os filmes vêm no "sussurro" um forma de twist!

Mas no seio deste confronto de egos artísticos e sede de criação, Jim Carrey a batalhar por um lugar na reminiscência do espectador, possivelmente fazendo-o esquecer que foi em tempos o denominado sucessor de Jerry Lewis. Apesar da sua estrutura anárquica aos modelos do romance estabelecido e estagnado, “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” tem tudo para ser considerado um dos mais ricos do seu tempo.

A Espuma dos (outros) Dias

Hugo Gomes, 06.01.14

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Um dos “fundamentalistas” do movimento surrealista, como também na anarquia como manifestação política, Boris Vian (1920 – 1959) sempre apresentou nas suas inúmeras obras um mundo próprio algures entre a desordem social, o puro onírico e a metáfora no seu estado mais cristalino e poético. Entre os seus escritos encontramos a aclamada obra-prima denominada de “L’Écume des Jours” (“A Espuma dos Dias”), que aqui, nas mãos de Michel Gondry é um autêntico “pernas para o ar” da comédia romântica modelar.

O realizador não é um completo estranho nestas incursões alternativas ao romance, basta apenas referenciar o seu singular “Eternal Sunshine of the Spotless Mind” (2004) escrito pelo criativo Charlie Kaufman, para entender e distinguir a sua hábil excentricidade visual, associado pelo gosto pelo bizarro e a iniciativa da diferença. Agora, Gondry cita Boris Vian como um incomparável substituto ao génio de Kaufman, dois universos que possuíam todas as características e mais algumas para que quimicamente se tornassem numa só, mas, infelizmente, este “A Espuma dos Dias” não proporciona o sonho realizado, existindo algo que os impede de realmente conjugar. Que problemas são esses realmente?

A obra “A Espuma dos Dias” [o livro] é uma inserção de ideais, filosofias e até vivências do próprio Boris Vian, matéria profunda e de reflexão que é adaptada por Gondry da forma mais visualmente possível. Ele é, sim, um autor que trabalha com o estético, com a manipulação das imagens, transformando o peso das ideias de Vian em meras fantasias da suposta influência da vanguarda francesa, que contraria, sem com isso reverter narrativas, a fórmula dos romances mainstream. É por essas e por outras que “A Espuma dos Dias” de Gondry soa-nos a plástico, demasiado forçado ao seu propósito, seguir na fidelidade daquela materialização e concretizá-la de maneira perceptível, de forma a integrar uma produção para todos os paladares. A imaginação “borisviana” dificilmente flui nesta sua narrativa.

Não que com isso afirme que a obra seja nula no seu esforço. Existem alguns pormenores dignificantes na relação do realizador com o autor surrealista. A fotografia e a transformação dos cenários em prol dos sentimentos das personagens, uma espécie de expressionismo em condimento com o impressionismo, parece resultar ocasionalmente nessa tradução algo “leiga”. Para além disso, Gondry convida os seus atores a integrar um burlesco quadro pintado, ideias emprestadas, mas demonstradas pelos seus “pincéis”.