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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Verdade ou Consequência?", no mundo de Luís Miguel Cintra: "escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje"

Hugo Gomes, 29.08.24

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Verdade ou Consequência? (Sofia Marques, 2023)

As cortinas descem, dividindo os dois mundos em que Camilla (interpretada por Anna Magnani) perdidamente se posiciona, num prolongado dilema existencial. Atriz de teatro, porém magnetizada pela vida civil que a espera sob juras de amor eterno, ou romances das alturas, só que acordada por um chamamento que lhe confronta com a sua “realidade”. Ela não pertence ao mundo dos meros mortais porque já havia feito a escolha, e há muito, o teatro, esse pulso de vida, o resto vencido ao seu estatuto de plateia, viraria num “outro teatro”, inacessível a Camilla

A mesma escolha havia feito Luís Miguel Cintra, e essa passagem integra e entrega a sua alma com uma sina. Trata-se do desfecho do filme de Jean Renoir, “Le carrosse d'or” (1952), o “da vida” do ator, segundo este, desafiado por João Bénard da Costa num certo dia. O derradeiro momento adquiriu uma dualidade simbólica neste “Verdade ou Consequência?”; a primeira, a essência do ator enquanto, e somente, ator, mais que uma profissão, uma vida restringida às dores da performance, do espéctaculo, do pensamento na arte e na forma, e por outro o reflexo emitido em hipotéticos e imaginários lagos encantados onde Luís Miguel Cintra, o próprio e não outro, contempla nesta sua jornada ao passado, à memória, aos tempos áureos e às figuras que o atravessaram, por entre fotos e arquivos abertos, locais manifestantes a essa nostalgia, à génese e ao seu íntimo.

Sofia Marques, também ela atriz, persiste na compreensão deste vulto maior da cultura portuguesa, não só do teatro, não só do cinema, como na invocação da sua aura, aquela que concentrou e inspirou centenas de artistas hoje em vigor. Depois de “Ilusão”, do qual seguiu de perto a concepção de uma peça no Teatro da Cornucópia, com fascínio à dupla Cintra - Cristina Reis, regressa agora com “Verdade ou Consequência?”, um convite, e um convidado, na busca das sombras, dos recuerdos e dos olvidados. E uma declaração vivida de “Ainda estou aqui!”

O Cinematograficamente Falando … falou com a autora, sobre o autor, sobre o processo de chegada, sobre a sua dimensão e tudo envolto. “Verdade ou Consequência?” chega aos cinemas portugueses, um depois da sua estreia no Doclisboa, em comemoração dos 10 anos do Cinema Ideal

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Verdade ou Consequência? (2023)

Gostaria que me falasse sobre os filmes, e especificamente sobre o tema que gira em torno de um único homem. Aliás, os seus filmes, não refiro apenas este, mas como também o “Ilusão” (2014), que de certa forma, aborda indiretamente esse homem, o Luís Miguel Cintra. Na sinopse oficial, você declara que esteve à procura do Luís Miguel Cintra que conhecia, ou seja, o do passado. Portanto, a pergunta é muito direta: conseguiu encontrá-lo neste filme?

Encontrei, sim! Trabalhei na Cornucópia durante grande parte da minha vida. Não foi a minha vida toda, mas pelo menos metade, porque entrei aos 19 anos e saí em 2016, quando a companhia terminou. E por essa razão, posso dizer que estava à procura de filmar algo que conhecia bem, no sentido de que sabia exatamente o que iria encontrar. Queria filmá-lo para mostrar às pessoas o Luís Miguel Cintra que eu conhecia, a que tinha acesso, e o quão privilegiada era ter esse acesso.

Só que, entretanto, quando comecei a fazer as filmagens [“Ilusão”], coincidiu com o fim do Teatro da Cornucópia. O próprio Luís Miguel estava numa fase muito diferente da vida, numa espécie de balanço, refletindo sobre como viver uma vida totalmente diferente daquela que tinha até então. Fazia três espectáculos por ano, e não tinha quase tempo para mais nada além de pensar e preparar os próximos espectáculos. E de repente, encontrou-se numa outra situação.

Portanto, quando comecei a filmá-lo, nós dois ficámos ali um pouco em processo de descoberta.

Também queria lhe perguntar exatamente isso, porque ao encontro do Luís Miguel Cintra do passado, o filme também tropeça no Luís Miguel Cintra de hoje?

Claro. Porque a minha ideia sempre foi essa. A minha intenção nunca foi fazer um filme recorrendo a imagens de arquivo. Decidi fazer um filme com o Luís Miguel Cintra de agora, aos 74 anos, na sua vida atual, sem a companhia do Teatro da Cornucópia, e um pouco também afastado do cinema enquanto ator. Quis enfrentar a vida tal como ela é, sem fugir da realidade presente, que também é uma busca constante — uma busca não só pelo sucesso e pela felicidade, mas também por tudo o que faz parte da vida dele.

Foi um caminho muito mais difícil de percorrer, mas também me pareceu muito mais interessante e pessoal.

Sim, é verdadeiramente pessoal, mas permita-me dizer que, pelo menos falando da minha experiência, saí da sala um pouco melancólico e triste.

Mas a vida é triste …

Não posso deixar de concordar. Isso também está ligado à escolha da última cena do filme, que é a transmissão da última cena do “filme da vida de Luís Miguel Cintra”, “Le carrosse d'or”, de Jean Renoir. A sequência final, tanto do filme dele como do seu, transmite a ideia de que ele pertence ao mundo dos atores, ao mundo do teatro, enquanto o resto do mundo se torna a plateia. Ou seja, este Luís Miguel Cintra que você filma, que está ligado ao real, esconde um Luís Miguel que se interessava pelos espectáculos e que traz consigo uma certa nostalgia do teatro.

Mas um ator vai sempre ter saudade do espectáculo, porque ser ator é algo que nunca se abandona. Não se demite dessa função; um ator continuará sempre a pensar como ator, ainda mais quando é um criador como ele é. É impossível que isso não faça parte da vida dele todos os dias. Por isso, “Le Carrosse d'Or” é o filme da vida do Luís Miguel, porque Anna Magnani, a personagem principal, escolhe o teatro em vez da vida comum. Ela escolhe permanecer nesse mundo. E, de certa forma, o Luís Miguel também escolheu o teatro, porque viveu toda a sua vida para isso. Ele não criou os laços que talvez outras pessoas tenham criado, como ter filhos e, mais tarde, na vida, recorrer a esses familiares que oferecem mais proteção. Ele escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje.

E até no cinema, parece que ele tem estado a afastar-se, praticamente. Lembro-me de um encontro com ele em 2018, quando passaram “A Ilha dos Amores”, em versão restaurada, no Festival de Cannes. Ele respondeu-me a uma questão envolvendo mercado de trabalho e o envelhecimento dos atores de que os jovens já não criam personagens de “velhos”. Ou seja, ele sente que já não tem lugar neste novo “universo” cinematográfico que está a emergir para as novas gerações, porque já não há a tendência de escrever personagens para atores como ele.

Nem para ele, nem para outros atores da sua geração... Não se pode dizer que isso seja uma regra geral, mas o cinema da época dele, desde o início até há relativamente pouco tempo, tinha uma narrativa muito diferente daquela que se vê agora. Talvez por isso ele não se identifique tanto com o cinema atual. Embora seja uma pessoa bastante livre e cheia de vontade de continuar a explorar novas formas de fazer arte, talvez sinta que as coisas estão mais vazias hoje em dia. Parece que tudo quer chegar muito rapidamente ao objetivo, com uma ânsia de alcançar o sucesso de forma imediata.

Ilusão (2014)

Achas que envelhecer é mau para um ator?

Não há nada de mal em envelhecer para um ator. Também digo isso enquanto atriz. Envelhecer é muito bom. Para começar, é sinal de que estamos vivos, e isso já é uma maravilha [risos]. Mas, quer dizer, tens uma noção da matéria dada. Trazes contigo a tua vida, as tuas experiências, o que fizeste e o que encontraste. Ficas com saudades de ‘coisas’ que já fizeste, mas também encontras novos desafios o qual tens que enfrentar, gostando ou não. Aprender com eles faz parte do crescimento. É um processo evolutivo.

Vamos recuar um pouco e falar de “Ilusão”. Apesar de em relação à Cornucópia haver um prenúncio de “fecho de portas” no ar, “Ilusão” foi concretizado em 2014, e a companhia encerrou em 2016. De certa forma, o filme, mesmo que inconscientemente, foi um tributo à Cornucópia e à sua memória?

