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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Reparação Histórica?

Hugo Gomes, 26.11.24

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Às portas do meio académico, fora das paredes onde o debate em torno do acesso ao conhecimento se prolonga entre jovens pensadores e outros interlocutores, discute-se a vinda de 26 artefactos históricos do Louvre para o Senegal. Entretanto, um vendedor de rua organiza os seus livros numa estante improvisada — um simples manto estendido no chão, para sermos mais precisos. Sem grandes preâmbulos, a câmara instala-se nesta sua “montra”, onde vemos obras de Voltaire, Rousseau e até Petitfils, partilhando espaço com o inevitável Cheikh Hamidou Kane. Trata-se de uma espécie de utopia filosófica ilusória, em que o pensamento ocidental ainda predomina, obscurecendo a riqueza do pensamento subsariano. A imagem que se desenha, porém, é derrotada pelas intensas discussões que envolvem as figuras em cena, os tais académicos ou livres-pensantes. Fala-se desde reflexões e críticas sobre a natureza da “doação”, até ao conceito ocidentalizado de museu e à pertinência destes objetos museológicos no Senegal contemporâneo. Por entre este emaranhado de ideias, surge uma tertúlia pontuada por perguntas sem resposta e respostas sem as perguntas adequadas.

Dahomey”, o premiado documentário de Mati Diop (“Atlantique”) - Urso de Ouro em Berlim - vive deste olhar, desta análise, desta (a)provação. Não se trata de um discurso único nem ditado por agendas, o filme repousa nos jovens, sedentos de ideias e visões culturais pan-africanas, e é precisamente na sua inquietação que o documentário encontra o seu devido tom. Não há certezas absolutas, mas sim incertezas deliberadas. Reparações históricas? É fácil falar delas, mas o que significam verdadeiramente?

Fazendo um breve parênteses, recordo da busca do maliano cineasta Manthia Diawara da casa arquitetada por Ângela Ferreira no seu “Maison Tropicale” (2008). O artefacto de interesse cultural foi removido no fim da era colonialista e transladado para um museu europeu. Num dado momento, o filme debate-se sobre a possibilidade de uma devolução, porém a aceitação do projeto num museu estrangeiro como uma forma de preservação, perante as frágeis instituições do Mali e a sua incapacidade de proteger a própria história, é colocada em cima de mesa por alguns naturais, nomeadamente acadêmicos do ramo. O que clarifica que o assunto “Reparações Históricas”, por vias de um retorno cultural, não é consensual até mesmo nos países interessados.

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Feito o parênteses, voltando a “Dahomey” [título alusivo ao extinto Reino de Daomé], Mati Diop começa a sua “viagem” com uma certeza: o regresso dos 26 artefactos de Paris ao Benin, Senegal, o seu esperado “regresso a casa”. O filme adota uma abordagem semi-wisemaniana, observacional e sem interações diretas, mas com uma câmara atenta que, mesmo sob curto tempo de antena, incide criticamente sobre o museu e o processo de restituição. Nesse sentido, faz lembrar o esforço hercúleo de Nicolas Philibert em “Louvre City” (1990), mas num sentido inverso, e não o descarte de um fragmento de um vasto acervo.

Diop, no entanto, tenta apelar a um chamamento ancestral a toda esta recolocação. Há uma estátua — o número 26 — que, como num debate existencial, parece ecoar uma voz numa eternidade obscura. Existe um lado xamânico, característico do cinema de Diop, que anseia libertar-se, uma vocalização que transcende o tempo e o Homem. Contudo, esse elemento reforça um lugar-comum: o da África mística, incompreendida. Este chamamento parece supérfluo em relação ao que o filme realmente procura estabelecer: o foco numa discussão essencial, por vezes, desvirtuada por radicalismos oriundos do Primeiro Mundo. Um megafone dando ao espiritualismo desvirtua esse vínculo para com Mundo real e físico, onde estes objetos e as suas culturas se inserem. 

