Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As mil e uma sombras do boxeur

Hugo Gomes, 01.03.23

legiao_QS4AMebUR8cW.jpg.webp

Operando nos quatros cantos dos “Estados Gerais” do seu subgénero, o terceiro filme de “Creed” não altera fórmulas nem mescla no romantismo cine-dramático que o pugilismo sempre ostentou. Mas ao contrário das habituais latitudes que se deseja empregar nestes rounds, o final da trilogia não se assume num enésimo conto “underdog” da escadaria Rocky, aliás, a ausência da familiar personagem de Sylvester Stallone estabelece um estatuto de devida emancipação à figura de Adonis Creed, o Michael B. Jordan a provar o seu carisma e o embate emocional numa (mais outra) prova de fogo. Digamos que “Creed 3” não inventa gramática, o espectáculo de luvas “calçadas” mantêm-se como evento de um cinema que procura redenção em velhas sagas, ou herdeiros delas (como é o caso de “Creed”). 

Porém, o que impressiona neste novo capítulo, auferindo como o emocional do tríptico, é a forma como B. Jordan se conduz para trás das câmaras. Há um misto de histeria pop aqui, como também a poética emanada nas sua imagética, os combates, esse upgrade visual, instala-se como território maleável para ênfases dramáticas, ainda mais apontadas nas suas representações. Ora vejamos, nesta história em que Creed atingiu o apogeu da sua carreira (nada mais há para conquistar), é abalado com a vinda de um “fantasma de um Natal passado”, uma figura que declara guerra pelo seu "roubado" direito de glória. Aqui, Jonathan Majors, mais que presente em 2023 (de forma a encontrar um rumo na sua carreira), é o “underdog” por direito (mesmo traído pelo antagonismo desculpável que a história tende o ressaltar), mas é acima de tudo um injustiçado, incompreendido e com isso ressentido. 

O reencontro entre este “vilão” (aspas, por favor) com o nosso Creed é ditado por barreiras, visíveis e invisíveis, sendo a última as óbvias “muralhas de rancor e cobiça”, assuntos pendentes adiados até à exaustão de ambos, e na visibilidade, presente, ora numa mesa de restaurante em que ambos adiantam conversa “congelada” de anos, ora as divisórias de um balneário ou até mesmo nos devidos momentos de honestidade e de perdão em que tais divisas encontram-se visualmente acentuadas. Dois homens, não apenas separados pelo destino como também desencontrados, contraídos seja socialmente, seja moralmente, e o ambiente em seu redor tende a fortalecer essa facção. Por vários momentos, B. Jordan revela-se coerente na ambição visual, é por esse motivo que “Creed 3” ganha aos demais capítulos desta jornada (mesmo que Ryan Coogler e os seus habituais “tracking shots” sejam marcas autorais presentes no filme inaugural), ao construir uma certa poética na sua planificação, edição e até ação. 

Falando em “separados pelo meio e pelo acaso”, é no ringue onde se manifesta o esperado contacto entre os dois corpos. Creed e o seu némesis, mano-a-mano, soco-a-soco, músculo com músculo, sangue, suor, um espectáculo para massas, mas nas suas mentes, o ringue é outra ‘coisa’, uma plataforma suspensa num infinito nevoeiro, a realidade, tempo e espaço são distorcidos a um só propósito. Naquele round (recebido com perplexidade pelos interlocutores perante a sua intensidade), naquele e somente round, nenhuma barreira havia sido assomada para os separar. Estão a nu, carne com carne, o ajuste de contas num onírico campo minado de raiva.

Na minha memória, surge-me “Kagemusha” de Akira Kurosawa, o momento em que o anterior doppelgänger enfrenta, ineficazmente, o seu esmagador vulto, a sombra do guerreiro que se propõe a ser, propriamente dita. Em “Creed 3”, são homens e as suas sombras enfrentando-se num combate para além do terreno. Não é sonho algum, é estado de alma.

