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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

10 Anos depois ... Nolan sonhou, a obra concretizou

Hugo Gomes, 12.08.20

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A regressar aos cinemas antes da estreia do novo "Tenet", o primeiro "blockbuster" da era COVID-19, “Inception” (“A Origem”) parte da extensão de um certo gesto autoral vindo do realizador Christopher Nolan, que dentro de um sistema industrial megalómano tem vindo a demonstrar um toque pessoal conciso na ressurreição da grande produção "hollywoodesca", que vem da trilogia “The Dark Knight”.

Estamos a referir-nos à sua temática de tempo & memória, aqui evidentemente esboçada no contexto dos sonhos servidos de objetivo a um mímico "filme de golpe". E assim começamos com o plano engendrado num elenco de luxo (Leonardo DiCaprio, Cillian Murphy, Marion Cotillard, Ellen Page, Michael Caine, Tom Hardy, Joseph Gordon-Levitt, Ken Watanabe), que funciona no seu coletivo enquanto Nolan trabalha para lhes conceder um cenário de ação física e hiperativa, jogando igualmente com as equações matemáticas que se difundem na narrativa.

Passados 10 anos, “A Origem” continua a demonstrar a força convicta de uma produção arriscada, de um uso generoso de efeitos visuais (nunca cedendo à artificialidade computadorizada) e da banda sonora de fulgor épico-pop, como parece ser habitual vindo da assinatura de Hans Zimmer. Não nos enganemos: esta megaprodução opera os lugares cobiçados do cinema espetáculo a grande escala, mas assume essa grandeza sem nunca perder um norte.

Há uma década, vimos em “A Origem” um tipo de ensaio operático que não se testemunhava há “séculos” na Sétima Arte. Chegou no preciso momento em que o facilitismo entrou porta adentro na cadeia produtiva (sublinhamos a “pornografia” CGI, mas também a exploração do filão 3D pós-"Avatar"), com os autores no cinema, estivessem ou não sincronizados com as tendências de público, a serem esmagados pelos ditames do marketing planeado por comités anónimos. Nesse sentido, é fácil de encontrar o ponto de fascínio deste tremendo "blockbuster" que é "A Origem": nunca ceder à padronização do espectador e tentar, mesmo dentro dos acordes do que encaramos como espetáculo, criar um exercício de engenho pronto a ser interpretado ou encriptado.

O seu dúbio final continua a suscitar debates, teorias e fórmulas para o tentar decifrar. Ao fim destes anos, não tenhamos dúvidas que o filme mantém o seu impacto, nos espectadores e na indústria, uma raridade que se destaca entre as cada vez mais débeis produções de grande escala das "majors" de Hollywood. Sem negar a importância de “A Origem” no rumo do cinema atual (na conceção circense ou meramente na moldável natureza da indústria, além da estética de epopeia agora cobiçada até à sua exaustão), como aconteceu com o "Jaws" de Spielberg há 45 anos, Christopher Nolan revolucionou uma forma de se fazer e vender filmes para massas, sem nunca desprezar o seu intelecto.

Essa tem sido a sua grande obra, mesmo que o ego tenha caído para a exibição pura nas posteriores “escapadelas” por diferentes géneros, da ficção espacial de “Interstellar” ao bélico frenético de “Dunkirk”. No balanço, “A Origem” continua a ser um dos belíssimos "blockbusters" do século XXI.

"Gueule d'ange", de anjo só de cara!

Hugo Gomes, 19.02.19

A facilidade com que ficamos horrorizados com retratos de pais negligentes, e muito mais com mulheres sem aptidão maternais, torna-se num dos trunfos choque de “Gueule d'ange'', a primeira longa-metragem da luso-descendente Vanessa Filho. Todavia, é esse julgamento instantâneo da nossa parte que esconde um certo sentido patriarcal, como se todas as mulheres dessem boas mães ou como se todas mulheres sonharam ser mães. Não estou com isto a perdoar as irresponsabilidades da personagem de Marion Cotillard, que nos apresenta um agravado estereótipo da mãe ausente, que só pensa em folia e não tem disposição para compromissos maternais – comportamentos que irão refletir-se no seu rebento, que sustém numa distorcida estrutura familiar.

No arranque deste filme percebemos o que nos espera: uma mãe embriagada que cai como peso morto na sua própria cama, pedindo à sua criança uma canção de embalar. São os papéis invertidos representados naquilo que parece um pedaço de ternura marginalizada, mas de ternuras também está o inferno cheio. “Gueule d'ange'' é uma coletânea de infâncias traídas e maturidades forçadas frente a imaturidades voluntárias. Caímos que “nem uns patinhos” nas referências e influências entranhadas desse mesmo Cinema, desde Little Fugitive, de Ray Ashley e Morris Engel (a promessa de Coney Island trocada pela promessa do Carnaval), até “400 Coups”, de Truffaut (a mentira, “a minha mãe morreu”), passando por “Nana”, de Valérie Massadian (a emancipação imediata da criança) e porque não, o recente “The Florida Project” (a criação de uma realidade em separado para a distância do mundo adulto).