Em “Dahomey”, os verdadeiros protagonistas falam por si, sem depender de intermediários. Nós, espectadores, limitamo-nos a ouvir e a refletir.

A Morte em vários estados no Festival de Cannes

Hugo Gomes, 18.05.19

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Être vivant et le savoir (Alain Cavalier, 2019)

A morte manifesta-se de diferentes maneiras aqui em Cannes, a começar pela simulação de Alain Cavalier que em “Être vivant et le savoir” [Fora de Competição] experiencia o fim, mesmo indiretamente, através da resistência de uma velha amiga sua perante o cancro. Luta que acabará em tragédia e nisso, Alain Cavalier, sem medos de utilizar o seu modelo de cinema-manual, expõe o intimismo, os pensamentos e uma dor controlada com a perda de outros (o seu mundo desaba perante os seus olhos).  A morte anda de lado com este novo trabalho do realizador de “Thérèse” e “Irène”, não só pelos fatídicos eventos filmados por Cavalier, como também a sua reimaginação para com o seu próprio fim. O realizador passa para o outro lado da câmara e, após a finalização do seu monólogo, suspende a respiração. Por breves minutos, os espectadores assistiram à queda do cineasta, o seu abraço correspondido com a morte que o cerca. É um filme-testamento, sentimos isso.

Após uma breve introdução de Thierry Fremaux, o poeta (tal como o diretor artístico de Cannes o apelida) entra em palco e emociona-se com a calorosa recepção com que a Sala Bunuel o recebe. Discurso feito e sai inesperadamente da sala. Só depois do filme é que percebemos a sua atitude. A morte aproxima-se cada vez mais e não vale a pena invocá-lo desnecessariamente.

E a morte persiste em outras propostas do festival. Ken Loach procurou no seu cinema característico responder indiretamente a indiferença das sociedades modernas com este tópico. Depois do vencedor da Palma de Ouro, “I, Daniel Blake”, Loach regressa à Competição com “Sorry We Missed You”, onde analisa através de uma família nas suas plenas dificuldades financeiras e sociais, um novo tipo de trabalho precário. O surgimento da “economia gig“, segundo o realizador nas suas notas de imprensa, que veio originar uma nova e disfarçada forma de “escravatura”. O que é que isto tem de relacionado com a morte? Simples, é um filme que ataca uma certa ideia persistente nas sociedades ultra-capitalistas: “temos que trabalhar até morrer”. E que vida é essa, se passamos grande parte dos dias a trabalhar, a gerir horas, a conseguir subsistir através de contratos cada vez mais apertados e sempre monitorizados pela tecnologia. 

“Sorry We Missed You” usa essas questões e oferece-nos um filme-exemplo que facilmente poderia entrar em território panfletário, não fossem os seus atores, meros desconhecidos que vêm para a Croisette provar através de uma intensa carga dramática, que merecem um lugar neste universo chamado Cinema

Mas também a morte é o inexplicável, o sobrenatural e o fantasioso. “Atlantique”, uma das obras que aguardávamos com mais expectativa na Competição Oficial, trabalha com o prenunciado fim como o recomeço. Numa cidade costeira do Senegal, a tragédia também faz parte dos romances proibidos, quase shakespearianos, e os fantasmas deambulam na noite como gatos pardos oriundos do mar que se encarregam de guardar os corpos. Dirigido pela atriz Mati Diop (“35 Shots de Rum”), “Atlantique” é um novo exemplo do dispositivo Apichatpong Weerasethakul: a naturalidade com a sobrenaturalidade existente. Mas fora isso, estamos perante um belo filme que oscila pela terra e pelo longínquo e desconhecido oceano, para mais uma vez “tocar na ferida” da questão dos refugiados. Esse vai-e-vem ao improvisado cemitério marítimo para chegar a terra firme, como espíritos de assuntos pendentes, é feito com graciosidade.