Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"
Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro
Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.”
Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.
Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.
O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.
Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.
Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.
Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.
Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?
Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.
Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.
A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.
Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.
E se concorressem ao ICA...
Não havia tempo sequer…
"Diários de Otsoga" (2021)
Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?
Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.
O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?
Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.
O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra.
Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.
Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.
Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.
Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.
Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?
Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.
"Diários de Otsoga" (2021)
Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.
Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.
Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?
Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.
E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.
É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?
As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.
Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?
Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.
Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.