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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

O rapto do judeu

Hugo Gomes, 17.04.24

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Forçando o seu lugar enquanto "maestro" do circuito italiano em perpétua reinvenção, Marco Bellocchio instala-se num cinema de dramaturgias clássicas, tecidos delicados que cobrem um dos (muitos) episódios escandalosos que envolveram o papado de Pio IX, regendo Itália num ultraconservadorismo que atraiçoou quem o julgaria na iminência do liberalismo. Esse mesmo "scandal" [1858] desembocou no "rapto" de uma criança judia de Bolonha, Edgardo Mortara (alegadamente batizado “às escondidas” por uma criada), e na sua cativação entre as "saias do Papa". Porém, não fiquemos unicamente pelo retrato histórico, fiquemos por momentos de turbilhões emocionais de velha guarda que Bellocchio capta no seu belo filme de época, desde o tormento da separação até aos reencontros de cortar à faca entre o enfant contra a sua vontade e os progenitores cada vez mais subjugados à sua impotência.

Mas é numa cena específica de “Rapito”, talvez banhada por auras divinas ou um toque de "magia", em que o nosso pequenito Edgardo (Enea Sala) perante o seu dilema teológico, contemplando a sacra imagem de Cristo, moribundo e pregado à sua cruz, decide resgatá-lo da sua martirologia, retirando prego a prego num doce pedido de perdão por pecados alheios. É um judeu a libertar Cristo, o judeu nazareno que afirmou ser Filho de Deus perante os cépticos fariseus que, chocados com tais declarações, o acusaram e entregaram à mão de ferro romana. É a história das histórias, como se estampada numa velha Hollywood, mas não se trata aqui dessa mesma recontagem da subida ao Calvário ou da Páscoa concretizada nesse mesmo instante, é com Edgardo, após o seu gesto de compaixão, que a reconstituição, por efeito de realismo mágico, assenta numa nova ressurreição, a qual o ente divino evade da sua improvisada prisão de madeira, como do santuário fora.

Marco Bellocchio conseguiu um momento em grande, até porque recita as suas glórias imagéticas; o olhar infantil, inocente e ainda envolto em mistério quanto ao desconhecido, aliado ao turbilhão sentimental e identitário do seu percurso (as personificações fora do real quotidiano como parte do seu coming-to-age). Mas as alianças com essas representações, o papel da Mãe, aqui enfaticamente trágica, doente e submetida a uma existência subtraída pelas vontades do Poder dominante, mantém-se como vínculo ao conflito interno (e externo) de Edgardo. É também através desse olhar materno (sofrido e tão bem emanado por Barbara Ronchi) que nutriu amor pelo “rapazito”, que o filme estabelece um sentido de confluência, sendo estes os tópicos ardentes na filmografia de Bellocchio, visto que é através deles que os seus filmes nascem, numa aproximação à sua realidade, numa encostar à sua perda pessoal, refletida em muitas das suas conversões dramáticas. 

Fora isso, "Rapito" é um facto histórico reconstruído como drama portentoso, emocionalmente imenso numa clausura que aperta e aperta, mais e mais, até deixarmos a contenção ser a mais infalível conformação perante o destino. Aconteceu... um menino judeu foi levado dos seus pais em nome da Igreja Católica, por ordem de um Papa com fobia da circuncisão. Aconteceu... como também gerou um belíssimo filme.

"Fracassei até no Amor"

Hugo Gomes, 26.07.22

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Antes de seguirmos pelas causas pessoais que levaram à “fabricação” deste documento, deparamos com a raiz inspiracional na obra de Marco Bellocchio, um realizador promissor nos anos 60 (a primeira longa-metragem “I pugni in tasca”, em 1965, conquistou um prémio em Locarno e o amor de Luis Buñuel), hoje declarado como “maestro” do cinema italiano, simplesmente pela ausência que esta cinematografia tem revelado nos últimos tempos. Trata-se de um cinema próprio que veio beber das suas experiências e esferas emocionais, a mãe de um lado, o fascismo do outro e o seu irmão - Camillo Bellocchio - gémeo, precocemente desaparecido, ou, como o filme revela-se no orbitar da sua ausência, um suicídio que veio abalroar a extensa família Bellocchio [em ‘68]. 

