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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Verdade ou Consequência?", no mundo de Luís Miguel Cintra: "escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje"

Hugo Gomes, 29.08.24

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Verdade ou Consequência? (Sofia Marques, 2023)

As cortinas descem, dividindo os dois mundos em que Camilla (interpretada por Anna Magnani) perdidamente se posiciona, num prolongado dilema existencial. Atriz de teatro, porém magnetizada pela vida civil que a espera sob juras de amor eterno, ou romances das alturas, só que acordada por um chamamento que lhe confronta com a sua “realidade”. Ela não pertence ao mundo dos meros mortais porque já havia feito a escolha, e há muito, o teatro, esse pulso de vida, o resto vencido ao seu estatuto de plateia, viraria num “outro teatro”, inacessível a Camilla

A mesma escolha havia feito Luís Miguel Cintra, e essa passagem integra e entrega a sua alma com uma sina. Trata-se do desfecho do filme de Jean Renoir, “Le carrosse d'or” (1952), o “da vida” do ator, segundo este, desafiado por João Bénard da Costa num certo dia. O derradeiro momento adquiriu uma dualidade simbólica neste “Verdade ou Consequência?”; a primeira, a essência do ator enquanto, e somente, ator, mais que uma profissão, uma vida restringida às dores da performance, do espéctaculo, do pensamento na arte e na forma, e por outro o reflexo emitido em hipotéticos e imaginários lagos encantados onde Luís Miguel Cintra, o próprio e não outro, contempla nesta sua jornada ao passado, à memória, aos tempos áureos e às figuras que o atravessaram, por entre fotos e arquivos abertos, locais manifestantes a essa nostalgia, à génese e ao seu íntimo.

Sofia Marques, também ela atriz, persiste na compreensão deste vulto maior da cultura portuguesa, não só do teatro, não só do cinema, como na invocação da sua aura, aquela que concentrou e inspirou centenas de artistas hoje em vigor. Depois de “Ilusão”, do qual seguiu de perto a concepção de uma peça no Teatro da Cornucópia, com fascínio à dupla Cintra - Cristina Reis, regressa agora com “Verdade ou Consequência?”, um convite, e um convidado, na busca das sombras, dos recuerdos e dos olvidados. E uma declaração vivida de “Ainda estou aqui!”

O Cinematograficamente Falando … falou com a autora, sobre o autor, sobre o processo de chegada, sobre a sua dimensão e tudo envolto. “Verdade ou Consequência?” chega aos cinemas portugueses, um depois da sua estreia no Doclisboa, em comemoração dos 10 anos do Cinema Ideal

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Verdade ou Consequência? (2023)

Gostaria que me falasse sobre os filmes, e especificamente sobre o tema que gira em torno de um único homem. Aliás, os seus filmes, não refiro apenas este, mas como também o “Ilusão” (2014), que de certa forma, aborda indiretamente esse homem, o Luís Miguel Cintra. Na sinopse oficial, você declara que esteve à procura do Luís Miguel Cintra que conhecia, ou seja, o do passado. Portanto, a pergunta é muito direta: conseguiu encontrá-lo neste filme?

Encontrei, sim! Trabalhei na Cornucópia durante grande parte da minha vida. Não foi a minha vida toda, mas pelo menos metade, porque entrei aos 19 anos e saí em 2016, quando a companhia terminou. E por essa razão, posso dizer que estava à procura de filmar algo que conhecia bem, no sentido de que sabia exatamente o que iria encontrar. Queria filmá-lo para mostrar às pessoas o Luís Miguel Cintra que eu conhecia, a que tinha acesso, e o quão privilegiada era ter esse acesso.

Só que, entretanto, quando comecei a fazer as filmagens [“Ilusão”], coincidiu com o fim do Teatro da Cornucópia. O próprio Luís Miguel estava numa fase muito diferente da vida, numa espécie de balanço, refletindo sobre como viver uma vida totalmente diferente daquela que tinha até então. Fazia três espectáculos por ano, e não tinha quase tempo para mais nada além de pensar e preparar os próximos espectáculos. E de repente, encontrou-se numa outra situação.

