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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Beatriz no país das "maravilhas"

Hugo Gomes, 17.03.23

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Continuando com o seu formalismo do desesperante real, Marco Martins mantém-se leal aos trajetos agonizantes que as suas personagens, mártires feitos e refeitos, caminham em busca da sua essência. Mas o que é que procuram? A resposta aos seus males, seja ela, física, existencial, obsessiva ou corrosiva. O seu Cinema é composto por essas cores, estas deambulações e nisto, trazendo, não somente emoções, mas uma estética política, “à esquerda” como acusou veemente o jornal Observador nos ares de estreia de “São Jorge” (2016). Em “Great Yarmouth: Provisional Figures”, projeto maturado em dois “mundos” distintos, um pré e pós pandemia, ganha vida acrescida sob os ventos das novas marchas politizadas, reacionária e extremistas e quiçá nacionalistas, pintando-nos como “bons emigrantes”, acarinhados pelos povos do Mundo e bem-sucedidos na sua integração. 

Martins provoca, - porque em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa (e uma das mais precárias do Reino Unido) - num êxodo à portuguesa é possível escutar os nativos referindo-os como mão-de-obra silenciosa, assumindo trabalhos que os próprios ingleses desdenham. Na liderança dessa peregrinação ao encontro de “vidas melhores”, está a Mãe, apelidada desta maneira (como gosta, devemos salientar), Tânia, portuguesa integrada, a face de uma rede de “exportação” destes trabalhadores carenciados e reduzidos a corpos exaustos, sacrificados, as outras martirizadas equações deste cosmo. Beatriz Batarda é essa “criminal” emigrante, com sonhos próprios, mesmo que mais mesquinhos e pirosos que sejam (velhos e bingo, combinação da sua vulgaridade). Não interessa, ela própria embarca na “foleirice” como íntimo refúgio, o “Promise Me” de Beverly Craven, por exemplo, servido como canto de sereia e de igualmente forma como canto de banshee, cantarolando para ‘seduzir’ ou invocando o antidote para a sua angústia. 

Digamos que na atriz, o ponto alto de “Great Yarmouth”, Martins deposita-lhe fé e determinação para nos guiar pelos dantescos infernos desta exploração, das madrugadas frias e silenciosas, meio adormecidas e calejadas pelo cansaço acumulado, dos “quartos” de hotel (as aspas não são acidentais) ou das idas e vindas aos matadouros de perus, em que o “trabalho liberta” encontra-se invisivelmente gravado nos seus muros. E nela testemunhamos o cansaço, envolto numa rotina, gradualmente desintegrado por vias de um caos, as rugas vincadas do seu rosto renomeia-se como “cicatrizes do tempo”, o qual não volta atrás de maneira alguma e é comumente sabido, mas são essas supra-expressões que a camufla com as noites intermináveis e os becos sem saídas. O sonho não passa disso … num sonho. Acordar é o derradeiro ato. 

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Enquanto isso, Batarda, é toda ela um filme à parte, a alma, a raiz, a força e a farsa, Martins apenas a filma, a integra e suplica para que nela nasça um filme emancipado. O realismo britânico mimetizado numa narrativa suja e sob curvas e contracurvas, a duração da miserabilidade sente-se, seja pelas sisifistas matanças às aves comestíveis, decepadas e decapitadas, "carne para canhão”, como os portugueses e tudo o resto. Só Beatriz’ salva-se, adquirindo as suas asas e transcendentemente sobrevoando tudo o resto. 

Great Yarmouth: Provisional Figures” instala-se como um ensaio sem norte, talvez as várias vidas e os seus vários procedimentos criativos o esvaziaram, porém, encontra conforto na sua protagonista, maior que o filme, maior que a vida. Beatriz Batarda show, é o que é!

"Dá-me as minhas savings"

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Participação nos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre"

Hugo Gomes, 31.05.20

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Convidado para integrar/contribuir na lista dos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre", uma iniciativa do site Filmspot, que teve o mérito de reunir mais de 100 personalidades ligadas ao setor, entre atores, realizadores, técnicos, jornalistas, programadores e muitos mais. Aqui fica o link para consultar a lista consolidada e definitiva (acompanhada por ilustrações do artista Rui Cavaleiro) e ainda os tops individuais, incluindo o meu.

