Tati-Barbie
Barbie (Greta Gerwig, 2023)
Playtime (Jacques Tati, 1967)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Barbie (Greta Gerwig, 2023)
Playtime (Jacques Tati, 1967)
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Por que é que a personagem dentro da personagem de Jason Schwartzman queima a própria mão no grelhador? Questionando o imaginário autor, porta-voz do narrador, aqui interpretado por Edward Norton, que responde, sem grande alarido, com a procissão da sua criada narrativa. O “não entender”, não pode, nem deve, ser visto como uma desculpa, seguimos então em frente com o relato. “Asteroid City” cai entre nós como uma “bomba”, um tiro às tendências que resguardam estes tempos em que o streaming e a falsa-sensação televisiva (séries que já não são televisão, nem nunca serão) estabeleceram uma relação tóxica com o espectador, forçá-lo à reger pela continuidade, tudo para este factor e nada contra esse factor.
No cinema, tal feito acarreta nas audiências - fasquias, realismo e o senso do mesmo, prevalecem - deixando a estética, essa, desvanecida, vilipendiada como uma distração, uma maquilhagem ao vazio, ao oco e fútil. Ora bem, vazio não é o que deparamos no cenário desértico desta fictícia Asteroid City, antes disso, uma farsa, um filme a compor-se frente aos nossos olhos, ou diríamos mesmo (utilizando a velha glória teatral “O Mundo é um Palco”, neste caso, aperfeiçoando à sua realidade cinematográfica, “O Mundo é um Cenário”), a ser encenado no nosso horizonte. Tudo está aparentemente “organizadinho”: a mise-en-scène nos trincos (que saudades deste aprumo, que parece não ter lugar no dito “cinema moderno”), os planos conjunto a brindar os olhares, os gestos meticulosamente planeados em cadência dos movimentos de câmara, subtis e sintéticos, os atores reduzidos a bonecos em prol de inventário debitado e materializado.
Contudo, os andaimes estão expostos, entendendo à sua funcionalidade de apoio para a eventual construção, o narrador surge-nos no lugar errado e à hora errada, a desconstrução que dá lugar a um pseudo-making off, um formato de tela que nunca se decide e igualmente estabelece regras nas suas dimensionalidades, tudo na literalidade, há que entreter a audiência sem que esta acredite no que vê. De alicerces revelados, Wes Anderson prova que na fantasia das suas fantasias, criar nunca se resume a “storytelling”, criar, artisticamente falando, é igualmente compor, rebuscar, decifrar, esconder, revelar ou até “pintar”, quadros elaborados para deleite, seja do autor, seja do espectador. Um show de mecanismo e virtuosismo, perfeccionismo e calculismo, a essência do cinema andersoniano. Porém, como o próprio expressou, contra “copycats” e mimetização AI; não é da estética, visualmente desferida, o qual resume o seu cinema, o vazio à pouco invocado como centro formal, é um atalho para a plagiaria, o cinema de Anderson fala com ele próprio e dialoga entre si, aliás, é disso que são feito os autores de cinema, e nós, perante um deserto, precisamos mais de autores.
Isto para insinuar que me perdi em Asteroid City (no bom sentido, é óbvio), e igualmente senti-me enganado após deparar com o embuste que a cidade é, uma criação dentro da criação, um matrioska que Anderson desculpa o seu cinema. É uma peça a fazer-se de peça, a alavanca narrativa para entrarmos em alter-egos e cunhas. Essa, Asteroid City, é um sonho vindo dos que não conseguem dormir, uma alternativa, realidade talvez ou sintética provavelmente, onde estas historietas à sombra dos testes nucleares são relatos de avatares jubilantes, o “body double” referido pela diva caída Scarlett Johansson após o relance de um corpo desnudado (o de não saber se é o dela ou de uma dupla leva-nos à natureza do filme, onde o que se parece não é, e o que é não é o que se parece).
Portanto, podemos dizer que tudo não passa de uma brincadeira, um hobby concretizado, decorativismo gritarão muitos, saindo desfraldados da sala, acompanhadas por acusações de “repetição” estilística, sedentos pelas narrativas A a B, ou da realidade que nos abraça, desejando vê-las representadas nos nossos medias. Sim, “Asteroid City” é um cinema-romântico, o romantismo de que a tela é uma porta para lá das leis físicas do nosso dia-a-dia, de novos olhares e novas fragrâncias. Wes Anderson apresentou-nos desde sempre uma espécie de “casinha das bonecas”, um cinema farsolas, trocista, ingenuamente cruel e com, acima de tudo e acima do resto, familiar. Sim, há um conforto familiar nesta sua estranheza e “Asteroid City” possui pé firme nesse mesmo “vale”.
Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!
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A liberdade de um filme é medido pelo tempo que é dado às personagens para poderem dançar sozinhas. Ou parafraseando uma das obras menores de Ken Loach ["Jimmy's Hall"] - “We need to take control of our lives again. Work for need, not for greed. And not just to survive like a dog, but to live. And to celebrate. And to dance, to sing, as free human beings.”.
Spider-Man 3 (Sam Raimi, 2007)
Babylon (Damien Chazelle, 2022)
La vie d'Adèle / Blue is the Warmest Color (Abdellatif Kechiche, 2013)
Saturday Night Fever (John Badham, 1977)
Frances Ha (Noah Baumbach, 2012)
Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)
Ya no estoy aquí (Fernando Frias, 2019)
Bergman Island (Mia Hanse-Love, 2021)
Grigris (Mahamat-Saleh Haroun, 2013)
L'événement / The Happening (Audrey Diwan, 2021)
Kickboxer ( Mark DiSalle & David Worth, 1989)
Jimmy's Hall (Ken Loach, 2014)
Cold War (Pawel Pawlikowski, 2018)
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Dias de loucura. Festas intensas com um improvável “amanhã” em consideração. Uma orgia vinculada em poder, luxúria e fantasia, esta, projetada em consensuais sonhos de glória - é com tais imagens que respondemos aos tempos pré-código hayes - a balbúrdia do oeste, onde a película serve de impressão para os projetos fabulados, os filmes, o Cinema, essa dimensão do imaculado. Quero acreditar que o Cinema, não a instituição, e sim a Ideia concentrada, encontra-se acima do seu próprio processo de fabricação. Transferindo a “linguagem” para as outras artes, não demonstramos o mínimo interesse em saber, por exemplo, com quantas pinceladas “As Meninas” de Velázquez foi concebido, ou com quanto tempo levou a ópera “Il sogno di Scipione” de Mozart a ser composta, ou com quantas marteladas o “David” de Michelangelo foi moldado (acrescentar ainda “de que forma”, e de que método), por isso, porquê esperar do Cinema a apreciação da sua trajetória ao produto final, ao invés de contemplar somente o Filme?
O resultado excede a toda essa manufatura, ao making off (voltamos à “linguagem” cinematográfica), logo “Babylon” de Damien Chazelle (“Whiplash”, “La La Land”), um caos controlado e igualmente raivoso reverte-se num processo menor em comparação a tudo aquilo que ele defende, em jeito epifânico, o Cinema como algo maior que a nossas próprias vidas. Deste filme, com mais de três horas de duração, consigo reter duas sequências importantes dentro dos seus excessos e dos quais vão ao encontro desse mesmo manifesto. Seguindo o percurso cronológico, após um festejo de proporções babilónicas (álcool, sexo à discrição, estupafacientes e até um elefante como “ostentação de luxo”), dois desconhecidos são acidentalmente repescados a integrar a produção hollywoodescas. Estamos ainda em período mudo e antes dos estabelecidos majors (arquitetonicamente falando), o cinema norte-americano é maioritariamente filmado ao “ar livre”, em cenários de cartão e num “mar de gente”, uma batalha campal, um caos em terreno baldio, no qual o Cinema era visto como um fim impossível de ser procriado aí.
Estas duas personagens instalam-se de forma caricata e independentes nos seus respectivos “afazeres”: ela (Margot Robbie) foi escolhida como substituta para atuar numa película, e ele (Diego Calva), persuadido por uma estrela maior (Brad Pitt, possivelmente, no seu auge), torna-se um acidentado “assistente de produção” com uma tarefa hercúlea, alugar uma câmara a tempo de captar os últimos raios de sol. As peripécias aí causadas enchem olho e a narrativa persiste numa constante oscilação consolidando um ritmo frenético que só desbrava entropia, até que no preciso momento, “alguém” (a voz incorporada nos dois momentos distintos) aciona o clássico “AÇÃO”, grito imenso e de tom divino que “congela” toda estapafúrdia envolta … tudo se dirige aos respectivos polos de criação, um filme deve e está a ser feito, o Cinema a ser o altar de adoração. Como é possível que toda aquela confusão nasça essa “magia” de criar algo duradouro?
