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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Sangue e a Cidade

Hugo Gomes, 08.03.23

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Após seis filmes enquanto assassino-protagonista, Jason Voorhees [“Friday the 13th”] migra para Manhattan continuando a matança em largos número, por sua vez, após assumir a propriedade de “Scream” do falecido Wes Craven e do argumentista Kevin Williamson, a dupla Matt Bettinelli-Olpin / Tyler Gillett decide transportar Ghostface para Nova Iorque para uma eventual “mudança de ar”. Em certa parte funcionou com o terceiro filme, ambientando o dito slasher pós-moderno e desconstrutivo em terras de Hollywood (mesmo que a ausência de Williamson fizesse sentir na intriga), e inspira neste novo modelo da saga que pouco ou mais nada tem a acrescentar. 

É correria e facaria, de pés assentes na sua nostalgia herdada e piscadela de olhos a novos públicos (adeus Neve Campbell, olá Jenna Ortega) seguindo o manual de “como conquistá-los”. Para isso recorre-se a um capítulo graficamente violento (o mais explícito de toda a franquia) e um “punhado” de easter eggs que nos transporta para uma montra memorialista quanto aos restantes filmes (união geracional, operando num só uniformizado). Bettinelli-Olpin e Gillett “brincam” à Wes Craven, mimetizando tiques e toques e atentando com “chico-espertice” o seu legado, sem os refrescos necessários para construir um próprio, porque o desejo é mais simples que isso (prestígio em tão pouco esforço). Contudo, comparativamente ao filme anterior [o inequívoco “Scream” apenas], é mais confiante, desenrascado e ritmado (a sequência no metro é das visualmente mais bem-sucedidas em toda esta confusão, quase redimindo a obra), para esboçar velhas fórmulas, praticadas uma e outras vezes, a caminho de uma exaustão (e com uns quantos plot holes). 

Depois disto, e seguindo a trajetória de outras sagas slashers, daqueles que tanto adoram invocar, o Espaço é possivelmente a última fronteira e o seu degredo final (se realmente acontecer, leram aqui primeiro). 

"What's your favorite [elevated] scary movie?"

Hugo Gomes, 13.01.22

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Não há nada melhor que uma boa facada! Pelo menos é isso que nos querem tentar vender.  

Em cada prelúdio, a saga “Scream” nos brinda com um aperitivo daquilo que veremos posteriormente (um “teaser”, em recorrente linguagem mercantil), seja o engodo do filme inaugural de 1996 (com Drew Barrymore a ser esquartejada pelo misterioso assassino), seja na última sequela – “Scream 4” (a derradeira estância dirigida por Wes Craven e escrita por Kevin Williamson) – a protagonizar e a ironizar o teor meta com “reboot” como palavra em voga.  

Neste quinto “Scream”, integrado na irritante tendência da chamada “requel” (a tal sequela / reboot que traz de volta antigos protagonistas em favor à nostalgia), a entrada nos serve como uma contradição do popularizado termo de “elevated horror” (terror em vestes sociais e psicológicos, vulgo “terror de prestígio"), o qual a vítima (Jenna Ortega), perante o quiz mortal e habitual do assassino, revela predileção por “Babadook” de Jennifer Kent (uma obra australiana que foge dos eixos industriais do género que a saga usa como referência). Este tal “elevated horror” levanta questões quanto à sua própria definição, dando a entender que um cinema articulado por novos nomes do género como Jordan Peele, Robert Eggers ou Ari Aster (mencionando alguns dos mais mediáticos), desagua das convenções do estabelecido cânone por se apresentar uma proposta apelativamente mais complexa que o habitual.  

É presunçosa e redutora essa observação, visto que o horror ostentou, à sua maneira, com astúcia e por vezes em conotações políticas (“o único cinema político é o cinema de terror”, confessou-me o cineasta colombiano Camilo Restrepo na edição de 2021 do Indielisboa), tudo embrulhado em subcontextos disfarçados com o lado escapista de algumas destas obras. Colocar um acento no “elevated horror” é esquecer que um dia existiu “The Exorcist”, “Rosemary 's Baby” ou mesmo um “A Nightmare on Elm Street” como “antecessores” deste herdado “Scream”. 