"Just Mercy": pedindo misericórdia à cotovia

Hugo Gomes, 16.01.20

rev-1-JM-09538_High_Res_JPEG-1024x601.jpeg

You just hold your head high and keep those fists down. No matter what anybody says to you, don’t you let ‘em get your goat. Try fighting with your head for a change.Atticus Finch, "To Kill a Mocking Bird" (Harper Lee)

Visto em tempos como uma das promessas de Sundance, Destin Daniel Cretton demarcou-se dos pequenos “darlings” como “I Am Not a Hipster” (2012) ou “Short Term 12” (2013) para desembarcar entre projetos de maior escala confinados a uma certa tradição hollywoodesca. Começou essa jornada através da Lionsgate, numa adaptação ao livro biográfico de Jeannette Walls,The Glass Castle” (2017), provando que desde “Lost Weekend” (Billy Wilder, 1945), filmes sobre os tormentos do álcool dificilmente encontraram credibilidade na indústria norte-americana. Seguiu-se a Warner Bros antes de passar pela Disney, na qual prepara mais um projeto do Universo Cinematográfico da Marvel.

Portanto, restringindo-se à Warner e a este seu “Just Mercy” (“Tudo Pela Justiça”), no alinhamento astral com o cinema humanitário, reconhecemos os gestos ocasionais de Cretton em romper as vestes contidas numa obra “corretíssima” e esperançosa, desde o simbolismo trazido da primeira cena (onde a personagem de Jamie Foxx reflete para além da copa das árvores que o rodeiam), até ao “secundarissímo” guarda prisional que se assumirá como o zeitgeist da consciencialização. Mas tudo em vão, “Just Mercy” engendra-se em perfilhar a mensagem, um episódio do passado que encontra diálogo recorrente na nossa atualidade.

Aqui, o defensor dos direitos civis Bryan Stevenson (Michael B. Jordan), jovem advogado recém formado por Harvard, decide instalar-se em Alabama para defender aqueles que foram condenados à morte por crimes que não cometeram, entre eles está Walter McMillian (Foxx), no qual esta história prioritariamente se foca. Grande parte dos seus clientes são afro-americanos “condenados” desde o início das suas vidas à desigualdade social e a constantes negligências judiciais, e “Just Mercy” não esconde para o que veio: lançar uma espécie de sermão acerca desta temática e reforçar a emergência no combate ao racismo estruturado num país que se autoproclama: “terra de oportunidades iguais”. Há uma convencionalidade na forma como deposita o seu statment, de como esclarece o seu lado de “filme de tribunal” sem um esforço necessário para abordar a falsa-burocracia, recorrendo sem resistência à emoção lacrimante com o apoio incondicional da música fácil e manipuladora.

Fan_Cretton-Jordan-Foxx_JustMercy_blog_20200109.jp

Destin Daniel Cretton na rodagem com Michael B. Jordan e Jamie Foxx

Sim, até aqui perceberam, “Just Mercy” é um filme calculado e executado para brilhar no paladar das massas e, como acréscimo, triunfar na temporada de prémios utilizado as suas questões sociais e políticas em doses sentimentais. Contudo, há que salientar uma oportunidade perdida do guião em explorar o paralelismo com best-seller To Kill a Mockingbird” (“Mataram a Cotovia”) de Harper Lee, o qual o filme localiza a sua ação na terra natal da escritora mundialmente eternizada por esse clássico de literatura norte-americana.

Porque mesmo passados 60 anos desde a sua publicação, a personagem de Atticus Finch (curiosamente, também um advogado na defesa de um afro-americano condenado por um crime que não cometera) mantêm-se na ficção como o mais icónico ato de heroísmo racial. Em "Just Mercy”, a certo momento, questionam ao protagonista se ele já visitara o museu em homenagem à escritora conterrânea. A resposta foi negativa, porém, neste caso, era o filme que teria a obrigação de visitar, assim como revisitar vezes sem conta, para demonstrar que mesmo com o “livro modelo“, a América continua com os seus “podres” nos lugares cativo.

Resquícios da Guerra Fria no ringue …

Hugo Gomes, 27.12.18

MV5BOTU2Mzc0MzA0NV5BMl5BanBnXkFtZTgwMDM3NzY3NjM@._

Estamos em 2018 com uma nova geração, mas devemos partir para 1976 num tempo em que nos deparamos uma Filadélfia decadente, negligenciada e mergulhada em toda uma violência social.