Ilusão" foi uma homenagem, mas não foi criado com essa intenção consciente. Na verdade, tinha feito outro projeto antes. Em 2010, realizei “Vê-Los Assim Tão Pertinho” (2010), uma experiência com as Comédias do Minho, que trabalha muito com a comunidade e explora emoções e conceitos relacionados ao Minho. Após essa experiência livre, fiz “8816 Versos” (2013) com o ator António Fonseca, um filme em que acompanhei a decoração dos Lusíadas. O Luís Miguel viu esse filme, gostou e como tal me fez uma proposta: visto que estava a trabalhar com não-atores, o público da Cornucópia, e estudantes de teatro, desafiou-me a acompanhar todo o processo e a fazer um filme sobre isso. Aceitei o desafio com muita vontade, porque era algo novo para mim acompanhar o trabalho do Luís Miguel e da Cristina Reis com pessoas sem a disciplina e a rotina de atores.

Assim, comecei e deparei-me com a Cornucópia exatamente como a conhecia: com a mesma seriedade, rigor, alegria e imaginação, mesmo com não-atores. O que fiz foi mostrar o trabalho da companhia através daquele espectáculo, que incluía os primeiros textos de Federico García Lorca, e que resultou numa peça bastante especial.

Com o “Verdade da Consequência?” explorava outras abordagens. O Luís Miguel costuma dizer, e menciono isso no filme, que invento novas formas de me relacionar com ele. Talvez seja verdade. Talvez tenha sentido um pânico ao perceber que o teatro da Cornucópia estava a desaparecer e não quisesse deixá-lo ir embora. Foi uma maneira de manter essa inspiração e a sua influência comigo, de continuar a aprender com ele e a olhar para o mundo da maneira que ele o faz e o qual tanto admiro.

Foi uma experiência muito bonita, emotiva e divertida, e esses momentos refletem-se de alguma forma no filme.

E em “Verdade ou Consequência?” quem é que teve a ideia da viagem?

Fui eu que tive a ideia da viagem porque, na verdade, queria fazer umas quantas com ele. O meu objetivo, desde o início, era viajar para Espanha, porque o Luís Miguel nasceu lá, como ir a Itália, porque isso está muito ligado à sua educação; quando era jovem, ele viajava frequentemente para aprender História da Arte, e também para a França, pelas mesmas razões, relacionadas com a sua educação. Tínhamos, portanto, pensado em fazer várias viagens. Só que, entretanto, aconteceu a pandemia e só conseguimos ir a Espanha, em 2019. Logo a seguir, veio a pandemia, e não conseguimos fazer mais nada. Tudo ficou um pouco diferente.

Decidi, então, planeei que o Luís Miguel me mostrasse o seu “mundo” a partir da sua própria casa, porque a pandemia trouxe-nos uma nova visão sobre o conceito de casa, não é? O confinamento fez-nos pensar nas nossas raízes, onde realmente pertencemos. Ele tem uma casa no Porto e outra em Lisboa. Qual é, então, a sua verdadeira casa? Essa questão abriu uma nova perspetiva o qual não tinha considerado antes, mas que me fez refletir graças à pandemia. A escolha de fazer o filme sozinha, sem equipa, também está relacionado com esse contexto, porque era muito arriscado levar uma equipa de filmagens para dentro da casa dele.

Por isso, resolvi fazer tudo entre mim e ele, e acho que funcionou bem.

O mundo dele, a sua casa, rodeada de imagens sacra …

Sim, a casa dele já é um mundo por si só. A casa dele é, no fundo, uma enorme coleção de mundos. E isso é muito bonito. São imagens, algumas com muito valor, outras sem valor nenhum. É como se ele criasse uma pequena Humanidade dentro da sua própria casa.

O Luís Miguel Cintra, de certa forma, é um mundo em si mesmo. Lembro-me que no “Dicionário do Cinema Português”, o crítico Jorge Leitão Ramos o declarou como “o melhor ator do mundo” …

John Malkovich afirmou o mesmo …

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Luís Miguel Cintra e Catherine Deneuve em "O Convento" (Manoel de Oliveira, 1995)

O Malkovich … sim, ia acrescentar isso. Após a rodagem de “O Convento” (Manoel de Oliveira, 1995), John Malkovich lançou a hipótese de que Luís Miguel Cintra tivesse ido para Hollywood, seria considerado um dos melhores atores do mundo. Mas apesar de tudo isso, há um sentimento de que o Luís Miguel Cintra permanece um tanto na sombra em Portugal.

Não sei se ele está na sombra... Quer dizer, estar na sombra depende do público. Ele é um ator que, para começar, não tem necessidade de se promover, porque a sua obra já fala por si. Além disso, sempre foi um homem que trabalhou imenso. Se formos a ver, ele trabalhou com praticamente todos os realizadores portugueses, participando nas suas primeiras obras, e isso é incrível. Acho muito bonito alguém aceitar participar nas primeiras obras de realizadores, e ele tinha muito gosto nisso. Isso também diz muito sobre a sua personalidade e o seu comprometimento para com o Cinema.

Ele fez filmes que podemos ver e apreciar. Como ator, trabalhou 45 anos, foi encenador e diretor de uma das maiores companhias de teatro em Portugal, e talvez até na Europa. Para mim, pelo menos, é uma figura de destaque. Portanto, essa ideia de estar na sombra... Não sei, sinceramente, não o partilho.

Sobre a estreia deste filme agora [produzido em 2022, estreado em 2024] ... Sei que é para celebrar os 10 anos do Cinema Ideal, mas também há algo mais pessoal por trás disso. Recordo-me na Cinemateca que deram prioridade à publicação do livro “Luís Miguel Cintra: O Cinema”, e, embora seja um pouco agressivo dizer isto, mas essa urgência estava ligada à preocupação de o fazer antes que ele “partisse”. Ou seja, também há esta intenção de estrear o filme quase como uma homenagem.

Não, não queria de todo... É claro que queria estrear este filme com o Luis Miguel vivo, com saúde, para que ele pudesse acompanhar-me no que será agora o percurso do filme. Conto com ele para ir comigo, viajar, e aproveitar a vida, porque ouvi-lo é sempre uma experiência única. Esse era o meu objetivo. Não fiz o filme a pensar que o Luís Miguel não estaria cá quando o filme ficasse pronto.

Não senti essa urgência de que falas. Demorei o tempo que precisei para terminar o filme. Comecei a prepará-lo em 2019, e agora estamos em 2024. Houve a paragem da pandemia e depois continuei as filmagens, seguiu-se a montagem, e houve outras pausas, porque também sou atriz e faço bastante teatro. Muitas vezes, tinha ensaios e espectáculos, então, o processo foi feito aos poucos.

O Luís Miguel tem uma doença que as pessoas já sabem, ele tem Parkinson, mas não tem mais nada além disso. Apesar de tudo, já tem o diagnóstico há bastante tempo e tem conseguido viver com ela. Não está, de todo, no fim. A doença tem o seu tempo, e ele tem conseguido controlá-la. Ainda está numa fase em que consegue lidar com isso.

Ele continua a fazer as suas peças e a montar os seus espectáculos. Alguns desses projetos acontecem, outras vezes nem por isso, mas ele não está parado. A mente dele continua sempre ativa …

São mais as que acontecem ou as que não acontecem?

Na verdade, já aconteceram três espectáculos desde que a companhia terminou. Pelo menos participei em dois deles; “Dom João”, uma produção longa, com cerca de quatro horas, e “Pequeno Teatro ad usum delphini vanitas”, que aparece no filme e é inspirado em Dom Quixote. Além disso, fez um em conjunto com o pianista João Paulo Santos, que também é mostrado no filme. Ou seja, durante o tempo em que estive a filmá-lo, ele estava ocupado em peças de teatro, numa oratória, e a colaborar comigo nos nossos projetos. E ainda tem muitas outras ideias para futuros projetos.

Enquanto atriz, filmes como estes consomem-lhe muito tempo?

Consome sim. O filme foi feito um pouco por etapas. O Luís Miguel vive no Porto e, de vez em quando, vinha a Lisboa. Então, aproveitava esses momentos ou combinava períodos em que ele ficava em Lisboa para que pudéssemos fazer as filmagens. Outras vezes, ia ao Porto e filmava lá. Foi preciso muita disponibilidade, especialmente para saber ouvir e observar com atenção, para depois conseguir transmitir isso no filme. Tudo foi concebido de uma forma muito espontânea e pouco planeada. Nunca combinamos antecipadamente o que iríamos falar, dizer ou ouvir. Foi um processo bastante orgânico.

