Dores de crescimento e de existência. "Que cinema é este Manuel Pureza?"
“Os Infanticidas” contém mais confusão do que exatidão. De Manuel Pureza, homem cujos últimos projetos e tomadas de posição se situam no chamado “gang do audiovisual” — nada de pejorativo aqui, pois a televisão continua a ser um campo de experimentação mais acessível que o cinema, nem que seja por via de spoofs de novelas com fórmula milagrosa (“Pôr do Sol”, que não resultou inteiramente ao perder as suas algibeiras paródicas na transição para o formato de filme), ou até pelo tributo ao 25 de Abril em alegorias episódicas com “Sempre”. Mas é na grande tela que Pureza, teimosamente, deseja fazer-se ouvir.
Escolheu as batalhas erradas, entre elas coligando-se a Sérgio Graciano num dos filmes mais infames da nossa cinematografia - “Linhas de Sangue” - em prol da germinação do termo “luso-blockbuster”. “Os Infanticidas”, por outro lado, posiciona-se como algo intermédio, com o realizador a aspirar à luz da autoralidade e, portanto, mesmo com a desculpa da adaptação de uma peça de Luís Lobão (apresentada no Teatro da Comuna, em 2017), embarca numa coletânea de vinhetas fragmentadas, aludindo à história de dois amigos que pactuam perante a perda da sua juventude (o medo do 'estado adulto' os levam numa labiríntica introspeção entre o pós-modernismo, o existencialismo niilista e o mero proustiano) .
A conformidade de um e a negação do outro estremecem como fio condutor entre pseudo-gags de concursos televisivos, jogos de xadrez ou anedotas racistas de plena consciência para com a sua natureza, entre esses cenários e outros, a narrativa desenrola-se num tom confessional e em direto contacto com o espectador. Pureza faz deste projeto o seu filme mais esquizofrénico: se a peça e o seu espectro teatral permanecem como manobra de experimentação, já a imagética escolhida pelo realizador interage com um conceito formalizado (por vezes satirizado) de “cinema de autor”. Entre split screens, cortes rápidos, sobre-impressões e uma cadência forçada que quebra a suposta estrutura aristotélica da narrativa, há quase uma impressão de Godard nos anos 60, das suas chinesas e dos seus Pedros enlouquecidos. No entanto, a referência não passa de papel químico: transformar esse azeite na sua interpretação de autor ou num suposto “cinema intelectualoíde”.
Talvez seja preconceito de ambas as partes: da minha, enquanto crítico, ao partir da premissa de que Pureza não teria potencial ou destreza para se libertar do sedentarismo do "cinema comercial português" (coisa que, na prática, nem existe), e da parte do realizador, ao tentar desencanar um conceito de cinema autoral influenciado por outros e por determinadas tendências. Contudo, por mais imperfeito que “Infanticidas” nos soe, encontramos nele uma energia sustentada, sobretudo, pelo par de atores - João [grande] Vicente e Luís Lobão (também autor do argumento) - e pela sequência final, um split screen interativo que, em consonância com os 70 minutos de filme, se assume como um grito de emancipação perante a sua austera capa de aparências.
Se tivesse de recorrer à binária fórmula do popular entertainer Roger Ebert—o “polegar para cima” ou “polegar para baixo”, como última palavra do imperador romano no Coliseu - nem eu saberia como o fazer neste caso.