Ver aqui

Nuno Lopes: "o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade"

Hugo Gomes, 22.10.19

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Nuno Lopes em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Nuno Lopes passa do Bairro da Jamaica em “São Jorge” diretamente para os ecrãs internacionais em projetos como “Chamboultout” [“Sem Filtro”, de Eric Lavaine] e “Une fille facile” [“Uma Rapariga Fácil”], o mais recente trabalho de Rebecca Zlotowski, onde contracena com a polémica Zahia Dehar.

O filme estreou na Quinzena de Realizadores em Cannes e, desde cedo, tem captado as atenções do Mundo, não apenas pela estreia da “acompanhante de luxo” na atuação, mas pelas temáticas da luxúria, descoberta sexual e os jogos de poder. Nuno Lopes é o amante da personagem de Zahia, um homem que exibe as suas posses para restringir-se a um mundo sexual.

O ator português, que conquistou o prémio de ator da secção Horizontes na obra de Marco Martins, falou sobre a sua experiência no filme de Zlotowski, o seu trabalho além fronteiras, a política e as suas motivações.

Só este ano encontrámo-lo em duas produções internacionais. Foi o prémio de Veneza que o motivou a romper as fronteiras?   

O facto de ter feito o "São Jorge", aliás, o facto de ter vencido o prémio em Veneza, abriu de certa maneira uma porta que abre tudo, porque altera drasticamente a abordagem do meu agente aos produtores. Existe uma diferença na persuasão entre o “ator português que é bom” e o “ator português que é bom e que tem um prémio de Veneza“. Obviamente, que os produtores irão ouvir melhor a última frase [risos].   

Mas acima de tudo, este ano e meio foi também graças à minha ideia de apostar numa carreira internacional, possivelmente motivado pelo prémio. Não com isto insinuar que pretendo ser um ator internacional, mas como filmo muito e em Portugal são produzidos poucos filmes, tenho que procurar lá fora. Um ator de cinema no nosso país tem pouco trabalho, porque não existe uma indústria, mesmo nós tendo filmes maravilhosos. Não posso ficar à espera que surja uma produção com uma personagem que se adequa à minha idade, por mais que ame o cinema português.

A idade é um problema na carreira de um ator? Em 2018, numa conversa com Luís Miguel Cintra, ele referiu essa escassez. 

Para os homens não, para as mulheres sim, infelizmente. Para a minha idade isso ainda não acontece, mas é óbvio que com mais idade os papéis serão cada vez mais escassos. Há uma realidade em que, qualquer filme que tenha visto nos últimos tempos, tem jovens, protagonistas entre os 20 e 30  anos e raramente existem personagens com mais de 60. Mas isto não é um problema exclusivamente português, mas mundial. E acrescento ainda que é sobretudo no mundo ocidental, porque olhamos para as pessoas velhas de uma maneira adversa que, por exemplo, não existe no Japão. Tal, nota-se na cinematografia nipónica.

Mas no Ocidente, a tendência de produção é sempre direcionada aos mais novos.

Exatamente! Nesse caso, as culpas devem também ser atribuídas ao público. No outro dia estava a ter uma conversa em relação ao drama Martin Scorsese e os filmes da Marvel, e disse que a culpa desta enchente de super-heróis é da nossa geração, porque simplesmente deixamos de ir ao cinema e ficamos em casa a ver séries ou filmes no computador. E aí pensamos, quem são os maiores consumidores de cinema nas salas atualmente? Os adolescentes. E é por isso que os estúdios produzem quase somente estes filmes. Por isso é natural que os cinemas sejam invadidos por histórias de teor adolescente sem grande profundidade. Mas volto a frisar, a culpa não é de quem produz, é nossa, e temos que mudar isso. Temos que voltar aos cinemas e demonstrar aos produtores que há público para filmes sem ser de adolescentes.

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Nuno Lopes e Zahia Dehar em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Enquanto isso, num catálogo da Netflix temos propostas bem mais adultas.

