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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"O Recado" deixado ao cinema português pelo seu mais novo sangue

Hugo Gomes, 07.04.20

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Perguntei porque tinha voltado. Não respondeu. Ficou calado a olhar para a janela. Nesse momento percebi muita coisa: o Francisco voltou por estar perdido por ti, pelos amigos, por isto … isto. Para trás ninguém volta e de nós fica o que fizermos. Mas em imagem disso ... ele quis voltar atrás, mas estava errado. Era uma ideia, assim, umas imagens que acendem e apagam logo a seguir. O resto foram pretextos.” “Maldevivre” (João Viana)

 

Se José Fonseca e Costa ouvisse os conselhos das suas próprias personagens, teria permanecido no seu cobiçado “estágio” em Itália, ao lado do sempre incontornável Michelangelo Antonioni e o seu eclipsar romântico (“Eclipse”, 1962). Curiosamente, o na altura aspirante a cineasta regressou à sua Pátria com o dever (contrariando as indicações dos seus pais que impuseram o termino do curso de Direito) de envergar no cinema que tanto apaixonou, inaugurando atividade nos chamados “filmes de fundo”, trechos de poucos minutos que preenchiam espaços nas projeções com fins comerciais. Mas porquê voltar? Se em Itália, melhor leque e indústria tinha à sua mercê? Talvez por teimosia ou simplesmente, enquanto jovem, pela ambição de trazer um pouco de “cinema do mundo” a um país, não somente de tamanho, mas socialmente e economicamente a rés.

Mas foram os “filmes de fundo” que serviram como sua escola à portuguesa, ou o teste para se movimentar nas réstias industriais e no universo artístico que conhecera gradualmente (realçando a sua amizade com o músico Carlos Paredes ou o poeta Miguel Torga, que curiosamente, trabalhara com ambos em “A Cidade”, 1968). Mas a sua total emancipação aconteceu por vias dos fundos de cinema da Gulbenkian, uma espécie de Estado dentro de um Estado, que lhe garantiu o maneio para arrancar com “O Recado” (1972), a sua primeira longa-metragem, uma coprodução espanhola que contava com os “cordelinhos” do produtor Henrique Espírito Santo.

O argumento, da autoria do próprio Fonseca e Costa, coloca a protagonista Luísa – interpretada por Maria Cabral (saída do êxito de António da Cunha Telles, “O Cerco) em perfeita sintonia com o seu criador. Uma mulher dividida entre o presente confortável e o passado romantizado que vai auferindo contornos saudosistas (uma paixão antiga reaparece e que lhe deixa um “recado” para um possível reencontro) é tema de um filme que subversivamente aponta o dedo a um sistema político-social opressivo que agrava a desigualdade nos diferentes hemisférios do país. Há que entender que a militância de Fonseca e Costa já lhe custara algumas visitas à PIDE e um constante cadastro anti-regime, em “O Recado”, um realizador nos seus “verdes anos” tomas as diferentes vestes para conduzir num romance metaforizado e crítico para com um dos pontos fracos do Estado Novo: o constante distanciamento da ruralidade para com as grandes metrópoles.

Nisso, é possível verificar nos precisos e primeiros minutos da longa-metragem: o campestre tradicional, mergulhado nas tradições religiosas e os loucos “de aldeia” - como manda as peças de Gil Vicente – que proferem primários e percetíveis moralismos (e com um certo paternalismo à mistura), enquanto que a cidade, o genuíno ecossistema de Luísa, é refinada com os prazeres burgueses, com as iguarias da cultura importada e das reflexões de primeiro mundo. Aqui, o qual somos introduzidos numa festa onde a nossa protagonista não esconde o seu aborrecimento, um convívio alienado de estranhas criaturas tão “fellinianas” que o filme assume essa invocação através de um reparo de Maria Cabral (“Parece a filha de Saraghina”, de seguida explicando a referência vinda de “8 1/2”).

Estas festividades, e bebedeiras de “novos ricos” ou “vampiros culturais” tomam um passo importante para as duas vertentes da jornada emancipadora de Luísa, a começar pelo contraste de dois mundo, um excêntrico e outro inóspito e rochoso que funcionará como roda desse prolongado dilema. Enquanto o outro ponto, que adquire importância no seu anti-climax, é a transformação intrínseca por vias de uma cuidadosa seleção e destruição de objetos, adornos, bibelô e escritos. Através de uma improvisada fogueira que incinera, acima de mero inventário, memórias, surge o renascimento de uma fénix. Luísa perante esse passado revisitado forçadamente, regressa ao seu habitat natural como uma nova mulher, determinada em atropelar o passado com direção ao incógnito futuro, assim como Fonseca e Costa que depois do “O Recado” abandona o formalismo imposto pelo Cinema Novo em vias de evaporação.