Assim, parto para a segunda e referida cena: “Babylon” de Chazelle transcreve-se no período transitório do mudo para o sonoro, com “The Jazz Singer” (1927) a quebrar a tal barreira graças ao seu sucesso e aprovação popular. Com isso, a indústria sem mãos a medir, teve que alterar radicalmente a sua produtividade com objetivo de replicar a tendência. Muitos atores adaptaram-se aos esses novos tempos, outros, nem por isso, nessa última facção encontra-se a personagem de Brad Pitt - Jack Conrad - o galã crente da Arte popular do Cinema contra a sua subestimação, uma versão masculina de Norman Desmond, portanto, que em permanente estado de negação confronta a sua fiel publicista Elinor St. John (interpretado por Jean Smart) devido a um artigo que premonicia o seu término de carreira. Nessa discussão acesa, Elinor fala de um processo natural de início, apogeu e dissipação, do qual descreve como cíclico o percurso artístico e neste caso o de Conrad, à beira do seu precipício. Contudo, salienta a perduração, prevendo se que 50 anos para a frente, alguém iria-se embebedar do cinema gerado pela estrela moribunda, familiarizando com a persona preservado na película, não com Jack Conrad particularmente, mas com alguém criado, “alimentado” pela indústria e “amarrado” pela arte, o outro Jack Conrad, a estrela vivida na suas ficções. Eternizado à sua maneira, mas para isso há que existir o tão indesejado fim.
Estas duas sequências que macaquearam a minha mente, revelam não só o espírito absorvido no meio daquele caos, excentricidade e do grotesco que Chazelle espelha neste retrato de época (não é original nesse termo, podendo ainda buscar outras lentes como o pouco referenciado “The Day of the Locust” de John Schlesinger ou o amaldiçoado “Return to Babylon” de Alex Monty Canawati, ambos fortalecendo o cenário de desordem e de libertinagem desses tempos distantes), como também sobre a capacidade de manobrar o pêndulo ao fascínio e a repugna em relação à Sétima Arte. É a purga e igualmente o embelezamento de um “filho prodigioso da destruição”, o Cinema, essa estância persistente ao longos dos anos, inconsciente das suas transformações, das suas transfusões, e Damien Chazelle ao contrário de muitos, está ciente do seu legado e sobretudo da História que muitos desejam mudar drasticamente. Absorve de Hollywood e sem impunidade crítica satiriza uma composição saturada, suada e maquiavélica. O que sai dali é um desejo de investir nas tragédias de uma arte que como todas não nasceu da utópica. Apenas basta gritar “AÇÃO” e voilá, faz-se Cinema, termo que acima de qualquer ideologia não é homogêneo, unilateral nem formalizado a um só tom. É muito, mas muito mais que isso.
“Babylon” não trata Hollywood como uma coqueluche a ser bajulada, a dita desconstrução do seu oleado sistema, da, por vezes, denúncia à sua gravidade e presença, são elementos que sem apoderar-se da narrativa e conduzir o filme para vertentes tendenciosas da nossa contemporaneidade, operam como expansões do seu próprio universo. A ascensão de estrelas, queda de estrelas, domínios e quedas de impérios para que servir ao epílogo-tese, nada de complexo, apenas o óbvio, o Cinema não Morre, metamorfoseia-se, e dessa transformação os espectros vagueiam como memórias não reconhecidas. Como acontece com a premonição invocada ao fictício Conrad, conhecemos este mundo, estabelecemos contacto com os seus cantos e lugares, comuns ou incomuns. São nossos, o Cinema é nosso, sem discriminações. Porém, o que Chazelle diz é que esse resultado não é fruto de uma harmonia, e sim, de sangue, suor e sémen. Hollywood é um exemplo, mais que óbvio de indústria, porque fazer Cinema não é Amor, é combater uma Guerra.
Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!