Aí está, as pessoas ficaram em casa. E é pena, porque acho que não se deve perder esta indústria cinematográfica. Bem, até me custa referir o cinema como indústria … mas não se deve perder esta ideia de sala, de Cinema para ser visto no grande ecrã, porque existe uma experiência para além da do filme, que é o ritual de sair de casa, comprar o bilhete para aquela mesma sessão e marcares ou não para veres aquele exato filme. É toda uma experiência. Eu, por exemplo, sei exatamente os filmes que vi no Cinema e nem sequer me lembro daqueles que vi em casa. Depois temos a consideração de que um realizador faz um filme para ser visto em sala. Tu nunca ouves alguém afirmar que fez um filme para ser visto numa Netflix.

Fale-me da sua experiência com Zahia Dehar. Como foi contracenar com uma não-atriz?

Estou muito acostumado a contracenar com pessoas que à partida não são atores. Por exemplo, no “São Jorge” partilhava o ecrã com amadores. Quanto tu usas não-atores no teu filme, é porque pretendes que a “personagem” dela seja muito próxima da pessoa que ela é. Isso é a grande diferença entre atores amadores e profissionais. Os amadores podem ser tão ou mais profissionais que os profissionais, mas estes só se restringem àquela persona quase documental. E isso aconteceu com este filme, que aliás, foi escrito pela Zahia. Ela sabia exatamente o que pretendia da sua personagem.

Na questão desta relação entre ator profissional e não-profissional, era a Zahia que me dava conselhos [risos]. Ela é que virava-se para mim: “se vais falar com uma mulher assim, então nada vai acontecer” [risos]. “Por isso tens que falar de outra maneira“. Ou seja, ela é que me dirigia a mim, e eu teria de aproveitar a experiência visto que a Zahia entende mais deste mundo do que eu. Ela é que discutiu e concebeu o filme com a realizadora. Portanto, fiquei mais a ganhar com esta parceria que ela.

Em relação às cenas de sexo, a Zahia tem uma disponibilidade que não se encontra em quase nenhuma atriz, infelizmente.

E sentiu-se desconfortável em relação às cenas de sexo?

Não. Para dizer a verdade, sou tímido por natureza. Não é uma coisa que desejo, assim como não desejo estar num ringue a levar socos, mas se isso ajuda o filme, farei. Neste caso,  se as cenas de sexo eram importantes para o filme, então fazia.

Considera-se um ator de método?

Não, porque os atores de método constroem as suas personagens através do seu próprio passado e das suas emoções pessoais. Eu, por outro lado, recorro mais à imaginação para criação das minhas personagens. Agora, considero-me um ator metódico, e utilizo algumas ‘coisas’ que muitos consideram de método, como o de viver experiências relacionadas com as personagens. Por exemplo, se vou fazer filme sobre boxe, obviamente vou praticar pugilismo. Contudo, não sei se é método ou uma deficiência minha [risos], porque se pudesse evitar isso, na construção das minhas personagens, evitaria. Mas esta é a minha maneira de trabalhar e aquilo que penso funciona.

Na nossa atualidade, um filme com a exposição e temática do “Uma Rapariga Fácil'' seria mais difícil se o realizador fosse um homem?

Acho que nos tempos de hoje, um filme destes não poderia ser feito por um homem. Porém, o filme coloca questões, sendo isso que o torna bastante divisivo. Conheço pessoas que adoram o filme, assim como outras que o odeiam. No outro dia estava a falar com uma pessoa que o odiou, e disse-lhe que é bom sinal um filme ter suscitado essa reação. Hoje em dia, o politicamente correto – não sou contra a ideia, sou contra a forma como muitas vezes se aplica, por vezes sem o bom senso – tem implicado que a diferença entre um filme bom ou mau é consoante o facto se concordas ou não com o que é dito. Acredito que um filme possa ser maravilhoso só pelo princípio de não concordares com o que ele diz e com isso provocar uma discussão. A arte, em última análise, serve para provocar uma discussão. E é essa mesma discussão que fará mover a sociedade. Mais do que um filme que termine e que tu digas: “olha, esta pessoa pensa exatamente como eu“. E vais para casa e não pensas mais sobre isso.

Este “Uma Rapariga Fácil” faz exatamente isso. Provoca questões e coloca o espectador perante os seus próprios preconceitos, a tua própria ideia do que é uma “rapariga fácil”, e de quem é a Zahia Dehar. Por exemplo, olhas para o escândalo da Zahia e tens isso em mente sempre que vês o filme. Este coloca a câmara no ponto-de-vista destas personagens, ou seja, ele joga perante os nossos preconceitos, desafia-os, assim como afronta a maneira como olhamos para mulheres que de certa maneira são estigmatizadas como um corpo sem voz.