Um cinema eclético que “dá beijinhos nos braços” à cinefilia presente (desde as comparações de Greta Garbo a Maria Cabral até ao cameo especial do lendário diretor da Cinemateca, João Bérnard da Costa), e que coloca em cheque o realizador com as tendenciosas façanhas de primeira longa-metragem, uma afirmação de peito cheio para proclamar o seu devido lugar. E para tal há toda uma consideração íntima para com o seu universo cinematográfico (a sua experiência em “Eclipse” de Antonioni o levou a manufaturar o seu próprio “eclipse passional”), como também do seu território político e pessoal, projetado na contemporânea diva do grande ecrã lusitano … sim Maria Cabral sob este seu heterónimo, Luísa.

Para tal, apenas foi preciso Fonseca e Costa ignorar os conselhos das suas próprias personagens e voltar atrás, contra tudo, contra todos.

 

Até parece que não temos nada a dizer um ao outro

 

 

A devoção de Maria Cabral a um país nos "Verdes Anos"

Hugo Gomes, 22.02.14

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O Cerco” do título advém da “barreira invisível” que rodeia a protagonista – Marta (Maria Cabral) – uma mulher moderna sufocada por um constante “poço” financeiro e social num país de estéticas, em clara negação com o real panorama que vive.

Datado de 1970, António da Cunha Telles recria um quadro moderno dum Portugal de divulgação indesejada, um país reduzido a um silencioso pedido de ajuda, ao mesmo tempo que se privava desse mesmo auxílio. Com os anos passados, “O Cerco” tornou-se incontestavelmente num filme moderno e acidamente cronista. Um ensaio mais verdadeiro, sofisticado e fiel à nossa essência como Nação do século XX do que a maioria das produções cinematográficas e televisivas de produção atual, que fora os ventos de mudança “pré-25 de Abril” (do Cinema Novo até aos pontuados exercícios críticos da contemporaneidade portuguesa, “O Mal Amado” de Fernando Matos Silva ou “O Recado”, também protagonizado por Maria Cabral, de José Fonseca e Costa).

Pois bem, este foi um dos, não fundadores, mas estabilizadores do Cinema Novo, um dos modelos priorizados da geração vanguardista de cineastas portugueses, embebidos por influências da Nouvelle Vague Francesa e do neorrealismo italiano literário (neste caso a imagem de repressão social como elemento crucial deste último ponto). António da Cunha Telles que fora produtor de “Os Verdes Anos” (1964) e “Mudar de Vida” (1966), ambos de Paulo Rocha, filmou “O Cerco” com os “restos” de película 35 mm destas mesmas fitas. O filme foi concebido durante os intervalos do trabalho publicitário que o produtor concretizava, e a atriz, Maria Cabral, que segundo este, surgindo de “pára-quedas”, tendo-se gradualmente firmado como uma musa inspiradora desta panóplia de crónicas viventes, como também uma das paixões cinéfilas do então crítico Joaquim Novais de Teixeira.

Porém, é difícil não se rever neste “O Cerco'' e muito menos na protagonista, uma alma frágil e gélida num mundo ainda mais frio. O seu percurso enquanto “heroína” é intercalada numa rotina claustrofóbica, a simulação de uma prisão labiríntica, onde o quotidiano se funde com os gestos religiosamente consumidos por esta. Mas a verdadeira essência e propósito, quer do filme, como de Marta, não é a sobrevivência face aos ecos sociais e financeiros de um regime que limitava as possibilidades culturais e sofisticação dum país carente, mas sim a procura da “felicidade” nesse mesmo meio.

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Como uma definição quase novelesca e digna de um guia de auto-ajuda, porém, descrita no filme como algo inatingível … e pior, frágil e sistematicamente “pressionado” por essa sociedade de teor consumista e propícias às aparências (as sardas postiças da atriz servem como alusão). Talvez seja por isso que Marta “protege” os dois peixes dourados em sua banheira numa cena inicial, deixando recado para “quem fechar a porta” – “Temos dois amigos na banheira. São um casal feliz, trate-os com cuidado” – ou o facto de o único o amigo da protagonista ser uma personagem de cariz generoso, igualmente ambígua, pedestre de trilhos duvidosos algures entre o ilícito (interpretado por Miguel Franco).

Assim sendo, “O Cerco” é um filme de reflexões, de uniões entre passado, presente e futuro e os indícios de uma emancipação feminista no meio lisboeta. Maria Cabral pode não ser uma atriz excepcional e verdadeiramente talentosa, mas a aura que transmite para fora do ecrã é de um sedutor magnetismo, as comparações com a bela Audrey Hepburn não são em vão. Ela é a pedestre, a catalisadora por este país longe de encanto e a heroína de um estilo fílmico que declararia independência ideológica a uma direção e sacrificaria a fantasia cinematográfica em prol de um realismo tão nosso. Se por vezes acusamos os filmes portugueses serem geralmente tristes, melancólicos e pessimistas, a culpa não é deles, e sim nossa, contribuirmos com tal imagem no nosso dia-a-dia.

O Cerco”, mesmo com 40 anos em cima desde a sua bem-sucedida estreia e sessões esgotadas semanas a fio na sala do Estúdio (como também recebido com elogios na edição de Cannes de 1970), é uma visão surpreendentemente moderna e ousada. Uma relação quase carnal para com o espectador. Talvez seja a partir daqui que o cinema português tenha perdido, por fim, a sua inocência.