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Sofia Marques e António Mortágua em "Ramiro" (Manuel Mozos, 2017)

Em relação ao cinema, constante que tem uma carreira longa e diversificada, contudo, destaco dois papeis, o de “Veneno Cura”, da Raquel Freire (2008), que aliás que também participou na primeira obra dessa realizadora [“Rasganço”, 2001], e “Ramiro”, de Manuel Mozos (2017). Porque olhando para o seu percurso em grande tela, vejo colaborações com João César Monteiro [“As Bodas de Deus”], João Botelho [“Um Filme em Forma de Assim”, “Corte do Norte”], Mário Barroso [“Ordem Moral”], Jorge Cramez [“Amor Amor”], Joaquim Pinto [“Pathos Ethos Logos”] e Christine Laurent [“Demain?”], mas praticamente tudo reduzido a papeis secundários ou de passagem. Portanto, a minha pergunta, é, as suas participações cinematográficas são escolhas suas ou são os papeis que lhe chegam a si?

Deixa-me só acrescentar o “Cinarauma” de Inês Oliveira (2010) … Interessa-me imenso o cinema português, mas também já deves ter percebido que às vezes é muito difícil porque acaba por ser sempre os mesmos atores que fazem cinema em Portugal.

Portanto, é uma questão dos papeis não chegarem a si …

Não me queixo, porque estou sempre disponível e aproveito todas as oportunidades que tenho. O projeto “Veneno Cura” foi algo que adorei fazer, com uma entrega absoluta. Gostei imenso de trabalhar nesse filme, e a colaboração com toda a equipa de cinema foi muito especial. Fiz grandes amigos aí, e que ainda hoje são meus amigos. Foi um projeto realmente bonito. O “Ramiro” foi também uma maravilha, pois adoro o trabalho do Manuel Mozos e o seu cinema. Foi um prazer enorme participar nesse filme.

Gostaria de ter mais oportunidades no cinema, mas, no fundo, é preciso que os realizadores estejam dispostos a arriscar em trabalhar com atores que talvez não estejam sempre em todos os filmes. É legítimo que eles escolham atores e atrizes que imprimem algo especial nos seus projetos, e, se gostarem do trabalho, podem querer incluir esses talentos nos seus filmes.

Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

João Miller Guerra sobre "Légua": "desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento"

Hugo Gomes, 26.06.23

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Légua (2023)

Conta-se que é uma história de três gerações de mulheres, representadas no soneto de uma morte anunciada. No entanto, em "Légua," encontramos também uma instalação performativa onde corpos dançam ao compasso dos dissabores do tempo que lhes resta. Aqui, Ana (Carla Maciel), uma mulher dividida entre a oportunidade e a gratidão, converte-se numa mártir e igualmente num testemunho à decadência da sua congénere, Emília (Fátima Soares), vencida pela previsível decadência e a sua gradual não-existência.

Filmado em Légua, uma aldeia situada no concelho de Marco de Canaveses, esta nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, estreada na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma amálgama de experiências pessoais e desejos de transgredir o real e a ficção, unindo atores profissionais e não profissionais, corpos jovens e envelhecidos, humanidades e animalidades, ruralidade e a sua iminente extinção.

Conversei, mais uma vez (diga-se), com o realizador João Miller Guerra, antecipando a estreia comercial no nosso país da sua obra conjunta, no abrigo da Cinemateca, num quente dia de junho, explorando vivências, gerações e escolhas.

Primeiramente, gostaria de fazer um ponto de situação desde a nossa última conversa, que ocorreu no âmbito de "Djon África". Referiu-se a mim nessa conversa, mencionando que a morte do seu pai teve um grande impacto em si. Pude constatar, numa entrevista concedida à SIC Notícias, que este filme de certa forma se tornou uma experiência pessoal para si. Isso também tornou mais difícil separar a sua pessoa daquela ficção.

Sim, ou seja, as coisas estão interligadas, não é verdade? O facto de "Djon África" ser sobre um descendente cabo-verdiano em busca do pai, e como conversamos na altura, eu ter perdido o meu pai, e de repente olhar para o Miguel Moreira, com quem já tinha feito três documentários e que considero um amigo, e perceber que ele não conhecia o seu, foi o ponto de partida para a aventura com "Djon África". Aqui, foi igualmente pessoal, e efetivamente está relacionado com a morte do meu pai. Acredito que todas essas experiências são maneiras de lidar ou manter um contacto com a memória do meu pai, que obviamente era muito querido para mim, mas também era uma pessoa muito especial para a Filipa, na nossa relação que tem continuado ao longo destes anos.

Havia também este lugar, fruto dessa relação, para onde eu ia desde pequeno, praticamente desde que nasci, uma casa de família, essa, onde decorre o filme "Légua". Portanto, a Filipa também tinha uma ligação forte com este lugar, sobretudo durante as férias, e em determinado momento, ambos discutimos a possibilidade de passar mais tempo ali e de criar algo que nos permitisse permanecer lá por mais tempo.

Poucos meses depois, não consigo precisar exatamente quanto tempo passou, talvez tenha sido um ano, a senhora que cuidava da casa, desde os tempos da minha bisavó, adoeceu. Quem a acolheu foi outra senhora que também ajudava nas tarefas da casa. Esse gesto foi o ponto de partida para o filme "Légua", ou seja, esse olhar um bocado implicado, sentindo-me também como dono e responsável daquele lugar e vivendo esse momento com impotência. Portanto, esse gesto de grande amizade por parte da senhora mais nova, ao acolher a senhora mais velha, um bonito gesto deve-se dizer, foi crucial para a génese da nossa história. Depois, tal como aconteceu com o Miguel em "Djon África", o filme é uma ficção.

Antes de avançar para "Légua", permita-me fazer outra ligação com a nossa última conversa. Quando lhe perguntei sobre novos projetos, mencionou um filme que seria rodado no norte de Portugal, abordando o fim da ruralidade, ou melhor, a resiliência face ao declínio da vida rural. No filme que estamos a discutir, principalmente através da personagem mais jovem que se muda para o Porto juntamente com outros que emigram, vemos a reflexão sobre esse tema da ruralidade. Em suma, de certa forma, essa projeção transformou e levou-nos ao “Légua”?

Sim, é isso mesmo. Este filme também parte dessa ideia de transformação. Há o fim de algo, mas também o início de algo novo. Gostaria de me concentrar um pouco mais neste outro aspeto que era muito importante para nós retratar: a ideia das três gerações de mulheres a viverem, não todas na mesma casa, mas ligadas a essa casa de alguma maneira. Principalmente a Mónica (Vitória Nogueira da Silva), que está ligada à Emília (Fátima Soares), como se fosse uma tia. Em relação à Ana (Carla Maciel), visto que o marido estava frequentemente ausente devido à sua vida de imigrante, contou sempre com a sua grande amiga e fiel companheira de trabalho, Emília, para ajudar a cuidar dos filhos. Nesse sentido, voltando à ideia das três gerações, Emília representa alguém que ainda segue o regime feudal, aceitando desde muito jovem servir e cuidar de um património que não é seu. Servir os senhores. Já a Ana encara isso como uma profissão. Basta verificar que a Emília vive na casa e a Ana não, constituindo família e tendo os seus momentos, como vemos no filme.

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João Miller Guerra e Filipa Reis

Quanto à Mónica, efetivamente estudou e possui um curso superior, equivalente ao dos donos da casa, e um dia desejará o mesmo para si. A vida da Ana também não se prevê que seja de forma alguma semelhante à da Emília, servindo e aceitando a subserviência. O filme também aborda o fim desse regime feudal e a transformação. O fim é sempre uma transformação. O filme também enfatiza a ideia de ciclo, o ciclo da natureza, as quatro estações, e a transformação da Ana que ocorre com a morte da Emília. Talvez a Ana tenha encontrado a si mesma ao aceitar cuidar da Emília e decidir ficar, em vez de seguir a vontade dos seus filhos e marido e emigrar.

No seu filme, como mencionou anteriormente, aborda também a questão da transformação dos corpos. A primeira sequência do filme, com Carla Maciel a cantar "Fruta Fresca", mostra o corpo dela, ainda “jovem” em comparação com o corpo que Fátima apresenta durante a sua própria decadência. No final, vemos Vitória / Mónica, a figura mais jovem numa festa de transe, e o movimento do seu corpo sincroniza-se com o das outras duas [Carla / Ana e Fátima / Emília]. Portanto, a minha dúvida é se há uma tese subjacente a essa questão dos corpos e de como ela se relaciona com a existência da pessoa? Porque sabemos que há um ponto em que a Fátima parece ter deixado de existir, embora ainda esteja o corpo no terreno.