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I, Tonya (Craig Gillespie, 2017)
Rien à Foutre / Zero Fucks Given (Julie Lecoustre e Emmanuel Marre, 2021)
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Após o sucesso de “Joker”, no seu não-convencional filme a solo, chegou a vez da sua “noiva”, Harley Quinn, proclamar a tão querida emancipação e resgatar das sombras da subserviência dos arlequins um novo protótipo de anti-heroína. Este “Birds of Prey: And the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn” é só mais uma prova de como a Warner Bros e DC Comics desejam distanciar-se das estratégias produtivas da Marvel e gerar produções com personalidades distintas. Aqui, sob o comando de Cathy Yan (curiosamente, uma realizadora ainda sem expressão na indústria), transportam-nos para um filme esteticamente mesclado onde os detalhes piscam aos mais atentos.
Em certa parte, esta é a conseguida resposta do estúdio e da editora à influência de “Deadpool”. Sabemos que, na atualidade, todos procuram a sua variação “deadpoolesca”: ensaios meta e pós-modernistas em relação ao seu género, personagens ambíguas e com irreverência a dialogar diretamente com o espectador (fala-se sobretudo das quebras da chamada "quarta parede") e, como não poderia deixar de ser, o cordel esticado com a liberdade adquirida de uma classificação “R” [para adultos].
Harley Quinn é uma personagem propícia a esses territórios e de forma muito mais ampla, pois encontramos neste colorido e verborreico filme de “super-heróis” a possível concretização do signo feminino que tanta falta tem feito ao género no cinema. Sim, sabemos que houve uma “Wonder Woman” ou a resposta da Disney com “Captain Marvel”, com legiões de apoiantes. Contudo, ambos surgiram numa altura em que o empoderamento das personagens femininas em territórios predominantemente masculinos era uma necessidade prioritária dos novos tempos. Já "Birds of Prey" posiciona-se como o lúdico de braço dado com o universo do sexo oposto, sem necessariamente se inserir num movimento feminismo ou aliado.
Sim, este é um filme efeminado, centrado nos contornos "girlies" das personagens, mas nunca cedidos à misoginia ou ao mero estereótipo tão vulgar na indústria cinematográfica. Até porque dentro desta paródia "salta-pocinhas" quanto à sua narrativa, encontramos uma delicadeza e respeito por essas mesmas virtudes.
É com esse espírito que “Birds of Prey” se destaca dos demais. O resto, como diriam os americanos, é “peanuts”. Sequências de ação aprimoradas revelam um olhar atento às tendências "à la John Wick"; um enredo simples, apesar de integrar na história a psique da protagonista; e, por fim, personagens tão caricatas que roçam uma bizarria adaptável ao ritmo descontraído e diversas vezes traiçoeiro (existem aqui "pitadinhas" do cinema Guy Ritchie ou de Luc Besson em modo “Leon, O Profissional”). Ou não fosse Harley Quinn (a sempre deslumbrante Margot Robbie) um poço de problemas "cartoonescos" que nos encanta com a sua violência e arrojada exposição em "gags" complementares.
Dito isto, de forma a se inserir no panorama industrial do género, “Birds of Prey” não inova nem reinventa o cinema de super-heróis (neste caso, “super-vilões”), mas ostenta a pretensão de diversificar esta "mecanização" que se associa aos produtos da Marvel. Pode ser pastilha elástica frutada, mas pelo menos pode ser mascada com alguma convicção...
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A crise económica de 2008, a maior desde a Grande Depressão, foi gerada graças a um efeito dominó causado por um “sistema baseado em fraudes e estupidez“, citando as palavras da personagem de Steve Carell, aquele que se apresenta como um dos “verdadeiros” sobreviventes deste cenário de apocalipse financeiro.
“The Big Short”, traduzido com o pouco imaginativo título “A Queda de Wall Street”, funciona como um “Night of Living Dead” deste atentado bolsista, caso queiramos resumir todo este episódio histórico e aludi-lo à famosa trilogia de George A. Romero, onde um grupo de quatro “cavaleiros do armagedão” profetizam uma tremenda exposição às verdadeiras fragilidades da economia norte-americana. O resto, a concretização dessa premonição, é o caos propriamente dito, um cenário que está no conhecimento de todos, até mesmo fora do território dos EUA onde as “réplicas” foram e continuam a ser sentidas.
Pois bem, eis um retrato que nada adianta sobre esse capítulo negro do capitalismo, mas que também contra o qual não podemos fazer objecções, desde que não se cometa o erro de tornar estes protagonistas em heróis desarmados ou vitimas martirológicas. Neste caso, o novo filme de Adam McKay, o mais “sério” da sua carreira, não é nenhum ataque aos direitos civis nem o branqueamento de uma devastadora tragédia.