Aí surgiu Rocky Balboa, pugilista de quinta categoria sem classe nem elegância no combate desportivo. Para alguns existe nele potencial, porém, fica-se pelas promessas porque vindo de um circuito pobre como esse, juntamente com a sua falta de ambição, longe nem sequer é considerado objetivo. Balboa é um verdadeiro underdog, até então passivo no seu próprio ambiente. Nesse mesmo ano, outro pugilista surge em frente aos nossos olhos, Apollo Creed, ele é o campeão por direito e, como tal, os desafios tornaram-se escassos. Como forma de marketing (visto que o boxe é um desporto cada vez mais em função disso), os publicistas decidem organizar um combate ao acaso, procurando fora da sua categoria, escolhendo, da mesma forma, um lutador da divisão abaixo.

O resultado caiu na escolha de Rocky. A história, toda a gente conhece, ou pensa conhecer, é bem diferente do que realmente aconteceu. Efeito Mandela? É. Rocky não venceu o combate com Apollo, o filme apenas celebrou a sua oportunidade, nada mais que isso, resultando num hino ao orgulho, acima das vitórias materializadas, o que foi redimindo nas sequelas que seguiram. Mas voltando a 1976, o público torcia pela personagem de Sylvester Stallone depositando nela um estandarte de luta entre classes, a resistência perante elites e a busca pelo “sonho americano”, traduzido nas origens nunca ocultadas por Rocky, ou The Italian Stallion.

Assim chegamos a 1985, com um quarto filme instalado no seu próprio contexto temporal, a Guerra Fria, obviamente cedendo a maniqueísmos evidentes. O conflito entre duas nações emprestado no combate corpo-a-corpo entre dois pugilistas, de um lado o “americano” Rocky sob as promessas de vingança (Apollo Creed foi morto no ringue pelo seu adversário) e do outro o orgulho soviético Ivan Drago (interpretado por Dolph Lundgren). À partida, esta sequela musculada e esteticamente vibrante serve de apoio para esta continuação do bem-sucedido spin-off onde Creed, filho do falecido Apollo, atesta-se como um campeão mundial, contando com o agora reformado Rocky no canto do ringue. E é então que o passado persegue. Ivan Drago regressa, apresentando o seu filho (o lutador Florian Munteanu), constantemente treinado como um cão de guerra, para uma luta a favor da estima perdida.

CREED-II-DOLPH-LUNDGREN-El-Palomitrón.webp

Mesmo retornando aos ecos da Guerra Fria, que por sua vez nunca abandonaram Hollywood, “Creed 2” apresenta-se como um determinado jogo de legados tendo como o boxe a mais romantizada das suas catarses. Mas algo falha aqui, e não mencionamos a falta que Ryan Coogler faz na direção, um realizador sobretudo tecnicista que atribuiu no filme de 2016 um brilho que se poderia ter esgotado na pré-produção (o substituto Steven Caple Jr. falha na narração, mas solidifica a espetacularidade), até porque recuperar Stallone e a sua mais querida personagem após a melancólica despedida de 2006 (poemas másculos e triviais convertidos a um soneto motivacional) torna-se num gesto ingrato e oportunista. Enfim, o que aconteceu com os novos desafios de “Creed” é que não nos deparamos com o velhinho reconto da ascensão. A personagem de Michael B. Jordan (possivelmente um dos carismáticos atores da atualidade) encontra-se no topo, favorecido, frente a um némesis criado com um só objetivo, vindo de um ambiente que Rocky tão bem partilha em 1976. A juntar a esta equação, a relação frívola com o pai (porta aberta para epifanias de paternidade).

Com isto, vai-se desencadear o seguinte: o espectador apercebe-se que “Creed 2" embica numa jogada de patriotismos escondidos com teorias “batidas” da conspiração embutidas, ao invés de manobrar as emoções impostas no primeiro round. Resultado, caímos no desnecessário para todo um legado, com Sylvester Stallone a servir de gancho para ambos os franchises, e um filme corriqueiro para com a sua receita de eleição. É sim, uma história de ascensão … ou será antes de (re)ascensão, prometendo às audiências um reencontro entre gigantes (a primeira partilha de ecrã entre Dolph Lungdren e Stallone está ao nível das conversas de café entre De Niro e Pacino em “Heat”, de Michael Mann), uma desconstrução do estigma yankee a russos (reprovado) e toda uma teia de relações quebradas e restauradas (o foco devia estar apontado ao inimigo ao invés do protagonista sem nada a perder).