Sim, há. Quase como uma transferência de poder. Vejo a festa de transe como uma espécie de ritual de iniciação, marcando a passagem da vida adulta de Mónica, exatamente no momento em que Emília falece ou "passa para o outro lado", por assim dizer. Para nós, os corpos eram de extrema importância, assim como os gestos de trabalho. Essa ênfase nas diferenças de idade sublinha ainda mais o ciclo da vida. Nascemos, crescemos, envelhecemos e eventualmente partimos para o outro lado. Essa narrativa foi cuidadosamente planeada desde o início do guião. Recordo-me, por exemplo, da nossa colega que colaborou na escrita do guião, a Sara Morais, mencionar a comparação que se poderia fazer entre a rugosidade das pedras e todo o granito ao redor, e essa transformação que também ocorre no nosso corpo e na nossa pele ao longo do tempo, à medida que nos transformamos, entenda-se envelhecer.

Mas certamente, falando dessa rugosidade, da questão mineral do filme, julgo que o “Légua” também reforma a sua questão animalesca. Há muitos animais, e de variadas espécies, neste filme, o que também contrasta um pouco com essa questão humana.

Sim, os animais têm um papel importante no filme, servindo como representações da transformação da natureza. Eles desempenham um papel fundamental na transmissão da ideia das estações, marcando o tempo ao longo do filme. Além disso, eles simbolizam um retorno à vida quotidiana que Ana havia perdido. No final do verão, ela, de um certo ponto de vista, recupera a liberdade e deixa de se sentir na obrigação de cuidar da filha.

Quanto ao cão branco que leva as meninas a presenciarem o ritual da coruja, a interpretação é aberta, sendo que cada pessoa poderá interpretá-la de acordo com a sua perspetiva pessoal. Na minha, é que a coruja simboliza a Emília, alguém que talvez, ao passar por essa transição ou passagem, tenha se fundido com a coruja ou já esteja presente de alguma forma no corpo da coruja. É uma interpretação interessante e aberta à interpretação pessoal de cada espectador.

Voltando àquela entrevista da SIC, foi referido que o João e a Filipa tiveram ideias diferentes sobre o projeto, e o filme foi fruto dessa diplomacia. Gostaria de perguntar, a título pessoal, se houve alguma ideia que achasse que resultaria no filme, mas que tenha sido rejeitada durante o processo de criação?

Não, creio que desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento. Cada um de nós contribui com as suas ideias, lançando propostas, e o outro também. Às vezes, como a Filipa mencionou nessa mesma entrevista, é necessário confiar. Acredito que sempre tivemos muita confiança um no outro. O que acho que mudou neste filme, e a Filipa também o menciona, é que pela primeira vez olhamos um para o outro e dissemos: "não vamos estar com atenção àquilo que cada um costuma estar. Se um está com mais atenção ao enquadramento e o outro aos atores, desta vez vamos tentar com que ambos atendamos ao enquadramento e igualmente trabalhando junto dos atores" E foi o que fizemos. Houve momentos em que filmamos, como nos filmes anteriores, em que isso era uma questão de atenção. Em certas ocasiões, o nosso diretor de fotografia, o nosso querido Vasco de Viana, ao não ter a certeza sobre qual caminho seguir, adotava ambas as abordagens.

Ele fazia uma versão para a Filipa e outra para mim. Por vezes, essas escolhas só seriam claras na fase de montagem. Poderia sair de uma cena, após a filmagem, convencido de que a minha opção era a correta e, mais tarde, descobrir, como já aconteceu, que a abordagem do outro era a mais adequada. Na edição, em determinados momentos, com o ritmo e a mensagem que queremos transmitir, a versão do outro revelava-se na escolha certa.

Queriam que me abordasse a vossa relação e colaboração com “não-atores” …

Prefiro o termo “atores não profissionais”.

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Légua (2023)

Muito bem, o vosso trabalho com “atores não profissionais”, nomeadamente com Fátima Soares, que revelou-se numa das grandes forças de “Légua”.

Fátima Soares é uma pessoa de uma generosidade extraordinária. Sempre me pergunto como seria encontrá-la na rua daqui a alguns anos, mesmo que a sua presença seja diferente. Tenho esta ligação com o cinema, enquanto ela não tinha nenhuma; estava envolvida num grupo de teatro que era uma das atividades que realizava na Universidade Sénior do Marco de Canaves. O facto de ser abordada e convidada a encenar a sua própria morte, relativamente próxima da sua idade (ou seja, mais próxima da idade em que alguém pode vir a falecer, de acordo com a probabilidade, é claro), foi um ato de tremenda magnanimidade por parte dela.

A Carla Maciel também foi uma lição para nós, naquilo que se refere a trabalhar e gostar de trabalhar. Mesmo que inicialmente pensássemos que não seria possível para nós trabalhar com atores profissionais, percebemos que a personagem da Ana precisava da elasticidade que talvez apenas uma atriz profissional pudesse oferecer. Realizamos um casting e encontramos a Carla, ficando absolutamente maravilhados com a duplicidade que desenvolvemos com ela. Demonstrou ser uma profissional de excelência, trouxe novas ideias e esteve sempre no local certo, à hora certa. Repetiu as cenas e contribuiu significativamente para o concepção do “Légua”.

Assim, penso que tivemos muita sorte, tanto com a atriz profissional quanto com a amabilidade da Fátima. Além disso, a dinâmica entre as duas atrizes também foi algo notável. A relação entre elas foi desenvolvida pelo Luciano, um preparador de elenco vindo do Brasil. Isso foi fundamental, especialmente porque trabalhar com atores profissionais era novo para nós, ainda mais, a contracenar com atores não-profissionais. O preparador de elenco desempenhou um papel crucial na criação dessa ligação, trazendo uma grande mais-valia às suas performances.

Já que estamos na a conversar na Cinemateca, deixa-me perguntar como é que Manuel Mozos, o zeitgeist do cinema português, entrou neste projeto?

O Manuel é um amigo nosso de longa data. Ele estava envolvido na Associação Portuguesa dos Realizadores, onde a Filipa também estava, e foi lá que estreitamos a nossa relação para com ele. Em dado momento, estávamos à procura de alguém que pudesse interpretar o papel do padre Guilherme. Queríamos alguém que fosse uma mistura entre um ator profissional e um não-profissional, e estávamos a considerar quem seria a melhor escolha. Tínhamos uma ideia muito clara do que queríamos para a personagem e foi então que a Filipa teve a ideia de convidar o Manuel Mozos

Sabíamos que o Manuel tinha experiência como ator, embora ele não se considerasse um. Aceitou o desafio, talvez mais amizade do que profissionalmente. Ficámos muito contentes. Na verdade, já estávamos em contacto com ele, pois tinha-nos dado, generosamente, uma lista de atrizes que se encaixavam no perfil que precisávamos para o papel da Ana. Quando percebemos que a atriz que a interpretaria teria que ser uma profissional, o Manuel elaborou-nos uma lista, na qual estava incluído a Carla Maciel.

Contudo, quando falámos com a Carla, percebemos que ela tinha uma experiência pessoal que foi a de cuidar da sua própria mãe, o que a tornou-a uma escolha ainda mais adequada para o papel. Essa experiência, que talvez tenha deixado uma marca no seu corpo, acabou sendo uma grande vantagem para a interpretação da personagem. Mais uma vez, fomos agraciados com muita sorte.

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Légua (2023)

Quanto a novos projetos?

O meu próximo projeto é, na verdade, um antigo que estou a retomar. A rodagem foi interrompida devido às filmagens do "Légua", depois houve a fase de montagem e a estreia. Trata-se de um documentário que tenho vontade de deixar-me influenciar um pouco pela ficção. É sobre um rapper descendente de cabo-verdianos chamado Ghoya, que canta em crioulo e é uma espécie de pioneiro do rap crioulo em Portugal. Ele também passou 10 anos na prisão, e eu o conheci antes de ser encarcerado. Nos últimos anos, mantive um contacto contínuo com ele. No ano passado, obtive apoio do ICA para a fase de finalização. Portanto, agora posso continuar a filmar e concluir o projeto. Esse será o meu próximo trabalho.