Portanto, quando comecei a filmá-lo, nós dois ficámos ali um pouco em processo de descoberta.

Também queria lhe perguntar exatamente isso, porque ao encontro do Luís Miguel Cintra do passado, o filme também tropeça no Luís Miguel Cintra de hoje?

Claro. Porque a minha ideia sempre foi essa. A minha intenção nunca foi fazer um filme recorrendo a imagens de arquivo. Decidi fazer um filme com o Luís Miguel Cintra de agora, aos 74 anos, na sua vida atual, sem a companhia do Teatro da Cornucópia, e um pouco também afastado do cinema enquanto ator. Quis enfrentar a vida tal como ela é, sem fugir da realidade presente, que também é uma busca constante — uma busca não só pelo sucesso e pela felicidade, mas também por tudo o que faz parte da vida dele.

Foi um caminho muito mais difícil de percorrer, mas também me pareceu muito mais interessante e pessoal.

Sim, é verdadeiramente pessoal, mas permita-me dizer que, pelo menos falando da minha experiência, saí da sala um pouco melancólico e triste.

Mas a vida é triste …

Não posso deixar de concordar. Isso também está ligado à escolha da última cena do filme, que é a transmissão da última cena do “filme da vida de Luís Miguel Cintra”, “Le carrosse d'or”, de Jean Renoir. A sequência final, tanto do filme dele como do seu, transmite a ideia de que ele pertence ao mundo dos atores, ao mundo do teatro, enquanto o resto do mundo se torna a plateia. Ou seja, este Luís Miguel Cintra que você filma, que está ligado ao real, esconde um Luís Miguel que se interessava pelos espectáculos e que traz consigo uma certa nostalgia do teatro.

Mas um ator vai sempre ter saudade do espectáculo, porque ser ator é algo que nunca se abandona. Não se demite dessa função; um ator continuará sempre a pensar como ator, ainda mais quando é um criador como ele é. É impossível que isso não faça parte da vida dele todos os dias. Por isso, “Le Carrosse d'Or” é o filme da vida do Luís Miguel, porque Anna Magnani, a personagem principal, escolhe o teatro em vez da vida comum. Ela escolhe permanecer nesse mundo. E, de certa forma, o Luís Miguel também escolheu o teatro, porque viveu toda a sua vida para isso. Ele não criou os laços que talvez outras pessoas tenham criado, como ter filhos e, mais tarde, na vida, recorrer a esses familiares que oferecem mais proteção. Ele escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje.

E até no cinema, parece que ele tem estado a afastar-se, praticamente. Lembro-me de um encontro com ele em 2018, quando passaram “A Ilha dos Amores”, em versão restaurada, no Festival de Cannes. Ele respondeu-me a uma questão envolvendo mercado de trabalho e o envelhecimento dos atores de que os jovens já não criam personagens de “velhos”. Ou seja, ele sente que já não tem lugar neste novo “universo” cinematográfico que está a emergir para as novas gerações, porque já não há a tendência de escrever personagens para atores como ele.

Nem para ele, nem para outros atores da sua geração... Não se pode dizer que isso seja uma regra geral, mas o cinema da época dele, desde o início até há relativamente pouco tempo, tinha uma narrativa muito diferente daquela que se vê agora. Talvez por isso ele não se identifique tanto com o cinema atual. Embora seja uma pessoa bastante livre e cheia de vontade de continuar a explorar novas formas de fazer arte, talvez sinta que as coisas estão mais vazias hoje em dia. Parece que tudo quer chegar muito rapidamente ao objetivo, com uma ânsia de alcançar o sucesso de forma imediata.

Ilusão (2014)

Achas que envelhecer é mau para um ator?

Não há nada de mal em envelhecer para um ator. Também digo isso enquanto atriz. Envelhecer é muito bom. Para começar, é sinal de que estamos vivos, e isso já é uma maravilha [risos]. Mas, quer dizer, tens uma noção da matéria dada. Trazes contigo a tua vida, as tuas experiências, o que fizeste e o que encontraste. Ficas com saudades de ‘coisas’ que já fizeste, mas também encontras novos desafios o qual tens que enfrentar, gostando ou não. Aprender com eles faz parte do crescimento. É um processo evolutivo.