Marx Pode Esperar” / “Marx può aspettare”, o que indicava ser uma autocitação, um extrato do seu “Gli occhi, la bocca” (1982), não passa de uma memória, uma inesquecível resposta do seu “fraterno” perante a fervorosidade política que se vivia. Foi o título sugerido e aceite, como poderia ser outro, que na memória do espectador perante este retrato, na não-leitura da desparecida carta de suicídio - “Fracassei até no Amor” - soaria como o indicado em tributo à existência tormentada da figura. Desta feita, pego, embrulho e entrego a Marco (pobre Marco, que tem que consolidar essa tragédia na sua vida), um bilhete para o que viria depois, um remorso, uma frustração, uma impotência, até porque ninguém desconfiava dos medos de Camillo, da sua falta de ambição anexada à sua perspectiva derrotista para com a vida. Marco Bellocchio, como o próprio assume, usufruiu do estado do seu irmão para inspirar a sua filmografia, negando um espaço para com o seu consanguíneo pudesse “expandir”, o “mea culpa” que o realizador aponta neste documentário, pessoal, longe do perfeito e performativo. 

É a sua carta, não póstuma, mas eventualmente entregue ao espírito, ou lá que seja, e nela reside o seu perdão, a sua epifania. Bellochio atingiu o estatuto de “maestro” cinematográfico (como havia dito), não existe mais nada a alcançar, sendo o momento ideal para invocar e apaziguar os seus demónios. “Marx Pode Esperar”, talvez, seja o melhor trabalho que o realizador elaborou em anos, tudo, porque de uma maneira ou de outra, regressa aos seus “esqueletos”, ao seu intimismo, ao memorialismo e às sombras que o cercam. 

É um filme pessoal, sim senhor, mas até que ponto julgamos que o Cinema é obrigatoriamente informal?

Marco Bellocchio força o seu lugar entre os “maestros”

Hugo Gomes, 21.10.19

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Se começarmos por dizer que “Il Traditore” é o melhor Marco Bellocchio em anos, estamos a reduzir a potencialidade do atual cinema italiano que sofre com a queda dos antigos maestros e que persiste em estafetas do legado. Talvez seja por questões naturais, a cedência para com a morte tenha levado Bellocchio a ser considerado numa espécie de novo “veterano”, conquistando o título há muito tempo cobiçado de “mestre”.

Com esta história baseada na vida real de Tommaso Buscetta, membro da Cosa Nostra que se tornou no primeiro informador de Sicília, o realizador segue por dentro do universo do cinema da Máfia, e com autocensura de nunca reduzir-se aos lugares-comuns, hoje partilháveis no território da caricatura, consegue gerar um filme energético e consistente na sua simplicidade de “storytelling“. É uma obra de um claro esforço de nunca sobressair do formalismo no qual está inserido, e diríamos mesmo sob um efeito de fórmula, sendo por vezes nisso que reside o seu maior trunfo: uma aura de cinema semi-político conscientizado na universalidade da narrativa.

Partimos então na envolvência de Pierfrancesco Favino, que sob as suas vestes de cordeiro/lobo carrega “Il Traditore” para terreno afável, um filme que ama a sua personagem e esse amor é vivido, não só pelo realizador, como também pelo seu ator. O seu carisma é frutífero para a construção de um protagonista que facilmente poderia ser condenado a cumprir sentença no esquematismo. Com Bellocchio, os seus ensinamentos na arte de embelezar o enredo para um foco moral servem como armas para que o “traidor” cumpra a sua missão como um ato de subsistência e misericórdia. Depois, são as pequenas pérolas deixadas pela experiência de um homem que conquista por fim o seu trono no panorama cinematográfico italiano.

Dentro dessas “preciosidades”, encontramos cenas como aquelas que decorrem em tribunal. O hall da justiça funciona como um cenário caótico que explicita a ebulição política e de agenda oculta da época, simbolizando o fim da romantização à Máfia (“palavra inventada pela imprensa“), ou melhor, da Cosa Nostra. A metáfora do apocalipse moral dentro dos réus. São essas mesmas cenas que "Il Traditore" encontra a sua essência de vida, afastando-se do simples biopic criminal, através de uma biografia à criminalidade. E mesmo que Bellocchio embarque no fim premeditado desse amor de grande ecrã pelo universo da máfia siciliana, o filme tende em procurar um teor de encanto (descrito principalmente na fábula episódica que acompanha a cruzada de Buscetta) a esse desencanto que o atual cinema italiano parece estabelecer no mesmo território. É através desse termo que o realizador mostra a nossa alternativa de nostalgia, mas através dele é o mesmo que olhar pelo buraco de uma agulha.

É o legado a pesar. Porém, “Il Traditore” emancipa-se como um reciclado refresco do género.