Quanto à Filipa, tem um filme em mente que ainda está por escrever, e à partida, será um projeto apenas dela. Não sei se terei algum envolvimento no filme ou não. O tema é prazer feminino.

Confessou-me numa anterior entrevista que não fazia distinção entre documentário e ficção.

Sim, há umas ‘coisas’ que eu ainda não filmei e que acho que poderiam colocar o filme mais nesse lugar. Aquilo que tenho, para já, no filme do Ghoya, é mais documental.

Prémios Curtas - 1ª Edição

Hugo Gomes, 07.03.23

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Na próxima sexta-feira (10 de março) irá decorrer a 1ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Auditório Fernando Pessa (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Glória de Fazer Cinema em Portugal” de Manuel Mozos, “Arena” de João Salaviza e a animação “Nestor” de João Gonzalez [o mesmo de “Ice Merchants”, nomeado ao Óscar]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico) e André Pereira (videografo e editor de vídeo). 

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

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A vida é um teatro vertiginoso.

Hugo Gomes, 06.01.23

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Não sou de Teatro, por isso perdoem-me a falta de menção quanto à sua, pelo que percebi, longa carreira teatral, mas é no Cinema (a minha arte, o meu mundo) que recordo Christine Laurent em pleno. Trabalhou como intérprete em “En haut des Marches” de Paul Vecchiali, foi colaboradora fundamental de Jacques Rivette (no fenomenal “La Belle Noiseuse”, por exemplo) em questão de argumentos, e ainda realizadora de quatro longa-metragens, entre as quais “Vertiges “(1985), com Magali Noël, a "crush" coletiva de uma cidade em “Amarcord” (Federico Fellini, 1973), o eternizado “Jim” (“Jules and Jim”, François Truffaut) Henri Serre, Luís Miguel Cintra, Maria de Medeiros (meio donzela, meio “boneca de trapos”), Jorge Silva Melo e um muito “patusco” Manuel Mozos.

Uma obra acima do “teatro-filme”, segundo a conotação redutora do termo, tratando-se de um longo travelling em redor de uma gerada e multinacional comunidade, uma comédia de enganos, um drama de verdades, um ensaio sobre as relações aí nutridas. Mas sobretudo um passeio pela nocturnidade lisboeta, por entre bares e cafés nos subúrbios de um teatro, esse seu mundo que apenas o vejo graças aos seus olhos cinematográficos, cuja ópera “As Bodas de Fígaro" é resumida numa espécie de “macguffin”, num esforço contínuo, quer de talentos, de criatividades ou de fisicalidades, transgredindo o palco, os seus bastidores (aquela divagação pelos camarins, pequenos “mundinhos” dentro de um complexo ecossistema) e fora desse território que Christine tão bem conheceu, um filme que relaciona arte e vida como mútuas influenciadoras.

Vi-o, pela primeira vez, na Cossoul, em 2018, numa sessão especial apresentada por Luís Miguel Oliveira, que me convenceu por uma razão, simples e apenas, “é um filme raro, não o encontrarás na 'internet' [foi o que bastou!]”. Fica o desejo, gostaria de rever essa raridade mais uma vez, novamente em sala, e novamente numa noite de domingo, esse maldito e melancólico dia. Soaria-nos diferente esse regresso, quem sabe, através da lente para o mundo de Christine nos deixou.

Christine Laurent (1944 - 2023)

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em Ramiro de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

"O Filme do Bruno Aleixo": uma conversa com os "pais" de um chico-esperto à moda coimbrã

Hugo Gomes, 21.01.20

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

A personagem criada em 2008 dá o seu grande passo para o cinema. João Moreira e Pedro Santo podem  ser dois nomes que nada dizem aos nossos leitores, até porque se escondem detrás de uma das personagens mais caricatas e amadas do nosso seio audiovisual – Bruno Aleixo.

O “Ewok coimbrão” de humor procrastinado saltou da internet para a televisão e criou em dez anos um culto garantido de admiradores. Mas Aleixo não está sozinho neste sucesso de popularidade. Ao seu lado encontramos outras figuras excêntricas, como O Homem do Bussaco, O Busto e Renato, todos eles reunidos na primeira aparição cinematográfica deste universo.

Curiosamente, não foi Moreira nem Santo a procurar este benefício de chegar ao grande ecrã. A oportunidade chegou sob o selo de O Som e a Fúria, a produtora gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar que hoje é tida como a casa de muito do cinema autoral português (Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau são alguns dos exemplos). 

Conversei com a dupla sobre a conceção desta aventura inaugural da personagem nos cinemas. Um diálogo descontraído sobre o passado, o presente e o futuro desta união de criatividade. Um filme que chega para dinamizar a nossa “indústria”, se é que ela existe, mesmo que, segundo as palavras de João Moreira, não seja mais que “um brainstorming de hora e meia“.

Talvez comece com a pergunta base para esta conversa. Vocês trabalham há dez anos na construção desta personagem e do seu universo. Começaram na internet e passaram para a rádio e televisão. O cinema foi o passo que faltava. Estava planeado esse passo ou surgiu por mero acaso de uma proposta?

João Moreira: Um pouco das duas coisas. Era o passo que faltava…

Pedro Santo: Mas isso dá a entender que temos passos para dar, que planeamos todo este percurso.

JM: Os passos para dar, como há pouco falávamos, era o que nos faltava. Existe um número relativamente limitado que ainda não demos.

PS: Não que tenhamos obrigatoriamente que o fazer.

JM: Partindo do princípio que começamos na web e passamos para a televisão, este passo é um dos mais previsíveis, digamos assim, mas surgiu de uma forma concreta através de uma proposta de O Som e a Fúria.

Isso quer dizer que o filme tem um pouco de “baseado em factos verídicos”. [risos]

JM: O filme acaba por refletir a natureza dessa mesma proposta. Foi um pouco “queremos fazer um filme sobre o Bruno Aleixo, por isso deixo ao vosso critério.”. Não havia nenhuma diretriz de como o filme deveria ser feito ou o que deveria conter. Não. Foi um “façam o que vocês quiserem”. Ou seja, tivemos o mesmo dilema que o Bruno Aleixo tem neste filme. Podia ser qualquer coisa, basta ser do Aleixo. Agora, a questão é como iríamos trabalhar esse “qualquer coisa”.

E como trabalharam no argumento, aliás, nesse “qualquer coisa”?

JM: Neste caso, acabamos por ter outra versão, mas a versão que usamos era precisamente colocar a estas personagens o mesmo dilema que nos foi colocado. Como é que elas iriam desenvolver um filme? Obviamente que o nosso Aleixo iria fazer as “coisas” em cima do joelho, ter péssimas e absurdas ideias e roubar as sugestões dos outros, tornando-as dele. Como seria de esperar.

PS: O Aleixo não é uma “pessoa” do meio, logo, era assim que imaginaríamos como iria reagir a esta situação, da mesma forma como na sua passagem na televisão.

JM: Sim, aqueles programas todos mal executados…

AS: Mais a falta de respeito pelos telespectadores, pelo colega, aquelas rubricas estranhíssimas. Era um sujeito que sabia por alto como funcionava um talk show, mas a execução era péssima. No cinema, é a mesma ‘coisa’; ideias básicas e comprometedoras, depois com um desenrolar que é ainda mais básico. É praticamente isto: “pessoas” que não são do meio, que lá sabem como fazem as coisas, e dão sugestões para um filme com base naquilo que já conhecem e o que querem ver.

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Pedro Santo e João Moreira no Festival do Rio

Em certa parte, este “salta-pocinhas” entre géneros resume-se ao audiovisual que vocês conhecem?

PS: Sim, é muito do cinema com que crescemos. Porém, devemos salientar que estas personagens não correspondem à nossa idade, são mais velhas, são de uma geração anterior à nossa, da idade dos nossos pais. Os nossos pais viam os mesmos filmes que nós, por isso, não existe muita diferença. Tentamos resumir essas preferências na versão fílmica do Bussaco: um buddie cop movie com ninjas, mexican standoff, tem os zooms à lá Leone. Ou seja, era uma mistura de ‘coisas’ que iam apanhando, sem ter a capacidade de interpretar aquilo, um pouco como nós enquanto jovens: víamos mas não percebíamos o alcance daquilo e as suas dinâmicas.