A Rebecca constantemente dava-me o exemplo de que ninguém sabe como fala a Kate Moss, porque essa pessoa é uma imagem. Uma imagem mundialmente conhecida, mas que ninguém teve a atenção de ouvi-la. Acho que o filme é feminista nesse sentido, porque pega na dita objetivação da mulher, que é reduzida a uma vaidade, a um símbolo de sex appeal, e resolve abordar isso como uma outra espécie de emancipação, uma maneira de poder. Obviamente, com isto entramos no território do que é mais exibicionista: a mulher que dança seminua numa coluna de discoteca ou o homem que coloca a chave do Porsche na mesa do restaurante? Qual é o nível de exibição? E qual é o primeiro que a sociedade julga?

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Nuno Lopes em "São Jorge" (Marco Martins, 2016)

Há uma certa ideia de que a luxúria, o sexo explicito e todas essas consoantes são próprias do universo masculino, e nunca do feminino… 

É curioso essa questão das cenas de sexo, porque é muito mais difícil filmar uma cena dessas sob o ponto de vista feminino. Por isso não me importo da minha exposição aqui. Isto é uma maneira da realizadora declarar que também quer olhar para o corpo masculino, que também quer admirá-lo. Não me fez confusão, pois acima de tudo senti que estava a trabalhar por um bem maior.

É sabido que está a rodar com a atriz Beatriz Batarda um novo filme de Marco Martins. O que podes dizer sobre ele?

O filme passa-se em Great Yarmouth [Reino Unido] e irá anexar os temas do Brexit, crise e imigração. Irei contracenar com não-atores, quer portugueses e ingleses, muitos deles trabalhadores daquela região. Sobretudo, será um filme sobre a violência com que os imigrantes são expostos. E irá desafiar-nos a questionar a maneira com que olhamos para os estrangeiros e como eles olham para nós. Sim, focará essa crescente vaga de imigrantes na Europa e na sua crise.

Em jeito de curiosidade, quando aconteceu a polémica do Bairro da Jamaica, o nosso primeiro-ministro António Costa afirmou publicamente que só começou a conhecer a situação dos habitantes desse mesmo bairro através do “São Jorge”. Acredita que com o novo filme de Marco Martins, ele estará ciente dos problemas dos imigrantes portugueses?

[risos] Acho que o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade. É por isso que nunca me associei a nenhum partido. Não é que eu não tenha nenhum partido ou visão política, mas apenas porque a arte é contrapoder, o oposto do poder. A arte serve para provocar questões, enquanto o poder serve para resolver essas mesmas questões. São duas faces da mesma moeda, mas são completamente distintas.

Mas então o que pensa das associações e procura das facções artísticas em campanhas eleitorais?

Eu percebo o ponto vista deles, não percebo é do ponto vista dos artistas na maior parte das vezes. Também entendo que um artista preocupado, e cidadão, possa não ter a mesma ideia que eu tenho e que deseje o melhor para o país, e que apoie aquela ou outra pessoa. Tem todo o direito.

Em “Sem Filtro”, assim como “Uma Rapariga Fácil”, o Nuno é visto como um galã lusitano [risos]… 

Acho que essa imagem pode mudar [risos]. Entretanto fiz de assassino também num filme francês que ainda não chegou ao nosso mercado.

Falando com Beatriz Batarda, a nossa "Sara", a atriz do choro e do riso

Hugo Gomes, 16.11.18

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Foto.: Hugo Gomes

É de facto uma das “caras” mais reconhecidas do cinema português. Beatriz Batarda irá transitar para um novo universo, as séries de televisão e estreará com Sara, um ensaio meta-narrativo de uma atriz de drama que perde a capacidade de chorar e embarca numa jornada ao reencontro do seu “eu”.

A atriz, conhecida pelos seus trabalhos em obras de João Canijo, João Botelho, Margarida Cardoso, Manoel de Oliveira e, claro, Marco Martins, falou sobre a nova aposta da RTP e as escolhas dos atores, mais precisamente, as suas escolhas de carreira.