Vanessa Filho prova ser conhecedora desses mesmos códigos e estranhando no universo Lolita tece uma “naperon” por uma existência deslocada, emitida por um crescimento anti-natura. “Gueule d’ange” atesta-se em planos fechados, um cerco claustrofóbico que rodeia estas personagens atípicas, que dispersa-se por aberturas cénicas após o crucial desaparecimento maternal. Com isto, a realizadora distancia a mãe e filha simbolizando esse afastamento através de uma planificação mais ampla. Há sim, uma linguagem que as une (as personagens e Vanessa Filho), uma espécie de código morse para mantê-las a sãs e salvas dos julgamentos reacionários dos espectadores, um trilho seguro para que as distorções afetivas e familiares deparam-se com o seu pathos.

Elli, as “fuças de anjo”, interpretada pela jovem Ayline Aksoy-Etaix, a menina-adulta sem conhecer as razões da sua instantânea emancipação, projeta a sua carência em estranhos, em lugares-comuns captados pelo seu olhar em plena aprendizagem e, por fim, pela influência dos Medias e da exaustiva informação jogada por esses meios. A distorção faz parte, não apenas do mundo de Elli e da sua mãe, mas do mundo em geral, ideia repensada pela inocência e não-inocência das crianças.

Gueule d'ange'' pode ser um filme incumprido pelo síndrome de “primeira longa-metragem”, mas é um projeto dotado de iniciativa, ideias e sobretudo uma motivação para criar o seu próprio simbolismo. Não tem pinta de ser “amado”, convenhamos salientar, nem as suas personagens.

Arnaud Desplechin entre fantasmas e géneros. Uma conversa em torno de Ismael

Hugo Gomes, 17.10.17

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Arnaud Desplechin dando direções a Marion Cotillard na rodagem de "Les fantômes d'Ismael" (2017)

Arnaud Desplechin é um dos nomes mais frutíferos do cinema francês, e um dos cada vez mais prestigiados. A prova está na escolha de um filme como “Les fantômes d'Ismaël” (“Os Fantasmas de Ismael”) para integrar a abertura do mais mediático dos festivais de cinema, Cannes. Um filme multifacetado que reúne todo um conjunto de géneros e nuances ao serviço de uma só ficção, um experimento artístico que entra em contradição com o elenco e a produção estrelar. Desplechin foi o padrinho da 18ª Festa do Cinema Francês, a qual lhe dedicou uma retrospectiva que visa refletir sobre a sua obra, as suas influências e referências. 

O realizador falou-me do seu mais recente filme e de que maneira ele desafia o costume de géneros implantados por Hollywood e globalizados até aos dias de hoje.

No papel, Os Fantasmas de Ismael é um filme muito complexo e multifacetado. Como concebeu ou surgiu a ideia, digamos assim, deste seu novo trabalho?

Tudo começou com linhas separadas, nada de relacionado entre si, que depressa evoluiu para a história de um cineasta que tenta escapar ao seu próprio filme. Contudo, durante o desenrolar do guião, que ainda não era bem um argumento, vi o filme de Miguel Gomes, “Mil e uma Noites”, e recordo que no início tínhamos o próprio realizador a fugir do filme. Pensei, “era quase isto que eu queria, mas mesmo assim vou avançar, a minha ideia será diferente”. Então a minha ideia tornou-se em algo assim, um realizador que escreve um filme sobre as memórias do seu irmão, convertendo-o numa história de espionagem, isolando-se numa casa vazia onde debate os seus fantasmas e recordações com o seu produtor. Foi assim o primeiro rascunho.

Depois de terminar “Trois souvenirs de ma jeunesse” (“Três Recordações de uma Vida”), cujo elenco foi composto praticamente por desconhecidos e principiantes, decidi que com este novo filme iria trabalhar com um elenco de luxo, estrelas do cinema francês. Ou seja, com a experiência que adquiri a dirigir inexperientes, queria testá-la em trabalhar com experientes.

Depois do primeiro rascunho, não como veio, mas dei por mim a imaginar uma personagem a passear na praia, batizei-a instantaneamente de Carlotta, que abordada uma mulher desconhecida. Carlotta pergunta se Ismael está com ela. Ela responde que não e sucessivamente Carlotta afirma “é porque ele não gosta de nadar”. “Como sabe?” e a mulher responde “porque eu sou a mulher dele”. E a partir daí trabalhei com o facto deste realizador ser viúvo, ou pelo menos a acreditar que o é durante 20 anos, e que de um momento para o outro, enquanto tenta refazer a sua vida amorosa, Carlotta regressa à sua vida. Neste sentido, esta personagem tenta esquecer o seu antigo amor voltando a uma relação e este encontro inesperado leva-a ao dilema; continuará com o luto, voltar para a sua antiga mulher, ou seguir com o seu novo amor?

Foi a partir desta sequência, a qual imaginei e reproduzi no filme, que tive completamente a certeza de que história queria contar, de que personagens iria retratar e quais situações iria abordar.

Relembro que em Cannes, nas notas de produção, declarou que concebeu este filme da mesma maneira que Pollock concebeu as suas figuras.