Devido ao facto de desde sempre terem a liberdade nas aventuras e desventuras desta personagem, quer na internet, quer na televisão, e agora, como vocês confirmam, no cinema, podemos considerar “O Filme do Bruno Aleixo cinema” de autor? E quando falo de autor, refiro toda a sua conotação criativa…

PS: Não diria autor com a carga com que normalmente associamos, mas autor porque nós somos os autores e permanecemos autores desta passagem.

JM: O cinema de autor tem uma conotação de que é mais arte que os outros filmes.

PS: À partida é mais artístico, não segue uma linguagem tão convencional / mainstream…

JM: Neste caso, diria que não.

PS: Quer dizer, tem uma marca autoral. A dinâmica e a linguagem do filme não são propriamente usuais no cinema. Há ali uma desconstrução constante, uma falta de respeito para com a magia do cinema.

De alguma maneira, esta oscilação de géneros e a desconstrução não são, no fundo, uma forma de fomentar uma crítica quanto à nossa indústria cinematográfica e televisiva?

JM: Não diria “criticar”. Como dizemos, a nossa intenção era pegar no mainstream de ideias e sintetizar o conhecimento geral daquelas personagens, assim como pessoas fora do meio, pelo audiovisual.

Quanto à escolha dos atores, gostaria que me falassem sobre o vosso leque, que vai desde Rogério Samora e Adriano Luz até ao nosso zeitgeist do cinema português, Manuel Mozos.

PS: Muitos deles pensamos desde início…

JM: Alguns até já estavam no guião...

PS:… Ou por causa da figura…

JM: Ou das conotações sociais que têm. O filme falha um pouco no Brasil exatamente por isso, porque tu olhas para o Rogério Samora e automaticamente o associas à sua figura. Assim como o Fernando Alvim, que é uma personalidade pop.

PS: Lembro-me perfeitamente de virar-me para o João e dizer que para o Aleixo tem que ser o Adriano Luz [risos]. Aquela expressão de desprezo, neutro, sem estar entusiasmado com alguma coisa. E para além disso tudo, o carisma. Alguns desses atores, com quem desejávamos trabalhar, eram fáceis de chegar, visto que trabalhavam com O Som e a Fúria. Já o Manuel Mozos foi sugestão da produtora. Ele interpreta uma personagem muito em aberto, o Aires. Até brincamos no genérico, que ao invés de Mozo era o Aires.

E como é que o filme está a sair-se no Brasil, visto que é de um “chico-espertismo” muito português, um humor muito nosso, muito profundo da nossa cultura?

JM: Lá é “mais” nicho. Acabou por estrear em 18 salas, o mesmo que aqui. Só que o Brasil é um território enorme, e percentualmente terá mais gente.

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Gonçalo Waddington, Fernando Alvim, Manuel Mozos, João Lagarto e José Raposo em "O Filme do Bruno Aleixo" (2019)

Para onde irá o Aleixo depois do filme?

JM: Ainda não temos nada pensado. Para já continuamos com o Aleixo.FM até ao final do ano

PS: Mas lá está, nunca pensamos nas coisas a médio prazo. Não é terreno novo.

JM: A recibos verdes, um tipo tem que aproveitar até quando der. Temos tido algumas reuniões para se tentar apurar o futuro, mas de momento não temos nada pensado.

PS: Também queremos esperar pela aceitação do público, de como sairá o filme nas salas de cinema.

E existe uma possibilidade de streaming? Não falo da Netflix, porque o nosso mercado é demasiado pequeno, mas de outras plataformas.

JM: Nós temos parceria com a SIC, por isso não sabemos. O que sabemos por agora é que vai existir uma versão em modo série do filme…

PS: Mas isso só será daqui a um ano.

JM: E não serão versões iguais…

PS: Atenção, o filme foi escrito e feito como se fosse um filme. Não pensamos inicialmente na série. São ‘coisas’ distintas.

Fora do Aleixo, há novos projetos?

JM: Nós fomos tendo projetos, mas não em nome próprio.

AS: Empreitadas…

JM: Fiz programação cultural em Coimbra, por isso a nível de cinema ou a nível de televisão, é muito raro fazer algo que saia do território do Aleixo.

AS: Também é o que nos pedem…

JM: Sim, e o que pedem é sempre dentro deste universo.

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

Mas nunca vos passou pela ideia, meter as “botas” do Aleixo de lado e seguir por novos rumos?

JM: Para já é mais fácil explorar o final que existe, por causa do mercado e por quem trabalha connosco. Nunca tivemos a hipótese de ponderar dar um fim ao Aleixo. Quando trabalhávamos em televisão, nunca havia abertura para trabalharmos em outra “coisa”. Aliás, chegou a haver a intenção de trabalhar noutras “coisas”, mas fecharam-nos as portas.

AS: Eles só querem o Aleixo.

JM: Ou seja, o Aleixo ainda tem potencial.

Quando não houver mais potencial, será a hora de matar o Aleixo?

AS: Logo se vê. [risos] Aquelas personagens para nós existem, têm vida própria, têm as suas próprias biografias, não seria fácil. Seria o mesmo que pedir ao Bruno Nogueira para deixar de ser o Bruno Nogueira. Apesar de tudo, ainda acreditamos que o Aleixo tem um leque de coisas ainda por explorar. Assumindo que aquilo é uma persona, sim. Ainda existem cantos que devemos explorar.

E deixar o Aleixo como testemunho para outra “equipa”?

JM: Nunca foi uma ideia. Não nos interessa. Vender o franchise? Não.

AS: Não me parece que venha a acontecer.

"Chegamos ao Lugar!" Arranca 3ª edição do Close-Up

Hugo Gomes, 12.10.18

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Florida Project (Sean Baker, 2017)

A memória levou-nos à viagem, e em consequência disso, guiou-nos ao Lugar. Mas qual lugar? O Cinema encaminha-nos para espaços, não-lugares, cenários, etapas que resumem a leitmotiv cénicos. Neste terceiro episódio de Close-up: Observatório de Cinema, prosseguimos na jornada de desestruturação do Cinema propriamente dito. De que matéria é feita? Para onde segue? Quais as suas convergências e divergências? Com o Lugar, tema desta nova edição, chegamos, não ao destino, mas possivelmente a uma nova partida.

A decorrer entre os dias 13 a 20 de outubro, Close-up tem convertido num seminal evento em aproximação daquilo que chamamos de ano cinematográfico em revista, sem com isso reduzi-lo a um catálogo de estreias recentes repostas, mas um núcleo de temáticas e capítulos no nosso encaminhar cinéfilo. Prova disso, é a abertura oficializada com a projeção de “Lobos”, o grande trabalho de Rino Lupo, realizador italiano que na sua passagem em Portugal inseriu todo um novo olhar cinematográfico. A sessão será acompanhada por Paulo Furtado, o Legendary Tigerman, uma autêntica ousadia em cruzar a História de um passado remoto com os acordes atualizados do músico. Como encerramento, outro clássico e cruzamento, “Sherlock Holmes Jr.”, o qual Buster Keaton irá adquirir novo fôlego ao som de Noiserv.

Neste terceiro tomo há espaço para novas rubricas, o Café Kiarostami será inaugurado, uma mesa-redonda onde convidados de diferentes sectores do Cinema (realizadores, investigadores e críticos) reunirão para debater sobre os variados cantos e recantos da Sétima Arte. Contudo, serão os filmes, as verdadeiras estrelas destes sete dias rodeados de Cinema e a sua respectiva vénia.

Este ano, alguns dos destaques evidentes será a apresentação de “Cabaret Maxime” pelo próprio realizador, Bruno De Almeida. Possivelmente o melhor exemplo de Lugar neste espaço, um filme em que o cineasta transforma uma Lisboa noturna e soturna em “nenhures”, um território imaginário e igualmente real. A guerra entre cabarés é só o pico do iceberg, que é constituído pelas reposições de “Isle of Dogs”, de Wes Anderson (novamente frisando o “não-lugar”, neste caso inserido num Japão neofeudal e industrial), “Ramiro” de Manuel Mozos, a Lisboa saudosista e melancolizada no qual é embebido o espírito do homónimo protagonista e um dos grandes filmes do ano - “Florida Project”, de Sean Baker - um oásis situado nas fronteiras da Disneyland. Todas as sessões contarão com participações de personalidades ligadas ao Cinema, que debaterão com o público, a questão de espaço e lugar na compostura cinematográfica.