Mas no fim, é isso mesmo: promessas, jabs e uppercuts. Um campeão insuflado.

Fantastic Four (2015): apurando as causas do "atentado"

Hugo Gomes, 29.01.17

fantasticfour2015.jpg

Tendo em conta o hype negativo que o afronta e as notícias saídas da "tumba" que nos demonstram uma produção complicada, quase digna de um futuro documentário, este Quarteto Fantástico não é pior, nem melhor que muitos dos produtos que nos são sugeridos do Universo dos super-heróis de comics. Aliás, atrevo-me a dizer que a própria Marvel, enquanto estúdio já nos presentearam exemplos bem mais degradante, basta só verificar alguns dos filmes-a-solos com narrativas apressadas cuja existência serviram para um único propósito - The Avengers.

O grande problema deste falhado filme de Josh Trank, para além da fama adquirida, é a constante "batata quente" nas culpas, e obviamente o interesse quase comum de uma das importantes séries de banda-desenhada da Marvel integrar o seu, por direito, Universo Cinematográfico. Há muitos factores que poderíamos explorar para o insucesso da fita, mas uma coisa é certa, este Quarteto Fantástico tentou a diferença de alguma forma, começando por esquivar dos lugares-comuns do porte e anti-socializar da homogeneidade que estes produtos têm sido alvo.

Tudo começa com um filme negro, isente de pingos de comédia (e cameos de Stan Lee), quatro jovens actores "embrulhados" por promessas de potenciais carreiras futuras e a credibilidade, sim, a vontade de Trank de executar uma ficção de cientifica, acima dos vínculos do comics. O realizador de Chronicles havia citado que cobiçava levar o Quarteto Fantástico a território de Cronenberg, como o "body horror" de The Fly por exemplo, e o que consegue é apenas um invocar dessas extensas fronteiras. Talvez seja por isso, que Fantastic Four fuja do ambiente pitoresco e colorido do diptíco de Tim Story e de que modestos sucessos haviam culminados, nesse sentido eis um dos mais violentos e negros da sua classe. Porém, o elefante ainda se encontra bem presente na sala, demasiado grande para ser ignorado, e depois de um início bem envolvente e enraizado na veia de ficção científica, o filme de Josh Trank começa a evidenciar os seus legítimos problemas, entre os quais, uma grave crise de identidade.

Após o fim do primeiro acto - a introdução das personagens ao universo adaptado - o filme começa a contrair uma tendência de "crowd pleaser", aliás tudo se resume a um filme de super-heróis, e não existe heróis sem o habitual plano de salvação do Mundo como nós conhecemos. E é a partir daí que tudo corre a passos largos, deixando de lado qualquer ênfase e literalmente "despachando" todo o enredo e introduzindo um vilão descaradamente intrusivo à narrativa. Pois bem, o resultado neste perdido terceiro acto que evidencia os propósitos comerciais por parte do estúdio e envolvidos, é que este "onírico sonho" de dimensões paralelas e os seus artefactos científicos, assim como uma revolta anti-NASA (para contrariar a tendência de coadjuvação), foi vítima de inúmeros factores saídos das "câmaras de horror".

São os "meninos" malcomportados que desafiam realizadores, por sua vez oprimidos por estúdios dominados por produtores que vêm os seus filmes como meros produtos de comércio a grande escala, como um videojogo tratasse, e os espectadores cada vez menos conscientes de que o cinema não é sinonimo de portes nem universos partilhados, nem sequer fidelidade com a matéria-prima. A criatividade é assim subestimada, até porque o desejo global é de ver Fantastic Four inserido na franquia da Marvel / Disney Studios. Resumindo e concluindo, uma tentativa falhada por consequência de diferentes factores, mas com potencialidades para algo mais do que o título adquirido de "pior filme do ano". Mesmo assim, um desperdício de talentos.  

"How did we get this far? Human beings have an immeasurable desire to discover, to invent, to build. Our future depends on us furthering these ideals, a responsibility that rests on the shoulders of generations to come. But with every new discovery, there is risk, there is sacrifice... and there are consequences."