Bem, há uma cena em que a personagem de Mathieu Amalric refere que “Pollock não é abstrato, são apenas imagens comprimidas”. Pretendia pegar em todo o tipo de ficções e comprimi-las de forma dar-me uma única ficção, a apologia das ficções. Um experimento, diria eu, diferentes géneros, diferentes histórias, unidas a dar origem a um só género e a uma só história. E essa experiência não ficou apenas na idealização do filme em papel. Aliás, a rodagem foi parte desse experimento, em cada semana eu virava-me para os meus atores e dizia: “nova semana, novo filme”. Ou seja, estava sempre a rodar um novo tipo de filme a cada semana.

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Mathieu Amalric em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

De certa forma, o filme não é uma rebeldia contra o sistema de catalogação de géneros imposta, principalmente, por Hollywood?

Diria que sim. Este “Fantasmas de Ismael” é uma revolta a esse sistema de géneros, porém, o meu próximo filme não o será. Aliás, isso faz parte da minha natureza, em cada projeto converte-se numa oposição ao trabalho anterior. Mas pensando bem, e olhando para os meus filmes anteriores, sempre fui um pouco contra a etiqueta do género. Por exemplo, o “Rois et reine” (“Reis e Rainhas''). Será um drama ou uma comédia? Um slapstick ou um melodrama? Sempre tentei criar uma unificação desses géneros nesse filme, principalmente em conformidade com a perspetiva de diferentes personagens. Em “Os Fantasmas de Ismael'' quis algo em grande. Diria pretensioso, mais que dois géneros, uma multiplicidade de tons que originam um só.

Falando em filmes anteriores, tendo em conta as referências de Vertigo, de Hitchcock, neste “Os Fantasmas de Ismael”. A sua filmografia é pontuada com uma busca identitária por parte das personagens, e até, quem sabe, de si próprio. Procura conhecer-se através da escrita e na conceção destes filmes?

Possivelmente. Quando escrevia “Os Fantasmas de Ismael”, de certa maneira, procurava qual a forma que estas personagens seriam. Não tive a certeza absoluta que Ismael seria um viúvo, tudo veio com o tempo, uma busca por essa identidade, e isso reflete se nas minhas personagens. Nunca gostei de personagens assertivas naquilo que são, prefiro aquelas que têm dúvidas acerca delas próprias. Em cada escrita de um guião, esta torna-se numa jornada em decifrar a identidade destas, um processo criativo e psicológico. E falando em psicológico, sempre gostei de personagens multifacetados, ambíguas para ser mais exato, e aqui a melhor prova é a personagem de Marion Cotillard. Ela é um “pequeno demónio” quando tenta reaver o seu marido. Contudo, na segunda metade do filme ela tenta reaver outro amor, o do pai. Então como se pode ver, ela passa de demónio a um anjo, mas não é uma mudança, são as duas faces que convivem num só indivíduo. Eu sou um adepto deste tipo de personagens. Personagens de várias faces.

Uma sequência que particularmente me fascinou foi a dança indominável de Marion Cotillard ao som de Bob Dylan. A seleção da música foi voluntária, ou foi mero fruto do acaso? [risos]

[risos] Quando escrevia o argumento do filme, imaginei essa sequência e automaticamente propus a música do Bob Dylan, “It Ain't me Baby”, sobretudo por causa da letra. É curioso uma música destas ser tão cruel, aliás, como grande parte do trabalho de Dylan. “Tu precisas de alguém para te proteger e defender, abrir-te todas as portas e janelas, não sou eu, baby, não sou eu”. O que significa, em perspetiva da Marion’, que Ismael não estará lá para a protegê-la, defendê-la, ou seja, não estará lá para ela. Ela é a “rapariga errada” para ele, e ele sabe-o.

Quanto à dança, pedi à Marion que dançasse selvaticamente, como fosse groove, ou rock, então eu trouxe outro CD, e nele estava o “Going Home” dos “Ten Years After”, com todas aquelas guitarras elétricas, e lhe propus, se conseguisse reproduzir o ritmo com Bob Dylan … ela respondeu-me automaticamente: Bob Dylan!? Eu consigo fazer «groovy»”. E é por isso que adorei trabalhar com Marion. Neste exemplo nota-se o seu talento, o facto de conseguir transformar aquela música numa sequência selvagem bem à sua medida.

Em relação a Mathieu Amalric? Tem sido quase o seu “ator-fetiche”, um co-trabalhador. Normalmente escreve uma nova personagem a pensar nele?

Não, cada filme, cada caso. Neste caso, encontrava-me bem perdido com o argumento, ainda não sabia exatamente o que pretendia e como pretendia e quem se iria encaixar nas personagens. Porém, enviei uma edição inacabada do argumento a um amigo e questionei-o em relação quem iria interpretar o papel de Ismael. Ele virou-se para mim surpreendido e disse: "Estás a brincar? Isto foi escrito para Amalric!”. [risos] Não tinha percebido quando escrevia, mas durante a rodagem constatei que Amalric era exatamente o indicado para este papel. Porque ele, assim como eu, gastamos todos os “truques”, todas as nossas façanhas para o concretizar. Ele foi feliz, patético, humorístico, violento, intrigante, burlesco, romântico, dramático … usou todo um conjunto de faces, tons, nuances, que quando terminamos o filme, ele veio ter comigo e disse: “bolas! Tu deste-me tanto neste filme, era mesmo isto que pretendia enquanto ator”. Agradeço-lhe muito por este filme, porque ele conseguiu exatamente unir todas essas distinções e colher uma totalidade interpretativa.