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Sansho, The Bailiff (Kenji Mizoguchi, 1954)

Apesar dos lugares serem vários e indeterminados, existe um específico que promete ser paragem obrigatória neste evento – a América Latina. O Close-Up irá exibir um leque de filmes recentes das diversas cinematografias latino-americanas, passando pela esplendorosa escuridão das minas bolivianas de “Viejo Calavera”, de Kiro Russo, pelos paraísos perdidos das promessas nucleares em “La Obra del Siglo”, de Carlos Machado Quintela, e as fantasmagóricas selvas em busca de Vicuña Porto em “Zama”, a mais recente longa-metragem de Lucrecia Martel.

Mas a História (H grande aplica-se) é também ele um lugar de obrigatória paragem, dando continuação à rubrica, este ano Close-Up aprofunda no Japão assombrado de Kenji Mizoguchi, projetando quatro das suas principais obras (“Sansho, The Bailiff”, “The Crucified Lovers”, “Ugetsu” e “The Street of Shame”). A lição de História passará pelos influenciados, e precisamente os portugueses que espelharam esses signos mizoguchianos nas suas respectivas filmografias. Nesse leque poderemos contar com Pedro Costa (“O Sangue”), Paulo Rocha (“Mudar de Vida”) e João Pedro Rodrigues (com a curta documental, “Allegoria Della Prudenza'').

Já na secção Fantasia Lusitana, serão destacados Diogo Costa Amarante, vencedor do Urso de Ouro da Curta-Metragem no 67º Festival de Berlim e visto como um dos mais promissores nomes da cinematografia portuguesa, e Mário Macedo, jovem realizador que também tem feito um premiado e igualmente promissor percurso em festivais. Ambos realizadores serão frutos de retrospectiva (no caso de Macedo, haverá estreia absoluta de um novo trabalho). Como anexo deste espaço, Diogo Costa Amarante teve direito a Carta Branca e a sua escolha recaiu na obra de Agnès Varda, “Vagabond” (1985).

Close-Up ocorrerá, como é habitual, na Casa de Artes de Vila Nova de Famalicão. Por entre o Cinema e os debates, ainda haverá “lugar” para a Exposição Fotográfica e de Vídeo de Ana Cidade Guimarães e Virgílio Ferreira intitulado de A Natureza do Lugar e o Lugar da Natureza.

Manuel Mozos: "Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar"

Hugo Gomes, 10.03.18

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Manuel Mozos

Manuel Mozos é uma peça importante no cinema português contemporâneo. A sua geração, na qual cabem autores como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Leitão, tem sido apontada desde sempre como “salvadores” de um cinema escasso. A sua prolificidade tem o transformado numa figura constantemente presente, contudo, em comparação com os demais, a sua visibilidade é quebradiça. A culpa, possivelmente, é de um certo e proclamado fantasma: Xavier.

De qualquer modo, é “Ramiro” que com carinho o recebemos no seu regresso à ficção, nove anos depois de “4 Copas”. Esta história de um alfarrabista preso à sua passividade e ao passado glorioso que deixou fugir entre mãos é uma comédia tragicómica que vai ao encontro de uma Lisboa a passos da sua modernidade, assim como da personalidade que Mozos assume nesta “Glória que é Fazer Cinema em Portugal”.

De onde surgiu a ideia de Ramiro?

Bem, a ideia não é minha. Esta surgiu de Telmo Churro e de Mariana Ricardo, que escreveram o argumento, e me propuseram certo dia. Aceitei e, uns dias depois, eles apresentaram-me uma versão reduzida que gostei. Foi então que incentivei-os a avançar com essa mesma ideia. A partir daí trabalhamos em conjunto, tínhamos reuniões, encontros, mais propriamente, íamos falando. No fundo […] o projeto encontrava-se bastante próximo daquilo que tenho feito na arte da ficção. Uma intriga sobretudo centrada nas personagens, sendo a central alguém um pouco desfasado da realidade, e os espaços que vão desaparecendo e que se vão transformando.

De certa forma, Ramiro é uma personagem tragicómica, como disse, o seu mundo está a transformar, mas ele não recusa tal metamorfose.

Ou seja, a ideia era mesmo ter esse pendor tragicómico. Porém, não queríamos uma personagem somente restringida a esse sentido. Não pretendíamos um “velho do Restelo”, que olhava permanentemente ao “antigamente”. Queríamos fragilidades, uma figura inábil na sua relação com os outros, criando assim uma certa comicidade, digamos.

Existe uma frase dita pelo próprio Ramiro que desmistifica toda a sua personagem que é “E foi então que descobri que sou um ser passivo”. Aliás, porque como nós já percebemos, o mundo mudou mas ele não quer saber dessas mudanças.

Concretamente há uma certa resistência saliente da parte dele em fechar-se ao Mundo, não é que esteja contra o Mundo, mas ele próprio forma ao seu redor um casulo. Depois, quando tenta espreitar fora dele, depara-se com um cenário não muito confortável. Ramiro vai repentinamente viver com algumas situações que para pessoas “mais normais” [risos] não seria nenhum problema, mas para ele são grandiosos desafios, porque simplesmente limitou-se àquela redomazinha, o entre a casa e a loja, a loja e a tasca com os amigos. Um mundo pequenino, portanto.

E aí entra o paralelismo com as novelas. Ramiro consegue por fim ver telenovelas no ecrã e subitamente a sua vida transforma-se em conformidade com isso.

Sim, queríamos brincar com essa dimensão. Ele não ligava às novelas e à conta de outros acaba por tornar-se espectador das mesmas. As novelas acabam por ser um reflexo do mundo em que ele vive, que transforma-se num autêntico conto novelesco.

Quanto à entrada de António Mortágua no elenco? A sua escolha até o processo criativo da personagem.

Não gosto de fazer castings, até porque a certa altura, tendo um argumento sólido, começo a pensar quais os atores que servirão para essas personagens criadas. Uns são mais fáceis de encaixar, outros mais complicados, consoante as hipóteses e dependendo do conhecimento que tenho desses mesmo atores. O único casting feito para “Ramiro” foi o da personagem de Daniela, que seguiu para Madalena Almeida, devido à sua faixa etária. Esse casting exigiu muito trabalho, visto que muitos desses candidatos são atores que fizeram pouco ou que ainda estavam a estudar interpretação. Muitos deles apenas sonhavam.

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Ramiro (2017)

O caso do António foi mais complexo. Eu conhecia-o, não pessoalmente, de duas peças de teatro, e ele não tinha feito nenhum filme. Portanto, decidi arriscar e contactei-o. Ele ficou surpreendido, até porque não estava à espera de fazer cinema, assim me disse numa conversa muito aberta, onde também lhe confessei o pouco que conhecia do seu trabalho. Começamos a fazer ensaios e a perceber melhor como iriamos conceber a personagem central. Pouco a pouco, íamos tendo conversas sobre o argumento, sobre a personagem e às tantas julgo que ficamos convencidos que valia a pena o risco. Sinceramente, estou bastante satisfeito com a decisão dele e da sua parte julgo também estar.

Até que ponto esta personagem do Ramiro tem um polvilhar de autobiografia?

De alguma maneira sim. Na verdade, quando li a primeira versão do argumento que me entregaram automaticamente exclamei, pelo que eles afirmaram: “Sim, é verdade. Por isso é que propusemos a ti”.

De facto, o que não quero é que julguem que aquilo representado é a minha vida. Sim, existem algumas similaridades, ou proximidades da minha vivência com a do Ramiro, sem dúvida, mas isto não é um filme autobiográfico. Ao trabalhar no filme notei sobretudo esses elementos, mas de certa forma os meus filmes anteriores já indiciavam isso, essa conformidade para com a minha vida. Aqui talvez possa ter mais proximidade, mas sempre vi este lado biográfico representado em outros projetos meus como “Xavier” ou “… Quando Troveja”, que respetivamente marcam e espelham etapas da minha vivência. Em relação a “Ramiro”, não gosto de carregar isso, quem me conhece poderá identificar tais ligações.

O Manuel tem a consciência de que a personagem do Ramiro possui um livro da sua autoria que é visto como uma obra fundamental da literatura portuguesa, mas esquecido e cujos objetivos não foram cumpridos. Isso torna-se uma alusão ao seu “Xavier”, cujas infelicidades de produção o desviaram da obra que poderia ter sido. Quero com isto pegar numa frase apropriada de um documentário, “Glória de Fazer Cinema em Portugal” – Custa fazer Cinema no nosso país?

Sim, custa. E se custa. Mas não é só para mim, é para todos. Obviamente o título de “Glória de Fazer Cinema em Portugal” possui uma carga irónica, principalmente para mim hoje. Mas nem sempre foi assim, quando estava a fazer o “Xavier”, detinha um certo tipo de ambição, aliás trabalhava no filme um ano depois da primeira obra – “Um Passo, Outro Passo e Depois…”.

