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Para muitos foi somente o pretexto para seguirmos na proposta de suspense e de alusões hitchockianas de Brian De Palma, mas, deste lado, relembro com alguma tristeza, aquela que é a segunda morte de uma mulher desesperada.
O filme que vos trago é “Vestida Para Matar” ("Dressed to Kill”, 1980), um dos meus prediletos do realizador, ainda na tradição do legado deixado pelo mestre de suspense de Hollywood [Alfred Hitchcock], nascendo aqui um fôlego, ora antigo, ora moderno, duma estética de Nova Hollywood, daquele cinema aprendido e recitado com as paixões e as desconstruções devidas. Sim, os ditos “movie brats” (Spielberg, Lucas, Scorsese, Coppola), cineastas com uma consciência do cinema enquanto arte em plena mudança estética, narrativa e performativa.
Para quem desconhece, ou cuja memória não é o seu forte, a obra parte de uma assassina em série na sede do seu mortal vício que persegue uma “call girl” (Nancy Allen) que porventura testemunhou um dos seus crimes. No centro está Michael Caine como psiquiatra, e ainda mais a fundo uma paciente sua, loira de meia-idade, enclausurada no aborrecimento que não é mais que a sua vida de dona de casa. As evasões desta mulher, o nosso primeiro contacto neste mesmo universo, acontecem exclusivamente na sua mente, os devaneios que a fazem desesperar e suspirar pela fuga possível, partindo de um pressuposto sexual. Segredos íntimos acompanhados por carícias libertadoras, fantasias projetadas apenas confiadas ao seu psiquiatra. Esta mulher (Angie Dickinson naquele que é possivelmente o seu último papel relevante) cede à sua fervorosa loucura, à febre que a corrói no seu interior profundo, e encontra essa oportunidade numa das icónicas sequências no cinema de De Palma, um calculado passeio no Museu de Arte de Filadélfia, um desfrear do seu psicológico em pleno tormento que se transforma numa correria pela cultura do sexo.
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Os encontros que tornam-se desencontros e por fim num instintivo reencontro, culminando no seio dos lençóis e de uma almofada amarrotada numa cama desconhecida. A nossa mulher atingiu o seu pleno prazer por via de braços estranhos, o conforto que não revia nos gestos frios do seu marido. Uma noite apenas, era o prometido e tal ficou registado. No momento da saída de cena, discreta assim quis, Dickinson sorrateiramente evade o apartamento daquele homem incógnito e sem face (apenas o corpo como moeda de troca), mas a sua curiosidade domina. Na tentativa de adiar a sua nova “fuga” (a da fantasia para o seu enfadonho real), a mulher lança-se na jornada de conhecer este companheiro temporário, com isso confrontado com o seu fim, a sentença de um adultério satisfatório, a luxúria consequencial. Perante esse novo e revelado “veneno” que corre pelas suas veias, a loira é subitamente “atropelada” pelo seu carrasco. Nada relacionado com a sua anterior condenação, mas foi com a fria lâmina do facalhão utilizado por esta entidade assassina que Dickinson cede ao seu eterno descanso.
Esta foi a loira que morreu duas vezes, a morte definitiva pelo vilão da história e a outra, pelo seu escape à realidade que a afrontava diariamente. Porém, pensando bem, esta sua segunda morte soou mais com uma salvação, até porque nesta sociedade regida pela convencionalidade, os desejos nunca são prazeres inocentes.