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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

E em relação à abertura de Cannes? A experiência?

Um misto de sentimentos. Por um lado fiquei bastante contente com o facto de Thierry Fremaux ter selecionado o meu filme para o Festival, mas a surpresa chegou quando percebi que fora o escolhido para abrir o certame. Fiquei perplexo. Contudo, acabei por descobrir que a noite de abertura é péssima para o Cinema. Eu tenho um ritual em Cannes, quando o meu filme é apresentado no Grand Lumiére Theatre costumo dar uma saudação aos cinéfilos que se encontram na bancada de cima. Naquela noite, tentei fazer isso e fiquei surpreso quando deparo com um amontoado de pessoas vestidas a rigor e nenhuma das “caras conhecidas”, os cinéfilos que costumo “ver” no Festival. Foi então que percebi que na abertura de Cannes não há cinéfilos, apenas convidados, e isso é péssimo para os filmes, principalmente para um filme como o meu “Os Fantasmas de Ismael''. A abertura não tem nada de relacionado com Cannes, é um evento completamente burguês, uma passerelle de vestidos e uma recepção muito fria. Foi uma experiência muito violenta.

Quanto a novos projetos?

Terminei o primeiro rascunho do próximo filme que vou trabalhar. Entrarei em território desconhecido na minha carreira, uma produção singular que bravamente entra num universo hitchcockiano. Não sei ao certo como aconteceu, mas apaixonei-me por um artigo de jornal. Um homicídio, para ser mais exato. Mais uma vez, apaixonei-me por aquele relato e devido a isso quero apenas focar nos factos … somente nos factos.

Este meu filme será um objeto completamente seco, despido do lado ficcional, mas ao mesmo devedor do estilo imposto por um The Wrong Man, de Hitchcock. Contudo, e frisando, muito mais seco. Comparo até com o livro “In Cold Blood” (“A Sangue Frio”), de Truman Capote, a apenas narração do real, do facto, não havendo espaço para imaginação e pelo suposto. Retratarei a condição da mulher nos dias de hoje, por isso espero criar uma atmosfera bem sociopolítica, nada parecido do que fizera anteriormente. Espero começar a filmar já neste Inverno.

A Festa do Cinema Francês vai-lhe dedicar uma retrospectiva da sua carreira. Isto, de certa forma, não o motiva a refletir sobre a sua carreira? Aliás, existe algo que se arrependa de ter feito, ou que nunca devia ter feito em relação à sua filmografia?

Estranho que pareça, nunca pensei na minha carreira, apenas no meu próximo projeto. Primeiro de tudo, porque nunca vejo os meus filmes.

Nunca viu os seus filmes?!

Depois de terminados, nunca. Até mesmo em Cannes, deixo passar os créditos iniciais e de seguida desapareço, melhor, escapo da sala. No final, sorrateiramente entro na sala, e recebo os aplausos. [risos] Já vi os meus filmes tantas vezes, mas tantas vezes na sala de montagem, que não tenho curiosidade nem gosto de revê-los no grande ecrã. Acho tudo uma questão de conforto.

O que realmente acredito é que depois de terminado, o filme deixa de ser meu passa a ser de quem vê, por isso não me vejo a pensar como poderia melhorar, ou o que poderia não fazer. Nada disso, não os vejo, o filme é vosso, façam o que quiser com ele.

Mas é muito emotivo ir às retrospectivas e aperceber até que ponto os meus filmes vão e de que maneira tocam em diferentes gerações. Lembro-me de ir a Beijing, numa retrospectiva, e encontrar jovens com os seus 20 e tal anos a afirmar que os meus filmes, de certa maneira, mudaram para todo o sempre. É emocionante ouvir tais palavras de alguém que é tão jovem, e de saber o quanto significa os meus filmes. 

O falso feminismo de James Gray

Hugo Gomes, 05.05.17

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The Lost City of Z (2017)

Com a chegada de um novo filme de James Gray, eis o reinício da batalha campal. De um lado, os aficionados do seu “cinema” (se assim poderemos dizer), da anunciação de um Messias dentro de uma indústria cada vez mais decadente (sim, podem apelidar-me de “drama queen“, se quiserem); do outro, aqueles que simplesmente desprezam ou que não entendem este fenómeno. Confesso que me integro no segundo grupo, e por mais chances que dou ao realizador nova-iorquino, acabo sempre por deparar em mais um ensaio de decorativismo, um homem que anseia sentar na mesma mesa de Coppola, Cimino ou de Scorsese, esses recriadores da Nova Hollywood, ao invés de seguir num percurso próprio. Enfim, do outro lado do campo bélico, são demasiados os adjetivos e elogios quase lisonjeadores à sua existência… mas aqui a questão não é a sua “sobrevalorização” ou “subvalorização”, conforme seja o partido que o leitor integra, mas sim, o debate em relação ao seu feminismo.