Vamos recuar um pouco e falar de “Ilusão”. Apesar de em relação à Cornucópia haver um prenúncio de “fecho de portas” no ar, “Ilusão” foi concretizado em 2014, e a companhia encerrou em 2016. De certa forma, o filme, mesmo que inconscientemente, foi um tributo à Cornucópia e à sua memória?

Ilusão" foi uma homenagem, mas não foi criado com essa intenção consciente. Na verdade, tinha feito outro projeto antes. Em 2010, realizei “Vê-Los Assim Tão Pertinho” (2010), uma experiência com as Comédias do Minho, que trabalha muito com a comunidade e explora emoções e conceitos relacionados ao Minho. Após essa experiência livre, fiz “8816 Versos” (2013) com o ator António Fonseca, um filme em que acompanhei a decoração dos Lusíadas. O Luís Miguel viu esse filme, gostou e como tal me fez uma proposta: visto que estava a trabalhar com não-atores, o público da Cornucópia, e estudantes de teatro, desafiou-me a acompanhar todo o processo e a fazer um filme sobre isso. Aceitei o desafio com muita vontade, porque era algo novo para mim acompanhar o trabalho do Luís Miguel e da Cristina Reis com pessoas sem a disciplina e a rotina de atores.

Assim, comecei e deparei-me com a Cornucópia exatamente como a conhecia: com a mesma seriedade, rigor, alegria e imaginação, mesmo com não-atores. O que fiz foi mostrar o trabalho da companhia através daquele espectáculo, que incluía os primeiros textos de Federico García Lorca, e que resultou numa peça bastante especial.

Com o “Verdade da Consequência?” explorava outras abordagens. O Luís Miguel costuma dizer, e menciono isso no filme, que invento novas formas de me relacionar com ele. Talvez seja verdade. Talvez tenha sentido um pânico ao perceber que o teatro da Cornucópia estava a desaparecer e não quisesse deixá-lo ir embora. Foi uma maneira de manter essa inspiração e a sua influência comigo, de continuar a aprender com ele e a olhar para o mundo da maneira que ele o faz e o qual tanto admiro.

Foi uma experiência muito bonita, emotiva e divertida, e esses momentos refletem-se de alguma forma no filme.

E em “Verdade ou Consequência?” quem é que teve a ideia da viagem?

Fui eu que tive a ideia da viagem porque, na verdade, queria fazer umas quantas com ele. O meu objetivo, desde o início, era viajar para Espanha, porque o Luís Miguel nasceu lá, como ir a Itália, porque isso está muito ligado à sua educação; quando era jovem, ele viajava frequentemente para aprender História da Arte, e também para a França, pelas mesmas razões, relacionadas com a sua educação. Tínhamos, portanto, pensado em fazer várias viagens. Só que, entretanto, aconteceu a pandemia e só conseguimos ir a Espanha, em 2019. Logo a seguir, veio a pandemia, e não conseguimos fazer mais nada. Tudo ficou um pouco diferente.

Decidi, então, planeei que o Luís Miguel me mostrasse o seu “mundo” a partir da sua própria casa, porque a pandemia trouxe-nos uma nova visão sobre o conceito de casa, não é? O confinamento fez-nos pensar nas nossas raízes, onde realmente pertencemos. Ele tem uma casa no Porto e outra em Lisboa. Qual é, então, a sua verdadeira casa? Essa questão abriu uma nova perspetiva o qual não tinha considerado antes, mas que me fez refletir graças à pandemia. A escolha de fazer o filme sozinha, sem equipa, também está relacionado com esse contexto, porque era muito arriscado levar uma equipa de filmagens para dentro da casa dele.

Por isso, resolvi fazer tudo entre mim e ele, e acho que funcionou bem.

O mundo dele, a sua casa, rodeada de imagens sacra …

Sim, a casa dele já é um mundo por si só. A casa dele é, no fundo, uma enorme coleção de mundos. E isso é muito bonito. São imagens, algumas com muito valor, outras sem valor nenhum. É como se ele criasse uma pequena Humanidade dentro da sua própria casa.