Confesso que estive a procurar qualquer indício de trabalho na televisão portuguesa. Como não encontrei, presumo que esta seja a sua estreia neste formato, por isso questiono: como é chegar à produção televisiva nacional?

Para dizer a verdade, fiz figuração há 25 anos atrás. Essa informação ficou perdida, nem me lembro se era novela ou série, mas porque hoje só temos currículo se estiver na internet.

Mas bem, não considero uma estreia, Sara é a minha chegada. O que posso dizer é que se trata de um universo bem à parte do Cinema. Enquanto espectador particular, porque sou profissional, vejo o quão diferentes são esses formatos: Cinema, Televisão e Teatro. E dentro desses mesmos existem registos completamente distintos. A qualidade maravilhosa desta série é que no mesmo seriado conseguimos reunir imensos registos, e numa forma organizada, natural e até intuitiva, sem perturbar a narrativa, a estética e até a linguagem da montagem que está instituída.

O facto é que o Marco [Martins] ter conseguido na sua realização esse casamento, porque se mantêm essas qualidades que estão todas presentes, é notável. Como se diz - qual está na moda nesse rol de programas de culinária - uma explosão de sabores [risos]. Estes termos e expressões vão ser absorvidos naquilo que é agora a programação televisiva. Esperemos que esta série influencie alguma coisa ou até mesmo alguém.

E como esta ideia chegou a si?

As pessoas quanto muito também conversam, partilham desejos e projeções, e o Marco tinha desejo de experimentar a televisão. Eu fiz pouca televisão, porém, gosto de explorar, aprender, sair da minha zona de conforto e o Bruno [Nogueira] tinha sido desafiado pela RTP para apresentar um projeto novo. Esteve ali nessa procura e apresentou esta sinopse, até porque tudo começa com uma simples sinopse, um esqueleto evidentemente.

A premissa de uma atriz que é apanhada no fundo de uma tragédia, que constitui na perda do seu maior instrumento – a capacidade de chorar – e transformando essa tragédia em algo risível. No fundo é o que fazem os escritores de comédia. É uma forma de ultrapassar, de viver com, digerir as dificuldades da vida. A comédia nos ajuda a fazer isso. Ou seja, ele fez um esqueleto e partilhou com o Marco esta ideia, que por sua vez ficou entusiasmado e quis logo fazer parte enquanto realizador. Penso que não é injusto dizer que a ideia do Bruno surge um pouco inspirada nesta imagem que eu construí, uma imagem pública que não corresponde certamente à verdade.

Sara (Marco Martins, 2018)

E que imagem é essa?

Sei que estou catalogada como aquela atriz ligada ao Cinema de autor, o do drama e com pretensões intelectuais arrogantes. É a construção de uma imagem como outra qualquer que alimenta muitos espelhos. Realmente existe quem se alimente disso e eu vivo bastante bem com essa imagem, é quase como um acordo entre cavalheiros. É agarrada nessa imagem que o Bruno desenvolve a ideia da Sara. Construímos juntos esta personagem, fomos dando essas cores, espaço para várias vertentes. Resumidamente, aquilo pelo qual gosto de construir personagens cheias de contradições. Como tal, fomos criando espaços na narrativa para que estas mesmas contradições ganhassem corpo e dimensão cómica evidentemente.

Poderemos afirmar que a Beatriz e a Sara têm muito em comum?

Não, porque na verdade isso não corresponde à realidade, essa é apenas a imagem que as pessoas tem da minha vida profissional. Tenho um percurso imensamente variado. Já fiz anúncios, comédias, policiais, tragédias clássicas e textos contemporâneos. No Cinema, já passei tanto pelo comercial quanto como de autor. Sempre tive sorte de visitar as várias áreas. No entanto, é aquilo pelo qual sou catalogada nesse nicho. Mas não me identifico de todo com esse rótulo, evidentemente, aliás, nunca fiz novela.

E faria alguma novela?

Porque não? Estás a ver, isso já é uma projeção em relação a mim. Eu nunca disse em entrevista alguma que nunca faria novela ou que era contra as novelas. Até trabalho com muitos atores que fazem novelas. Não as vejo porque não me preenche, não me interessa, mas espreito por causa de imensos atores com os quais trabalho e que entram nesse formato.