Mas foi a partir daí que as coisas mudaram, quer dizer, até certa altura pensava “isto está a correr bem”, mas o “desastre” trazido por “Xavier” [devidos a problemas de produção] colocou isso de parte. Apesar de tudo, consegui ir fazendo filmes, uns mais visíveis, outros menos visíveis, e num determinado ponto, visto que já não tenho a juventude, nem o fulgor de há trinta anos, posso fazer uma auto-ironia daquilo que faço, e por outro lado estar apaziguado com essa ideia.

Há ainda esse lado, o do realizador que teve um percalço e ficou numa situação esquecida de visibilidade. Esse é um lado que pode aproximar à figura do Ramiro, que trará escrito um livro importante de qualquer maneira, mas de algum modo bloqueou a sua criatividade.

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Xavier (1992)

Mas ao contrário do Ramiro, o Manuel não bloqueou …

Sim, não bloqueei, mas em termos de visibilidade é um bocado parecido. O de viver com a ideia de que poderia ir para um lado mas a carreira não seguiu. Nisso sim, há um paralelismo com o Ramiro.

De certa forma é um pouco triste todos relembrarem que foi o realizador do “Xavier” e constantemente estarem a trazer isso à tona?

Não. Para já, há algo muito curioso que é o facto de muita gente não ter visto o “Xavier”. Sim, podem falar ou conhecer a história por detrás, mas são mais aqueles que o nunca viram. Por outro lado, felizmente, isso já é levado por outros dois filmes meus que eventualmente tiveram mais visibilidades, como no caso do “Ruínas” e do “Outros Amarão As Coisas que eu Amei”, ou até mesmo o já referido “Glória de Fazer Cinema em Portugal”, que de algum modo me deram um outro tipo de atenção. Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar [risos].

É certo que em “Ramiro” encontramos influências do cinema de Miguel Gomes, aliás, recorda-se que trabalhou em inúmeros projetos do realizador e os argumentistas de Ramiro são colaboradores habituais.

Nós conhecemo-nos pela primeira vez no Porto durante uma edição do Fantasporto, onde projetava o meu “… Quando Troveja”. Na altura, Miguel era jornalista do Público, e em alturas do festival escreveu uma crítica muito benéfica, aclamado que o filme seria uma referência no cinema português. Lá contactou que gostaria de fazer-me uma entrevista e fez, e foi a partir daí que, de algum modo, criamos uma amizade.

Na sua segunda curta-metragem (“Inventário de Natal”), o Miguel convidou-me para o cargo de anotador e responsável pela montagem do filme, uma colaboração que foi repetida com a sua primeira longa (“A Cara que Mereces”), onde trabalhei no argumento ao lado de Telmo Churro. Mais tarde conheci a Mariana Ricardo.

Quando tinha o projeto “Ruínas”, pertencíamos todos à mesma produtora, sendo que criamos uma espécie de relação quase familiar. Obviamente não é a única produtora em que tal sucede. Várias começaram desta maneira. Apesar de tudo, o Miguel nunca faria o “Ramiro”, assim como eu não faria o “Mil e uma Noites”, não por não querer, mas se isso acontecesse resultariam filmes completamente diferentes. O cinema do Miguel é dele mesmo, o meu é o meu. Não sei até que ponto as influências são óbvias, mas acredito que o facto dos argumentistas oscilarem entre projetos, compõem uma espécie de núcleo o qual o Miguel assume. Núcleo base como motor da sua filmografia. Não trabalho assim, porém, se eles [Churro e Ricardo] propuserem outros argumentos para mim, ótimo.

Um facto curioso, "Ramiro" foi o filme escolhido para abrir a passada edição do Doclisboa …

[risos] Confesso que também fiquei surpreendido após a proposta do Luís Urbano [da produtora Som e Fúria], e ao mesmo tempo hesitante, visto que é uma ficção e não um documentário. Então falei com a direção do Doclisboa que se sentiam agradados com a escolha. O argumento encontrado é a possibilidade de abrir portas no festival, não restringindo a um só formato de cinema.

É verdade que a fronteira do que é documentário e do que é ficção vai-se esbatendo ano após ano, mas mesmo assim … abrir um festival especializado em documentários. Lá, eles alegaram que de certa maneira “Ramiro” possui uma face documental, o retrato de uma Lisboa em transformação, e cuja inserção na programação poderia levar o festival a passar ficções, até porque os planos deles são apresentar retrospetivas de autores que desbravaram nesses dois mundos. Se formos a ver bem as coisas, o Indielisboa, por exemplo, não passa só cinema independente, nem o Curtas Vila do Conde é exclusivo a esse formato.

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Ramiro (2017)

Pegando nesse termo, “o retrato de uma Lisboa em transformação”, e no seu documentário, "Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista", considera a cidade num local eficazmente cinematográfico?

Absolutamente. Lisboa é definitivamente cinematográfica. Desde o ambiente à sua atmosfera e até mesmo a qualidade e a disponibilidade da luz, apesar disso ser por vezes um pesadelo para os diretores de fotografia. Mas falamos de Lisboa, assim como falamos do Porto, que é igualmente cinematográfica, mesmo soturna e mais pesada. Aliás, gostaria de reformular que Portugal tem das cidades mais cinematográficas.

Novos projetos?

Quase garantidamente estou com um documentário, mas ainda não sei quando irei filmar e antes disso vou preparar o trabalho de pesquisa. Terá algumas proximidades com o “Ruínas”, e será sobre espaços concentracionários no qual esbarrarei em algumas figuras históricas, como por exemplo Camilo Castelo Branco e o poeta António Gancho. Será um filme que relaciona espaços com as personalidades.

Ainda tenho algumas outras curtas a serem preparadas, mas ainda em fase embrionária. De momento procuro ideias para uma nova ficção.

Um “loser” à moda alfacinha

Hugo Gomes, 21.10.17

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Ramiro é aquilo a que poderíamos apelidar cinematograficamente de «loser», uma personagem à deriva da sua sorte, encostada às “cordas” do passado, da glória que lhe nunca passou, nem sequer o esforço que detêm para a atingir. A certa altura, o protagonista-título confessa aos seus amigos que acabara de descobrir a sua passividade (“Sou uma pessoa passiva”), sequência-chave que revelará por completo a sua anti-tour de force, até porque o seu talento, diversas vezes mencionado por outros, nunca fora devidamente reconhecido, assim como conquistado. O seu proclamado bloqueio criativo é simplesmente fruto desse autodesprezo.

Mas Ramiro não é de todo um desprezível, é dotado de uma boa índole, o espectador crê isso através dos seus atos minuciosos, na sua teimosia controlável que nos leva aos seus próprios demónios, o medo; o medo de falhar, automaticamente, o medo de tentar.

É fácil simpatizar com este Ramiro, nem que seja pela interpretação derivante do ator António Mortágua, um laço de empatia com uma audiência que se lança nas prateleiras de um alfarrabista em busca de preciosidades. O que encontramos é “livros esquecidos”, estilos não vingados, enredos antiquados com o intuito de agradar aos “velhos do restelo” ou os reféns das “coisas que outros amaram”. Porém, e utilizando esse mesmo lugar, “Ramiro” enquadra-se num cinema português desadequado, não pela inutilidade estilística, mas como oposição às novas vagas que tendem em: a) manejar a experimentação narrativa e visual no qual diversas vezes disfarça a pura incapacidade; b) a sedução pelos formatos wannabe hollywoodescos, de forma a repudiar toda uma História da nossa cinematografia.

Tal como a personagem, Manuel Mozos cria um filme passivo na sua positiva afirmação, até porque é em “Ramiro” que evidenciamos um cinema lúcido, intrinsecamente português-alfacinha e discretamente irónico, mesmo sob as influências de João César Monteiro e dos seus constantes e castiços trocadilhos. Talvez tenha sido a experiência com Miguel Gomes, outro influenciado pela natureza do anterior “João de Deus”, o catalisador para esta invocação. Porém, Mozos não pretende o mero tributo. O filme concentra-se sobretudo numa saudação, a vénia a uma iminente emancipação, assim como a transformação de Ramiro após a perda do seu mentor.  

Eis um pequeno achado do cinema português, um “livro” poeirento e esquecido na mais oculta das prateleiras que resulta na mais graciosa das descobertas. Sem alterar o curso do nosso cinema, temos aqui filme e não pretensões.