O Luís Miguel Cintra, de certa forma, é um mundo em si mesmo. Lembro-me que no “Dicionário do Cinema Português”, o crítico Jorge Leitão Ramos o declarou como “o melhor ator do mundo” …

John Malkovich afirmou o mesmo …

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Luís Miguel Cintra e Catherine Deneuve em "O Convento" (Manoel de Oliveira, 1995)

O Malkovich … sim, ia acrescentar isso. Após a rodagem de “O Convento” (Manoel de Oliveira, 1995), John Malkovich lançou a hipótese de que Luís Miguel Cintra tivesse ido para Hollywood, seria considerado um dos melhores atores do mundo. Mas apesar de tudo isso, há um sentimento de que o Luís Miguel Cintra permanece um tanto na sombra em Portugal.

Não sei se ele está na sombra... Quer dizer, estar na sombra depende do público. Ele é um ator que, para começar, não tem necessidade de se promover, porque a sua obra já fala por si. Além disso, sempre foi um homem que trabalhou imenso. Se formos a ver, ele trabalhou com praticamente todos os realizadores portugueses, participando nas suas primeiras obras, e isso é incrível. Acho muito bonito alguém aceitar participar nas primeiras obras de realizadores, e ele tinha muito gosto nisso. Isso também diz muito sobre a sua personalidade e o seu comprometimento para com o Cinema.

Ele fez filmes que podemos ver e apreciar. Como ator, trabalhou 45 anos, foi encenador e diretor de uma das maiores companhias de teatro em Portugal, e talvez até na Europa. Para mim, pelo menos, é uma figura de destaque. Portanto, essa ideia de estar na sombra... Não sei, sinceramente, não o partilho.

Sobre a estreia deste filme agora [produzido em 2022, estreado em 2024] ... Sei que é para celebrar os 10 anos do Cinema Ideal, mas também há algo mais pessoal por trás disso. Recordo-me na Cinemateca que deram prioridade à publicação do livro “Luís Miguel Cintra: O Cinema”, e, embora seja um pouco agressivo dizer isto, mas essa urgência estava ligada à preocupação de o fazer antes que ele “partisse”. Ou seja, também há esta intenção de estrear o filme quase como uma homenagem.

Não, não queria de todo... É claro que queria estrear este filme com o Luis Miguel vivo, com saúde, para que ele pudesse acompanhar-me no que será agora o percurso do filme. Conto com ele para ir comigo, viajar, e aproveitar a vida, porque ouvi-lo é sempre uma experiência única. Esse era o meu objetivo. Não fiz o filme a pensar que o Luís Miguel não estaria cá quando o filme ficasse pronto.

Não senti essa urgência de que falas. Demorei o tempo que precisei para terminar o filme. Comecei a prepará-lo em 2019, e agora estamos em 2024. Houve a paragem da pandemia e depois continuei as filmagens, seguiu-se a montagem, e houve outras pausas, porque também sou atriz e faço bastante teatro. Muitas vezes, tinha ensaios e espectáculos, então, o processo foi feito aos poucos.

O Luís Miguel tem uma doença que as pessoas já sabem, ele tem Parkinson, mas não tem mais nada além disso. Apesar de tudo, já tem o diagnóstico há bastante tempo e tem conseguido viver com ela. Não está, de todo, no fim. A doença tem o seu tempo, e ele tem conseguido controlá-la. Ainda está numa fase em que consegue lidar com isso.

Ele continua a fazer as suas peças e a montar os seus espectáculos. Alguns desses projetos acontecem, outras vezes nem por isso, mas ele não está parado. A mente dele continua sempre ativa …

São mais as que acontecem ou as que não acontecem?