Trata-se sim, de um filme erguido com um tremendo sarcasmo, refletido na personagem de Ryan Gosling, que tenta ser o “smartest guy in the room“, o grilo da consciência que constantemente nos adverte quanto à hipocrisia deste jogo de monopólio. As suas aulas de etiqueta são pontuadas por sequências que exploram a permanente superfluidade, como o impagável momento em que o espectador conhece o significado dos subprimes lecionado por uma Margot Robbie que simultaneamente desfruta de um banho de espuma e um copo de champanhe. O aviso para a navegação é que muita desta linguagem técnica é complicadíssima de entender e é um método linguístico, uma espécie de dialeto inventado, para afastar os “meros mortais” destes prestigiantes residentes de Wall Street.
Como dá para perceber, “A Queda de Wall Street” é sempre cínico durante o percurso a esta catástrofe financeira, recorrendo a personagens que não saem da caricatura e situações que não ousam ser mais que esquematizações. Evidencia-se um efeito Titanic, onde os protagonistas tudo fazem para ter acesso ao seu “bote salva-vidas” e cuja calamidade é já um ato esperado desde o início dessa fita. É surpreendente a forma como McKay, detentor de algumas das comédias norte-americanas mais inteligentes dos últimos anos (“Anchorman: The Legend of Ron Burgundy”, “Talladega Nights: The Ballad of Ricky Bobby”), como também das mais “idiotas” (“Step Brothers”, “The Other Guys”), anseia sobretudo ser levado a sério na indústria cinematográfica. Aqui, o realizador emana um registo cómico-dramático propício à crítica, sendo esse o seu melhor trunfo nesta arriscada aposta.
Contudo, não consegue de maneira alguma, largar as raízes da comédia e ainda mais às suas tendências televisivas, notando-se numa realização que aspira a um realismo formatado, mas que ao invés funciona como um falso-documentário forçado ao estilo de “The Office” … E não, essa comparação não é pelo simples facto de possuir Steve Carell novamente como epicentro da intriga.
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Will Smith desempenha um autêntico burlão, um especialista em golpes de todo o género, astuto, sedutor e persistente, mas que possui uma única e, mesmo assim, grande fraqueza. É que o calcanhar de Aquiles de Nicky [nome do personagem] é o seu coração, frágil como cristal e caloroso como um solstício. Como figura infernal e testadora de pecados, surge-nos Jess (Margot Robbie), uma aspirante a golpista que é desde cedo “adoptada” por Nicky, convertendo-a na sua pupila. Supostamente uma relação deveras profissional manifesta-se diversas vezes num vínculo emocional, um factor que prejudica e muito as habilidades especiais de Nicky.
"Focus'', de Glenn Ficarra e John Requa, é um filme que transpira Hollywood, com toda a sua pujança de marketing. A sua primeira aposta advém do seu par de protagonistas, entre os quais um Will Smith “acabadinho” de sair do seu primeiro flop (“After Earth”, de M. Night Shyamalan),que se tenta reunir novamente com a luz da ribalta, e na outra face da moeda, Margot Robbie, a loira escultural de “The Wolf of Wall Street”, de Martin Scorsese, a confirmar o seu eventual estatuto de estrela. Pois bem, se Smith falha por encabeçar um personagem egocêntrico e sem desafios a nível profissional, Robbie brilha irrecusavelmente com todo o seu carisma. A jovem actriz revela tratar-se de um achado de Scorsese e tal nota-se na forma como, literalmente, “engole” a antiga estrela de “MIB: Men in Black“.
Embora, supostamente, seja um filme que sobrevive à conta da química emanada pela dupla de protagonistas, tal não se pode dizer da intriga. Dentro do cinema de golpe (heist movie), “Focus” funciona como uma artimanha corriqueira, anexada a lugares-comuns e uma intelectual previsibilidade que dita a sua limitada sapiência. Não encontramos aqui um produto erguido com inteligência ou sabedoria, nem sequer algo perto da classe da trilogia de “Ocean’s” de Steven Soderbergh, o que nos deparamos é sim, com um filme dotado de poucos truques e que tenta usá-los descaradamente de maneira exibicionista. Já não tínhamos visto algo assim em “Now You See Me”?
