Na brasilidade da ternura
Amigo Secreto (Maria Augusta Ramos, 2022)
Truffaut avisou: “Criticar um filme é criticar pessoas e isso eu não quero mais fazer”. Mas havia ainda algo de necessário na arte de analisar longas-metragens, na arte de ressaltar a dimensão que os filmes têm como tecido vivo, depois da Nouvelle Vague. E também, depois das ressacas de 1968. E, também, após suspiros pós-modernistas. E depois da videoarte, frente ao avanço da streaminguesfera. No Festival de Cannes de 2018, quando a tese semiótica “Le Livre d'image” garantiu ao suíço Jean-Luc Godard uma Palma de Ouro especial, ouviu-se a Croisette lamentar: “O cinema morreu depois que o realizador de ‘Alphaville’ parou de acreditar nele”. Era um lamento pertinente sobretudo ali, onde a Netflix perdia de vez, à força das decisões de Thierry Frémaux de não se render a um gigante do rentabilíssimo negócio de transmitir imagens em movimento por meio da www, em plataformas digitais.
Diante desse torvelinho histórico, do engasgo de Godard, uma vez mais, a crítica se fez e se faz necessária e urgente, mesmo com suas idiossincrasias. Uns gostam de “Top Gun: Maverick” (eu, por exemplo) e consideram esse blockbuster de US$ 1 bilhão uma exegese da técnica; outros lhe atiram torpedos stalinistas, reduzindo-o uma propaganda armamentista, refutando suas virtudes homéricas. Em Portugal, há quem cante loas ao “Bem Bom” das Doces e há quem amargue o seu lado pop. São veredas que se bifurcam pela natureza humana de um ofício (talvez, um saber) - criticar filmes - que ocupa a árdua tarefa de escrever para o Futuro a partir do Presente, contextualizando para o Amanhã aquilo que se pensa e aquilo que se sente no Agora, no Hoje. Críticas são tabuleiros onde enxadristas movem Torres e Bispos da Estética na representação de um “Game of Thrones” onde a memória disputa terreno com a ignorância do imediatismo, da intolerância e da fake news. No caso brasileiro, existe uma nuvem medieval no ar. Lá, o povo compreendido entre o Oiapoque e o Arroio Chuí fala em “Fator Minion”, numa jocosa referência à franquia “Despicable Me”, comparando os caças bolsonaristas aos asseclas de Gru.
Fazer crítica no Brasil de 2022 é correr sobre o arame farpado da bipolarização, escapando das armadilhas abertas por pruídos lacradores de patrulhas ideológicas, evitando absolutismos. Há sempre alarmes políticos à esquerda e à direita prestes a zumbir frente à escrita de textos sobre qualquer fenômeno fílmico daquele país (no caso, o meu berço). Isso vale para artigos sobre o sucesso popular de “Medida Provisória” (com seus 460 mil pagantes); ou sobre a produção de filmes baseados em BDs controversas (mas corajosas), como “O Doutrinador”; passando pelo atual barulho gerado por Maria Augusta Ramos com seu “Amigo Secreto”. Um barulho ligado à sua precisa triagem dos desacertos da Operação Lava Jato. Há muita tensão no ar no Brasil, em tempos em que aguardamos novas eleições presidenciais. E é natural que fiquemos tensos, depois de um golpe, do impeachment de uma líder eleita democraticamente e do recrudescimento do conservadorismo. E é natural que essa tensão reflita na crítica,de alguma forma. Mas esta não deixa de exercer seu papel de celebrar artesanias e autoralidades, como se vê agora na estreia do necessário “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Os faróis que iluminam o diálogo crítico se acenderam para o potente filme da diretora de “Amor, Plástico e Barulho” (2013) passar, consolidando seu estado natal, Pernambuco, como pátria de invenção. Da mesma forma, a crítica esteve atenta para lembrar os dez anos de ausência do mestre Carlos Reichenbach (1945-2012), garantindo-lhe espaços em múltiplas URLs para celebrar suas jóias, como “Alma Corsária” (1993).
Desde os anos 1950, vozes trovejantes catapultaram a crítica brasileira ao Valhalla da relevância, como foi o caso de José Carlos Avellar (1936-2016). Como resenhista do Jornal do Brasil, curador de festivais e agitador cultural, Avellar dedicou sua vida e sua escrita a propor conexões entre os países da Pangeia Latina, escrevendo sobre Jorge Sanjinés, Miguel Littín, Lucia Murat e Jefferson De com ardor, para estabelecer pontes entre suas filmografias. A Mostra de Tiradentes alcançou a potência que tem ao ser redesenhada por um crítico, Cléber Eduardo. E segue hoje com grandes intelectuais - como Lila Foster, Francis Vogner dos Reis, Tatiana Carvalho Costa, Camila Vieira e Felipe André Silva - em seu timão. Mas há sempre que se estar atento e forte para ranços ideológicos, como as sequelas da ditadura que nos podou o interesse em entender “cinema de gênero” para além das catacumbas do terror, limitando sobretudo nossa relação com a fantasia nas telas, por haver nela um traço de códigos hollywoodianos (é o que alguns dizem). No Brasil, o fantástico vira sociologia num sopro e igrejas burguesas enaltecem registros de pobreza que estão mais próximos de uma catalogação etnográfica do que da poesia. Mas, ainda assim resistimos. Pensamos. E, sem perder a ternura, provocamos.
Texto da autoria de Rodrigo Fonseca, crítico de cinema, dramaturgo e pesquisador, integrante da equipa do C7nema e titular do blog P de Pop do jornal O Estado de S. Paulo