Os “grayanos” [chamaremos assim esta legião de adeptos] “meteram o pé na poça” quando atribuíram o título de “único realizador feminista da actualidade” a James Gray. Caros amigos, Gray pode ser muitas coisas, mas feminista não. Aliás, nesse mesmo tópico, sempre se revelara o contrário – um homem de fortes vínculos da sua masculinidade e nesse campo, por exemplo, serviu como uma âncora para a sua anterior obra: “The Immigrant”. No vaiado filme de Cannes que fez “chover rosas” em Portugal, o enredo focava um dos grandes fluxos migratórios nos EUA, com emigrantes vindos dos mais diversos locais, entre os quais, como no caso da protagonista interpretada por Marion Cotillard, da Europa do Leste. “The Immigrant” remexe então num lugar-comum, o Paraíso transformado num Inferno, onde a alma de uma “alien” (outro termo para estrangeira) é deturpada por uma entidade quase faustiana – neste caso, Joaquin Phoenix a servir de proxeneta.

Neste percurso quase ético e regido pelo fator de sobrevivência, ficamos à mercê de duas figuras ambíguas (sim, a nossa estrangeira não é flor que cheire), mas é na personagem de Phoenix que apercebemos essa compaixão masculina. Por mais “atrocidades” que esta personagem faça à protagonista, um poço de antagonismo adereçado num arquétipo comum, é diversas vezes desculpado por uma iminente cumplicidade entre realizador e personagem. Afinal o nosso Phoenix tece sentimentos para com a nossa Cotillard, mas o seu sentido de sobrevivência fala mais alto e ao de cima surge um oportunismo quase vilipêndio. Mas é aí que Gray trai-nos. Os seus sentimentos supostamente amorosos são realçados no último terço, sobrepostos nas intenções animalescas de Cotillard. São provas de amor, segundo Gray – o platonismo como desculpa para não odiarmos a personagem e para sentirmos uma compaixão, e por sua vez, o julgamento ético a Cotillard, simplesmente porque tudo é apresentado como uma questão de carisma. Phoenix ganha, a sua personagem vive, e a Mulher é salva pelo derradeiro ato de caridade.

A nossa intenção não era demonizar Phoenix e criar em Cotillard a mais angelical forma. O feminismo nada tem a ver com diferença, mas com igualdade (ou equidade), e sob essas mesmas linhas, porque não os mesmos traços de ambiguidade e antagonismo. Mas Gray torna-se paternalista em relação a Phoenix e no final, sentimos o pior dos sentimentos em relação à sua figura: pena.

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The Immigrants (2013)

No caso de “The Lost City of Z”, esse seu novo filme, o caso de masculinidade é mais agravado, até porque James Gray decide assumir-se como um feminista e o resultado é puro panfletarismo. A personagem de Sienna Miller é um espectro que dita constantemente um discurso de igualdade, uma preocupação quase "suffragette" militarista. Não verdadeiramente sentido como um ato próprio desta personalidade; ao invés disso, uma preocupação com uma agenda politica e um receio enorme pela onda politicamente correta e do ativismo persistente que hoje dita os nossos dias. Por outras palavras, James Gray é um cobarde, um homem regido por uma passividade moral e pior, caído nas modas diárias. Até porque isso faz parte da sua natureza, a de se inserir num grupo e não o de formar um novo. Em relação a Sienna Miller, temos a continuação da actriz como uma bengala de suporte feminino aos incontáveis heróis do seu tempo, tal como executara em “American Sniper” de Clint Eastwood.

Resumindo e concluindo, James Gray poderá ser tudo … menos um feminista.

Nicole Garcia, de atriz a realizadora: "Tudo nasceu do meu instinto."

Hugo Gomes, 02.03.17

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Marion Cotillard e Louis Garrel em "Mal de Pierres" (2016)

O “amour fou” (amor louco) de Marion Cotillard levou-a a ser uma das principais candidatas ao prémio de Melhor Interpretação feminina no Festival de Cannes de 2016. Apesar de não ter vencido, a mais requisitada atriz francesa do momento, ofereceu-nos uma personagem fascinante, perdida num romance, algures entre o sacrilégio e o sagrado, acidentalmente estampada na realidade e na fantasia. Para dirigir uma atriz deste calibre foi preciso uma outra atriz, Nicole Garcia, vindo da velha guarda do Cinema “gaulês“. Uma intérprete que descobriu um outro amor para além da representação, a paixão pela realização e do desdobramento das personagens que parecem ganhar vida no grande ecrã. Falei com a mulher por detrás de “Mal de pierres” (“Um Instante do Amor“), a adaptação do bestseller de Milena Agus, um desafio às próprias convenções do romance estabelecido.

Porquê a escolha do livro de Milena Agus? O que a fascinou nesta obra para a adaptá-la?

Sinceramente não sei. Quando comecei a ler o livro, apenas o fiz com o prazer da leitura e não no intuito de procurar o meu próximo filme. Foi recomendado por um amigo meu, aclamando que seria obrigatório “ler este livro de 2006“. Então fiz, comecei a folheá-lo no Aeroporto de Paris e o terminei durante o meu voo para Marseille. Admirada com esta experiência, corri logo em busca dos direitos da obra. Queria adaptá-lo para o grande ecrã e queria ser eu a fazê-lo.

Havia algo neste livro que me dizia muito, provavelmente o facto da protagonista ser uma mulher que pensa que todos os outros a recusam, cuja mãe constantemente a apelida de “louca“, chegando a fechá-la num hospital psiquiátrico e tudo. Mas no fundo, é uma mulher forte e selvagem, e essas características assustavam as restantes pessoas. Porém, mantinha uma certa fragilidade. Porque ela procurava algo sexual e sagrado. Para ela, como para mim, encontram-se no mesmo patamar [risos].