Mas concorda com um preconceito em relação aos atores de novela? Quase soa como um sistema de castas.

Há um ditado: diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és. As nossas escolhas não nos definem na totalidade, mas influenciam a nossa estruturação. Há escolhas que fazemos na vida porque sim, porque nos levam àquele caminho inconscientemente. às vezes não podemos escolher, o que é mais grave, algo mais redutor na nossa vida. Olhamos muito para poder oferecer aos nossos filhos a possibilidade de escolha. É uma grande arma, até porque nem toda a gente tem esse poder. Tive a felicidade dessa sorte  (…) e estou grata por isso (…) o de poder escolher e fazê-lo em função das minhas necessidades. Agora, em relação a esse debate de que os atores de novela são inferiores aos atores de Cinema? A minha resposta é não. Não há inferioridades. Os atores transitam e alguns especializam-se em determinadas áreas. Sei que existem atores que são bons em fazer novelas, isso ninguém lhes retira o mérito. Assim como muitos não estão interessados em transitar para outras áreas, como o Cinema. Há espaço para isso tudo. Tal não te faz melhor ou pior ator, versátil ou limitado, tudo se resume a escolhas.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

Assim como a novela, a comédia é também uma plataforma bem subvalorizada pelo grande público, no que se refere a valorização de atores.

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas o que é que entendes por valorizar? Dinheiro ou estamos a falar de reconhecimento intelectual. É que tudo isso, como havia dito, são fruto das escolhas. Tudo em função das necessidades. Se precisares de reconhecimento intelectual, então procurarás isso, em caso de retorno financeiro, essa será a tua busca. Isso vai influenciar a escolha do teu caminho. Aqui, por exemplo, o Bruno escreveu uma série, ele é comediante e acima de tudo reconhecido intelectualmente.

Isso da comédia ser subvalorizada é uma bandeira do senso comum. Como por exemplo, é costume dizer que a comédia não vai longe nos Óscares. O que eu acho é que os critérios são muito altos e bastante inflacionáveis consoante o seu contexto. O fenómeno social em que se vive naquele presente que o filme acontece, e isso é muito variável. A comédia é na verdade muito mais difícil do que o drama. Apesar de eu partir do princípio que chorar e rir é essencialmente a mesma coisa.

Ou seja, é da opinião que a comédia vive dos mesmos elos da tragédia?

Na vida, quando tu ris, na verdade estás a chorar, porque estás a reagir ao teu medo. Tu ris porque tens medo. Para mim é a mesma coisa – chorar a rir. Vem da mesma dor, da mesma inquietação, da mesma perda e quando a comédia faz as pazes com isso adquire uma dimensão diferente.

E quanto a expectativas para a série?

Não tenho nenhumas. Nunca tenho expectativas. Eu faço o melhor que posso e depois, já não é meu. Larguei.

Novos projetos?

O Marco Martins convidou-me para a sua nova longa e eu fiquei imensamente contente. A minha personagem será uma imigrante portuguesa em Inglaterra que faz a ponte entre uma entidade empregadora de uma zona industrial e os imigrantes portugueses em situação limite em busca de uma saída económica.

Tendo em conta o Cinema de Marco Martins, aposto que esse projeto terá algo de Brexit pelo meio.

Não é à toa que ele escolhe Inglaterra como cenário, pretendendo assim levantar todas essas questões, se há ou não livre circulação dentro dos mercados e se em concreto é equilibrada ou não

Bruno Nogueira: "A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer"

Hugo Gomes, 06.10.18

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Uma atriz sobretudo dramática que perde o dom de chorar. Resultado, uma inversão de marcha na sua carreira então presa a arquétipos e uma busca pelo que realmente lhe faz feliz. Esta é a resumida premissa de “Sara”, a série de Marco Martins que promete abalar toda a nossa perspetiva de ficção à portuguesa no pequeno ecrã e demonstrar as versáteis capacidades de Beatriz Batarda, que à imagem da protagonista tem vindo a ser “acorrentada” a rótulos.

Uma proposta deliciosamente satírica e astuta que veio originalmente da mente de Bruno Nogueira. O comediante e ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto e de que maneira ele se insere no panorama audiovisual português.