O enredo de "Focus'' tem problemas enormes em focagem, de construir uma fonte credível e, quando o consegue fazer de certa forma, tem o descaramento de destruir por vias de twists arrastados por mais twists, confundindo tal habilidade com astúcia. No meio, ainda somos presenteados com um romance canónico entre as duas personagens do cartaz, ao invés da sugestiva panóplia de cumplicidades e os dilemas de relações afetivas no mundo do crime organizado. Se esperavam a última, definitivamente não o vão encontrar aqui, mas sim um final mais que ridículo, que transmite naquilo que o filme tentou fazer desde então, burlar o espectador.
Tudo indica que “Focus” está mais interessado em fazer vender bandas sonoras do que apostar numa cinematografia sólida. Resultado disso é que a música não pára nem um segundo, o qual sentimos na obrigação de perguntar se estamos perante um filme, ou uma colectânea de videoclips. Eis a prova de que as estrelas não são sinónimo de um filme.
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My name is Jordan Belfort. The year I turned 26, I made 49 million dollars, which really pissed me off because it was three shy of a million a week."
Primeiro, não confundam a interpretação de Leonardo DiCaprio com o filme em si. O ator entrega corpo e alma, encarnando com coragem um autêntico Calígula do século XX, oscilando entre a glória e a degradação num dos papéis mais intensos da sua carreira. Sim, pelo desempenho de DiCaprio, “The Wolf of Wall Street” merece todas as estrelas possíveis – poucos discutirão que esta é uma das suas performances mais complexas igualmente zombeteiras (há espaço para o humor no rumo do ator? Pelo que vemos sim!). No entanto, há uma camada de cinismo neste projeto audacioso e extravagante na forma como transgride os limites do lícito.
Martin Scorsese disseca a ascensão e queda de Jordan Belfort, um corretor da bolsa corrupto que acumulava milhões através de esquemas fraudulentos e lavagem de dinheiro. Conhecido como "O Lobo de Wall Street", Belfort personifica a sede insaciável de poder, luxúria e ganância que ajudou a empurrar os EUA para o colapso financeiro. Como personagem, ele é carismático, persuasivo e detestável na mesma medida – alguém capaz de convencer um filho a vender a própria mãe. Mas como figura cinematográfica, encaixa-se perfeitamente na galeria de anti-heróis scorseseanos, num registo auto-biográfico remitido a reminiscências e variações de “Goodfellas”.
Nesta abordagem, o realizador tira proveito da sua posição consolidada na indústria para criar um filme que respira liberdade artística. “The Wolf of Wall Street" aspira a ser um espectáculo sem amarras, pouco limitado por censuras ou restrições. Há paralelismos óbvios entre as festas de “The Great Gatsby" e os excessos corporativos deste filme – e não apenas por causa de DiCaprio. O excesso, aliás, define a obra em todos os aspetos: é longa, grandiosa e absolutamente desmedida na sua visão autoral.
É nesse jogo de excessos que Scorsese desafia o público a interagir com Jordan Belfort. Ao traçar um retrato profundamente vil, ele depois recorre à performance magnética de DiCaprio para, de forma astuta, suavizar a imagem dessa figura de má índole. E aqui está a verdadeira artimanha do filme: tal como Belfort vendia ilusões, DiCaprio "vende-nos" uma versão irresistível da personagem. “The Wolf of Wall Street” manipula o espectador com confiança, e Scorsese filma cada plano com a energia eufórica de quem retrata uma Babilónia moderna em plena decadência.
No elenco, DiCaprio reina absoluto, mas encontra-se bem acompanhado: Jonah Hill finalmente se desprende da sua persona habitual, Margot Robbie foge do estereótipo da loira decorativa e Jean Dujardin impõe a sua caricata presença. O cameo de Matthew McConaughey, como mentor de Belfort, faz subir ações. São performances que seguram a narrativa e sustentam este devaneio frenético de Scorsese.
“The Wolf of Wall Street" tinha todos os ingredientes para ser uma obra-prima, mas optou por ser um entretenimento voraz de abordagem quase celebratória a uma personalidade marcada pelas piores razões. Não se tornou uma propaganda moralista, mas também não escapou ao peso dos seus próprios excessos. Mas, sob a suas atentas leituras, mesmo perdido no seu júbilo, existe um retrato de uma América podre e sugado por um anarco-capitalismo sem escrúpulos. A verdade é que Belfort revelou numa inspiração … do quê (?) é que nos evidencia alguma suspeita dessa sociedade esganada como farol de virtudes. A ver vamos!
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