Mas ela conhece que tais oposições existem no seu todo, porque depara com tais descrições na literatura, nos livros que lê, assim como na vida.

Marion Cotillard foi a sua primeira escolha para o papel? Imaginava-a como a protagonista de “Instantes do Amor“?

Determinada a adaptar o bestseller, mentalizei-me que teria que ter a melhor atriz para começar. Teria que ser capaz de encarnar este mistério, algo que a própria ainda não havia explorado ainda, possuir um certo carácter indomável e ser, sobretudo, dura. Não cair no erro da melancolia e da doçura, até porque existe na personagem um desejo ardente que a mantêm forte. Então imaginei Marion Cotillard. E o resultado está à vista, ela conseguiu captar isto que referi nela, assim como muito mais. Um toque de sensibilidade humana. Vi nela a fazer algo idêntico como fizera na sua interpretação de Edith Piaf [“La Vie en Rose”], que fora um desempenho magistral por parte dela.

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Marion Cotillard e Nicole Garcia no Festival de Cannes, 2016

Acredita, que como realizadora, encontra-se melhor em cada filme?

Sim, acredito, assim como acreditava que no meu filme anterior - "Un beau dimanche" - também estaria a aperfeiçoar-me. Estou a melhorar no contexto da direção, assim como na maneira de contar uma história.

Nicole Garcia começou como atriz, mas agora parece ter abandonado o cargo para dedicar-se com mais tempo à realização. Deseja voltar a atuar?

Continuo sendo uma atriz, mas como dedico demasiado tempo na realização, o qual não sobra muito para a atuação. Mas continuo a ser uma atriz.

Ainda como atriz, trabalhou com alguns dos mais influentes realizadores do cinema francês, tais como Renais, Rivette, Tavernier ou Lelouch. Aprendeu alguma coisa com eles acerca da realização, ou seguiu algum conselho destes para esta arte?

Não. Porque quando era atriz, era o tempo todo somente atriz. Não tinha o desejo de seguir a realização. Aliás, nunca passava pela cabeça que um dia seria realizadora, nada disso. Tudo começou quando filmava uma curta-metragem, durante as minhas férias. Bem, mais um filme caseiro, uma pequena brincadeira, mas quando comecei a editar este pequeno filme, tive então a revelação. Foi na edição que me fez gostar do trabalho de realização. E foi quando estreei a minha curta em Cannes, senti-me determinada em elaborar a minha primeira longa-metragem.

Mas voltando à questão inicial, nunca recebi nenhum conselho, nem nunca aprendi com nenhum dos realizadores pelos quais trabalhei anteriormente. Tudo nasceu do meu instinto.

E como dirige os seus atores? Utiliza a sua experiência como atriz para os coordenar?

Apenas dirijo os meus atores nas duas primeiras semanas, falo com eles, dou-lhe conselhos, exponho aquilo que pretendo da personagem, mas depois o desenvolvimento nasce deles. Não me intrometo na sua atuação, nem tento controlar à risca a fluidez da personagem, esta tem que ser livre, portanto, porquê colocar travões. Até porque o meu objetivo é sempre contratar (muito) bons atores para os meus filmes. Pessoas capazes de dar vida às personagens que imagino.

Em relação a novos projetos?

O meu próximo filme será uma história contemporânea decorrida nos anos 50, e que remeterá o amor entre dois homens, mas não o tipo de amor “romanesco“, mas sim de natureza mais negra e provavelmente com ligação a um homicídio. 

"Sempre teremos Paris"

Hugo Gomes, 30.11.16

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Claro que a imprensa sensacionalista e cor-de-rosa apelidará, assim servindo de publicidade gratuita, esta obra de sequela não assumida de “Mr. And Mrs. Smith”. Em derivação de tal título estão os inúmeros boatos originados pela separação de um dos casais maravilha de Hollywood, Brad Pitt e Angelina Jolie, assim como os rumores de um possível caso do ator com a atriz Marion Cotillard no set. Verdade ou não, tema, esse não nos cabe julgar perante esta nova longa-metragem de Robert Zemeckis, um dos classicistas movie brats a operar em Hollywood (mesmo seduzido pela tecnologia o qual dispõe para inserir na narrativa, e não o oposto como muito blockbuster que anda por aí).

Mas de uma coisa essa dita imprensa acertou “na mouche”, de “Mr. And Mrs. Smith”, “Allied” tenta sobretudo replicar uma química entre Pitt e Cotillard, da mesma forma que o sucesso dependente de Doug Liman fez com o “ex-casal”, em 2005. Proposta falhada, visto que, primeiro, com Brad Pitt tornou-se impossível o estabelecimento de qualquer ligação, até mesmo amorosa vérité (veja-se o caso com Jolie em “By the Sea”). O reconhecido grande galã do seu tempo, converteu-se num ator fechado a qualquer vínculo, e em consequência disso, limitado pelo cansaço de fugir ao seu verdadeiro role play (o papel de ser o próprio Brad Pitt, de intérprete a globalizada socialité). Por sua vez, Marion Cotillard é uma faca de dois gumes, nunca fora devidamente aproveitada no cinema yankee, muito menos em grandes produções como este “Allied”. Aliás, a sua personagem polariza um certo “quê”” de Ingrid Bergman em terras de Tio Sam, ou seja, um feminismo “fogo-de-vista”que esconde um real facto, ser o interesse amoroso do nosso “herói”, e neste caso específico, uma espécie de macguffin que o faz correr num último terço bem apressado.