Sendo o autor da ideia original, gostaria de perguntar como esta surgiu?

Surgiu da minha realidade e da realidade que conhecia da Beatriz, uma atriz que facilmente cai no estereótipo, reduzida ao mesmo tipo de papéis. Sempre que a convidavam, não era para encenar “casamentos felizes”, “famílias felizes”, mas sim desempenhar algo trágico ou coisa que pareça. Pensava muito nesse mecanismo de uma atriz como a Beatriz que de um dia para o outro não conseguia mais chorar. O que aconteceria a esse tipo de atriz dramática se fosse lhe retirada a sua mais preciosa ferramenta de trabalho, e com isso a procura de um lado mais feliz na sua vida. Então imaginei essa viagem, e imaginei a partir da própria Beatriz.

De certo modo, “Sara” é sobre a Beatriz Batarda?

Só o facto de ser uma atriz e ficar quase limitada aos papéis dramáticos, o resto é somente ficção. A sua jornada, famílias, relações, amigos, tudo é fruto da ficção.

Portanto, foi através dela que construiu a base desta série que funciona no todo como uma crítica satírica ao mundo do Audiovisual e do Entretenimento do nosso panorama?

Sim, mas mais que isso, todo este processo de conceção obrigou-me a pensar sobre o Cinema, Teatro e até mesmo Televisão, no que leva um ator a fazer determinada coisa, muitas vezes tendo motivação financeira, outra apenas por curiosidade profissional, ou é uma fase da vida em que se procura o que é mais seguro. Sempre tive esta ideia mesmo quando estava fora do mundo audiovisual, agora que estou dentro apercebo-me que a realidade é para lá disso. Depois só me interessava brincar com a realidade da situação, com aquilo que a Beatriz e o Marco pensavam que era. Depois juntei uma essência forte e eficaz daquilo que é a nossa visão sobre o que são estes meios nos dias de hoje.

Mas “Sara” foi inicialmente pensado como uma série ou um filme?

Numa série. Foi sempre pensado como tal.

Mas diria que existe uma linguagem muito cinematográfica em “Sara”.

Sim, foi parte do Marco [Martins], que entrou no projeto a partir de uma simples conversa de quotidiano. “O que estás a fazer? O que andas a fazer? Projetos futuros?”, falei-lhe desta ideia e segundo as suas próprias palavras, ele achou “perfeito”. Assim, após a sua entrada, esta ideia deixou de ser minha e passou a ser “nossa”. Foi quase um trabalho em família.

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E como pensa que reagirão os espectadores em relação a “Sara”?

Não sei. Acho que toca com vários tópicos, mas sobretudo vai muito ao encontro da perceção que os espectadores têm, outros informaram um pouco mais, mas um caso é um caso. Não sei realmente como reagirão. Isto é uma coisa muito egoísta de dizer, mas “Sara” foi concebido como aquilo que eu gostaria de ver na televisão neste momento. Por isso, como última análise, isto foi para nós vermos. Foi um projeto fiel aquilo que pretendíamos e que gostaríamos de ver, obviamente tendo em conta que isto estava direcionado para televisão.

Mas é um projeto arriscado para a nossa televisão, diria que é uma série construída a partir de uma metalinguagem bastante própria e incisiva.

Vejamos, a ideia era de posicionarmos de fora a assistir a isto tudo. Portanto, tem várias camadas. Dando exemplo, colocamos a Rita Blanco a criticar quem faz novelas e anúncios a bancos, enquanto sabemos que a própria atriz já fez isso tudo. A série retrata um pouco o Mundo de cada um dos envolvidos, e mesmo sendo, em alguns casos, feridas nossas, só o facto de avançarmos com essas representações estamos em certa parte a exorcizar os nossos pontos fracos.

Tendo como base o conteúdo, o contexto e as “farpas” que Sara constantemente lança, gostaria de perguntar como vê a atual produção cinematográfica e televisiva em Portugal?