A menção do último filme não foi em vão, Wes Craven prestou-se a ensaios sociopolíticos vincados no seu artesanato de sustos, e para tal basta repescar o crescendo “The People Under Stairs” (1991), filme que consolida um passado racial tenebroso dos EUA e o exorciza com um presente reprimido que apenas atenua temporariamente os seus antagonistas. Esse mesmo filme tem conseguido nos últimos tempos “abocanhado” lentes atuais para se assumir como um cenário de uma América oculta e, secretamente, perversa. Ou até a saga “Scream” tem servido como um exercício de auto-reflexão e meta-referencial aos elementos que se vulgarizaram no subgénero slasher (tendo conhecimento que o realizador havia tentado tal abordagem, dois anos antes, com “New Nightmare”, que ao contrário de “Scream” resultou num fracasso de bilheteira), sendo que essa mesma introspecção ressuscitou o estilo para as novas gerações e auxiliando uma nova vida ao terror geral. Possivelmente, e reforço no “possivelmente”, não existiria “Get Out”, nem “Hereditary” ou “The Witch”, se o “Scream” não tivesse revitalizado a força do terror na indústria (é tudo uma questão de mercado), o que torna disparatado a utilização de um novo filme como antídoto da sublinhada "intelectualização" do terror (uma terminologia elitista e quase higienizada ao universo em si)

A dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett (“Ready or Not”) mimetizaram uma tese de igual forma que replicaram uma fórmula anteriormente conduzida a quatro mãos (Craven e Williamson) e presunçosamente caíram num registo em contraditório para com os seus originais criadores. Wes Craven não foi um mero estafeta do slasher para “inglês ver”, assumiu-se mais que isso. Já “Scream” … peço desculpa “Scream 5” … apropria-se de um universo para reproduzir a velha sinfonia, só que a reflexão meta já havia sido citada e recitada nos últimos tempos, o que restou foi seguir o modelo que tanto satirizaram – a reciclagem da sequela-legado, ou simplesmente, neste caso bem “inserido”, “fan fiction”.

A cortina desce e a homenagem declarada ao velho mestre do terror é feita. Desconfio que este filme seja associado a um possível projetado por Craven, o uso das suas velhas personagens como alavanca para “novas frentes para as audiências futuras”. Contudo, o mais condizente tributo exposto aqui, sorrateiramente estabelecido na narrativa, é a devolução da “casa” enquanto símbolo de invoque ou impulsor de um clímax (“Last House on the Left”, “A Nightmare on Elm Street” e “The People Under Stairs”). Esgalhado, mas será que foi um gesto consciente? 

 

Beatas deixadas pela Fox com atenção à Disney

Hugo Gomes, 16.08.19

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Com as notícias de desmatamento do catálogo Fox por parte da Disney, entre as obras canceladas ou “mutiladas” à mercê da política “no smoking“, é gratificante ver um dos sobreviventes dessa remessa apresentar uma protagonista que fume casualmente. É um simples pormenor, uma pequena rebeldia contra a doutrinação “disnesca” (obviamente com isto não incentivando as práticas tabagistas) que soa como uma hipocrisia moral. E até nesse ato, o da causalidade, é raro em produções de estúdio, muito mais nos produtos de género atuais, diversas vezes orientados para audiências que vivem os primeiros momentos das suas fases adultas.

Mas passemos ao filme, propriamente dito. "Ready or Not", que tem vindo a ser apreciado como a “surpresa do final de verão”, é um primo afastado de "Battle Royale" que tem como cenário a luxuosidade de uma mansão transladada de gerações a gerações de aristocratas. Uma higienização dos “ricos” que vai ao encontro das suas excentricidades para ocasionalmente expor uma lâmina crítica a esse 1%.

Nessa memória invocada, relembramos o início da caça com "The Most Dangerous Game" (1932), do mesmo par de realizadores que eternizou-se com "King Kong" (1933) - Irving Pichel e Ernest B. Schoedsack - ou a alienação de Brian Yuzna a classes avantajadas como seres de outra dimensão em "Society" (1989), enquanto que "Ready or Not" usufrui dos meios para compor outros fins. Até porque o retrato satírico e algo caricatural é enaltecido pela seu próprio desejo de júbilo e é pena, porque até teríamos aqui um discurso sobre a normalização da violência, hoje tido como “heresia” às susceptibilidades sociais confrontadas com os eventuais massacres que os EUA têm sofrido ("The Hunt" da Universal não foi poupado dessa sensibilidade).

Enquanto isso, a protagonista Samara Weaving tenta levar a bom porto este exercício de ritmo gratificante, ao mesmo tempo que uma plastificada Andie MacDowell devolve-o à canastrice, assim como a sua realização. Sensação de pouca dura, como tem sido habitual neste verão de escassez.