Como é possível verificar, “Allied” é uma fita que apostou sobretudo numa mediatizada dupla, mas que não soube compor, porque devidamente, nenhum dos dois está recíproco de tal demanda emocional. Quanto a referências, Robert Zemeckis apaixonado pelo fôlego algo perdido desse cinema clássico de uma idade de ouro que nunca mais será reproduzida, cita “Casablanca” em tudo o que pode. O célebre e popularizado “monumento cinematográfico” (possivelmente a obra que destroçou “Gone with the Wind” no estatuto de filme mais reconhecido da História do Cinema) é a estrutura óssea deste thriller de espionagem que joga com a duplicidade em estratagemas amorosos.

Até mesmo um final ocorrido num aeroporto sob as juras de despedidas de dois amantes faz invocar-nos essa memória cinéfila, da mesma forma que o piano sob os acordes de A Marselha instala-se como o pico de sentimentalismo indomável, recorrendo a essa fantástica viagem do passado. Por outras palavras, “Allied” é um filme de uma dotada herança de referências, porém, sem a imortalização dos mesmos, até porque o espectador mais atento sabe que tudo não passa de uma ficção, e o nosso “Casablanca” é agora uma memória coletiva bem real, da mesma forma que Paris é, a promessa idealizada de dois dos mais poderosos românticos da Sétima Arte.

Tão Só o Fim do Mundo, os autores, as suas fraquezas, solipsismo e os seus egos

Hugo Gomes, 22.10.16

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A difícil arte de ser Xavier Dolan, as complicações geradas por ser aclamado em tenros anos e consecutivamente ao longo da sua, até então, imaculada carreira. Se por um lado, ouvimos constantemente citações de historiadores e outros especialistas cinematográficos de que um “autor, até a obra mais fraca é melhor que tantas de outros realizadores“ [a política dos autores, génese teorizada pelos Cahiers du Cinéma], por outro, através de reflexões sobre o sentimento vivido por este “Juste La Fin du Monde” ("Tão Só o Fim do Mundo"), um outro conselho surge ao meu alcance: “quando se gosta de um autor, somos os primeiros a admitir que ele errou“.

Porém, antes de começarem com as “pedradas“, questiono o seguinte, será correto considerar o ainda jovem franco-canadiano Xavier Dolan, num autor cinematográfico? Porque não!? Contudo, não é esta a derradeira questão aqui envolvida, aliás, muitos esperam que o nosso “cineastazito” prove de uma vez por todos que é digno desse título (sendo que em “Mommy” já havia provado que as aclamações precoces não foram um erro). Mas em “Juste la Fin du Monde”, a recente obra que ganhou mediatismo com os “surpreendentes” apupos na sessão de imprensa de Cannes, existe um claro tom de “auto-estima elevada“. Talvez tenha sido esta sensação de “triunfo antes do sabor” que causou o maior choque entre o então adorado Xavier Dolan e os críticos que apelidavam o seu novo trabalho como “desastre artístico“.

Adaptação de uma peça teatral de Jean-Luc Lagarde, “Juste La Fin du Monde” beneficia de um ambiente caótico de procrastinação, enquanto a intriga começa a ganhar forma, desenvolvendo para lado nenhum, dando a sensação de impotência e clara frustração ao espectador. Esta é a história de um escritor homossexual que vai encontro da sua família para anunciar a sua breve morte, visto que é um seropositivo de HIV. A respetiva família, que desconhecia o seu paradeiro e o estilo de vida levado a cabo pelo seu ente querido, tenta o receber da melhor forma possível, mas os assuntos inacabados, que o nosso protagonista deixou para trás, o confrontam.

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Sim, Xavier Dolan acerta na “mouche” quanto ao teor a ser invocado neste drama de complexidades familiares, mas o que não anteviu é que por vezes o cinema tem que desligar do palco teatral para assumir a sua vida emancipada. Resultado disso, evidentemente, é um esforço descomunal na caracterização dos seguintes personagens, inseridos num rótulo de morte anunciada, a outra é os desempenhos, prometedores mas “fogo de vista” face a uma claustrofobia descontrolada deste enredo de manutenção de relações afetivas.

Existem demasiadas pontas soltas aqui, obviamente que Dolan não irá resolver tendo em conta o respeito pela obra original, mas falta de extensão, do alinhamento, e da renegação com a artificialidade constrangedora com que tenta transformar drama de 2ª Arte para Sétima Arte, o leva para “becos sem saída” de criatividade intrínseca. Ao menos assumisse tudo como “teatro filmado” como Manoel de Oliveira sempre o fizera. Assim sendo, as personagens parecem “morrer” demasiado cedo, as atuações não se vingam perante tal voluntária barafunda (mesmo que Vincent Cassel, Gaspard Ulliel e Marion Cottilard mereçam destaque) e a técnica (fotografia, por exemplo) entra em conflito com o trabalho de escrita e de coordenação.