Cada vez mais o Cinema Português vem ao encontro com o público e durante muito tempo estes dois fatores estavam intrinsecamente desencontrados. O público não via o nosso cinema, guiando por palavras-chaves como “filmes longos e chatos” (e verdade é que existiam imensos longos e chatos). Hoje em dia, uma coisa que ajuda imenso o cinema português, felizmente, é o reconhecimento estrangeiro e desta nova geração de realizadores que têm uma maior proximidade com o público. Por isso, sou da opinião que o cinema português está melhor não só por essa cumplicidade com os espectadores, mas até pelos espectadores que fizeram um esforço para entender a sua linguagem.

A televisão … bem … tendo em conta a minha experiência, uma ideia passa por imensas transformações até chegar ao produto final. Veja-se o caso de “Sara”, a ideia é originalmente minha e foi gradualmente transformada em uma outra ‘coisa’ com as contribuições de Marco Martins, Beatriz Batarda, entre outros. O que restou dos primeiros pensamentos foi nada do que está ali. Julgo que em 90% das séries nacionais, as ideias, que podem ser boa, são submetidas a todo um conjunto de intervenções, passando pelos executivos a produtores, “vamos meter umas gajas nesta cena aqui”, ou o diretor do canal, “epá, o que ficava bem aqui era aquele gajo que agora está na ribalta”. Portanto, a ideia com todos estes contágios misturados resultam numa … papa … perdeu-se no caminho.

Acho que temos ótimos autores em Portugal, mas a ideia original perde-se no trajeto e aquilo que presenciamos no ecrã não é, nem tão pouco aquilo que originalmente seria. De resto, não acho que esteja num caminho brilhante. A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer, e por vezes isso é discutível. Para vir para cá, passei por um acidente na A5. Não havia trânsito, mas os carros paravam para ver os destroços. Naquele momento, o que público pretendia era ver o acidente, por isso julgo que essa política “das intenções do público” não seja de todo verdade.

Um canal privado tem outras obrigações para além de mostrar o “acidente”, e a RTP, enquanto pública, tem o papel fundamental que é o respeito pelos atores e cumprir essa preservação autoral, assim como a valorização dessas mesmas.

Novos projetos?

Penso voltar à televisão, por enquanto não é o momento certo, estou à espera de ideias e isso leva o seu tempo. Contudo, vou regressar a algo que tinha saudades e que têm dedicado paixão que é o stand-up comedy. Ando em experiências e testes de material e em novembro arrancarei com uma tournée.

Um cavaleiro andante contra o dragão social

Hugo Gomes, 15.02.17

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Mais do que a construção de um martírio e a procura de um mártir, “São Jorge” nos invoca episódios silenciados, a austeridade que surgiu de arrasto pela passagem da Troika, e a revelação de uma selva de asfalto, onde a primitiva regra de sobrevivência se faz ouvir.

Nuno Lopes, que de anjo nada tem, é um desses seres que planeia cada dia como o último. Ligado a uma carreira falhada no pugilismo, consegue um trabalho obscuro como coletor de dívidas. Um cargo que embate de forma consciente com as morais que imperam nesta sua jornada pelos confins da inserção social e da mordaz crítica política (sem ser obviamente evidente). Traços que levam o nosso protagonista novamente a assumir-se como vítima de mais uma busca desesperada, sendo acompanhado pela mesma “câmara incomoda” de há 11 anos , em "Alice''.

Marco Martins é esse maestro “repetente“, e a orquestra, essa, lentamente liberta o seu furtivo crescendo, para ser depois seduzido a um perturbador fade out. Este é o cinema que o romeno Cristian Mungiu sempre procurou, a cumplicidade do realismo formal com o juízo de valores, maleável à nossa consciência política e idealista, ou até a sugestiva perturbação que se ressalta como stalker, tão próprio da mão de Haneke. Pois, mas o estilo de Marco Martins apenas deduz-nos a essas referências, porque existe nele uma veia profundamente portuguesa que vai desde aquele pessimismo orgulhoso, àquela infelicidade longe do fim e sobretudo da espera, a eterna  frase do “dia melhor que nunca vem“. Contudo, existe uma declaração que afasta “São Jorge” do formalismo do cinema nacional.

Uma voz política que parece mais consciente que o percurso do protagonista (… e que protagonista!) confrontando-nos com as mais demarcadas morais. Mas não pensem que daqui encontraremos um filme moralista, antes sim, um filme sobre morais. Perturbador, desencantado e … um poderoso retrato de violência social.