E assim chegamos a outra questão, será que a obra merecida dará a sua devida reavaliação, a revisão por novas audiências? Não nego, cheira-me a filme a ser valorizado daqui a uns valentes anos, mas também não é com esta “fruta podre” do cesto que nos vai fazer desligar do potencial de Dolan. Por isso, que venha esse “The Death and Life of John F. Donovan”, porque está provado que o fim do mundo não é matéria para o nosso realizador.

A bela moldura de James Gray!

Hugo Gomes, 28.07.14

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Ewa (Marion Cotillard) é uma "alienígena", não no sentido literal, mas figurativo. É uma estranha no Novo Mundo, atraída por promessas de prosperidade e de novas oportunidades. Contudo, a terra dessas promessas revela-se, desde o primeiro momento, num poço de enganos, um inferno comparável iludido pelo vislumbre da imponente Dama da Ferro erguendo a sua tocha, iluminando a vinda de cada indivíduo e o convite a que se tornem, cada um, no próprio Diabo, entregando-se a falsas juras e envolvendo-se em viciosos jogos crucificadores a vidas de um limbo labiríntico. A experiência vivida pela personagem de Cotillard é um reflexo “vivo” dos milhões de "cegos" que, desesperados, partiram dos seus lares nessa busca pelo intitulado Sonho Americano, muitos deles sucumbindo aos recantos mais sombrios do oportunismo humano. Só que em James Gray, o enfoque é outro, assim como o tom com que este explora a miséria social, inserindo-se numa estética profundamente barroca.

The Immigrant” é, até à data, a obra mais ambiciosa de um realizador estimado por muitos (vendido à ideia “do melhor americano da sua geração” … e pegou, eu sei), e tido com indiferença por outros (nunca ostentando violentas legiões de ódio). No entanto, esta é uma falsa epopeia, decepada por moldes narrativamente classicistas, sobre a qual se desenrola um enredo tecnicamente sedutor, com prestações cuidadosas do elenco. O resultado, contudo, é isento de impacto e, pior, de frontalidade. 

Gray, em conjunto com Ric Menello (o qual colaboraram em “Two Lovers”, em 2008), escreveu uma história dependente a um "míope" cénico, como arranjo desenrascado e opositor das reconstituições pretensiosas da velha Hollywood (na verdade, não podemos voltar atrás com as grandiloquência), e a recheou-a de personagens ambíguas, condenadas a justificarem os seus atos como gestos apaziguadores. Em consequência, sente-se uma ausência de antagonismo. O maniqueismo é abandonado, substituído astutamente pelo enredo, deixando a descoberto uma outra necessidade: a de um conflito interno, talvez uma evocação existencialista por parte da personagem de Cotillard e dos seus trilhos duvidosos, que mesmo perdida na miséria, mantém uma dignidade inquebrável, e por isso falseada como uma beatificação forçada. Mas nem isso chegamos a saborear.

A prova dessas "ausências" reside naquele final abruptamente feliz, que faz parecer que todo o percurso da protagonista até ao desfecho decorreu até aquele ato (conscientizando que “The Immigrant” é um filme “certinho” nesse moldes narrativos) sem grandes preocupações, sem esforço ou veracidade que o interliga. O caso desta Cotillard entregue ao “conto americano” origina uma obra novelesca que inicialmente recusa ser o que verdadeiramente é: uma performance tecnicamente irrepreensível e saudosista, daí o lado barroco com que encena Nova Iorque a tiritar por entre o seu lado fabulista e a da crueldade social (a fotografia sépia evoca uma fotogenia antiga e obsoleta de uma Nova Hollywood, a mesa que Gray sonha sentar-se numa reunião de “chá imaginário”), mas dramaticamente desgastado e narrativamente formatado. 

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Entretanto, as prestações são de uma inegavelmente qualidade. Joaquin Phoenix afirma-se mais uma vez como um dos mais exímios da sua geração, interpretando Bruno, a suposta encarnação da amoralidade necessária à sobrevivência na América (temporário devido à indução de uma desculpa ao seu carácter de resiliente oportunista), e Marion Cotillard transmite uma credibilidade que, em erradas mãos, soaria a falso. Jeremy Renner, por sua vez, completa o trio mesmo com competência numa figura apressada e dispensável (Gray e Menello disparam para o neorrealismo italiano, reproduzindo o “mágico louco” comumente dessas demandas, como a de “La Strada” de Fellini, por exemplo), quase-inútil para a narrativa. Se existisse uma ambiguidade nesta personagem (e é que sinais são nos demonstrado como prova da nossa desconfiança enquanto espectadores pós-inocência), tal é abandonado pela falta de interesse dos argumentistas.

“The Immigrant” é o espectro de um grande filme, valorizado pela ideia e pelos riscos de produção, mas "desmembrado" por um pretensiosismo anoréxico, uma característica cada vez mais presente na carreira de James Gray, o qual não esconde um certo aprumo técnico e um virtuosismo de ”aluno aplicado” que por vezes capta maravilhas. Aqui, a "maravilha saída da cartola", concentrada num plano final que rima com a abertura, a Estátua da Liberdade enquanto miragem, conforme ditado pelo ângulo, seja de saída ou de entrada. Enfim, mais uma oportunidade desperdiçada.