Na verdade, já aconteceram três espectáculos desde que a companhia terminou. Pelo menos participei em dois deles; “Dom João”, uma produção longa, com cerca de quatro horas, e “Pequeno Teatro ad usum delphini vanitas”, que aparece no filme e é inspirado em Dom Quixote. Além disso, fez um em conjunto com o pianista João Paulo Santos, que também é mostrado no filme. Ou seja, durante o tempo em que estive a filmá-lo, ele estava ocupado em peças de teatro, numa oratória, e a colaborar comigo nos nossos projetos. E ainda tem muitas outras ideias para futuros projetos.

Enquanto atriz, filmes como estes consomem-lhe muito tempo?

Consome sim. O filme foi feito um pouco por etapas. O Luís Miguel vive no Porto e, de vez em quando, vinha a Lisboa. Então, aproveitava esses momentos ou combinava períodos em que ele ficava em Lisboa para que pudéssemos fazer as filmagens. Outras vezes, ia ao Porto e filmava lá. Foi preciso muita disponibilidade, especialmente para saber ouvir e observar com atenção, para depois conseguir transmitir isso no filme. Tudo foi concebido de uma forma muito espontânea e pouco planeada. Nunca combinamos antecipadamente o que iríamos falar, dizer ou ouvir. Foi um processo bastante orgânico.

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Sofia Marques e António Mortágua em "Ramiro" (Manuel Mozos, 2017)

Em relação ao cinema, constante que tem uma carreira longa e diversificada, contudo, destaco dois papeis, o de “Veneno Cura”, da Raquel Freire (2008), que aliás que também participou na primeira obra dessa realizadora [“Rasganço”, 2001], e “Ramiro”, de Manuel Mozos (2017). Porque olhando para o seu percurso em grande tela, vejo colaborações com João César Monteiro [“As Bodas de Deus”], João Botelho [“Um Filme em Forma de Assim”, “Corte do Norte”], Mário Barroso [“Ordem Moral”], Jorge Cramez [“Amor Amor”], Joaquim Pinto [“Pathos Ethos Logos”] e Christine Laurent [“Demain?”], mas praticamente tudo reduzido a papeis secundários ou de passagem. Portanto, a minha pergunta, é, as suas participações cinematográficas são escolhas suas ou são os papeis que lhe chegam a si?

Deixa-me só acrescentar o “Cinarauma” de Inês Oliveira (2010) … Interessa-me imenso o cinema português, mas também já deves ter percebido que às vezes é muito difícil porque acaba por ser sempre os mesmos atores que fazem cinema em Portugal.

Portanto, é uma questão dos papeis não chegarem a si …

Não me queixo, porque estou sempre disponível e aproveito todas as oportunidades que tenho. O projeto “Veneno Cura” foi algo que adorei fazer, com uma entrega absoluta. Gostei imenso de trabalhar nesse filme, e a colaboração com toda a equipa de cinema foi muito especial. Fiz grandes amigos aí, e que ainda hoje são meus amigos. Foi um projeto realmente bonito. O “Ramiro” foi também uma maravilha, pois adoro o trabalho do Manuel Mozos e o seu cinema. Foi um prazer enorme participar nesse filme.

Gostaria de ter mais oportunidades no cinema, mas, no fundo, é preciso que os realizadores estejam dispostos a arriscar em trabalhar com atores que talvez não estejam sempre em todos os filmes. É legítimo que eles escolham atores e atrizes que imprimem algo especial nos seus projetos, e, se gostarem do trabalho, podem querer incluir esses talentos nos seus filmes.

Cinema - Lazarus

Hugo Gomes, 04.07.24

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O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2008)

O cinema existe então para responder a um desejo: ver a vida passar à nossa frente, entendê-la melhor, e vivermos redobradamente. Não seriam as palavras de Oliveira as de uma optimista sobre uma arte cuja morte foi decretada várias vezes? Se o cinema dá vida a tudo o que morreu, como Angélica , a discussão sobre aquilo que traz às nossas vidas nunca encontrou um fim. Todos gostaríamos de poder viver para sempre - nem que seja por uma hora ou duas para sentirmos uma amostra da eternidade. Será essa a razão para continuarmos a ver filmes?

Francisco Valente em “Espelho Mágico: uma história do cinema” (editora Orfeu Negro)

À procura de Fernando Pessoa, enquanto se acha Manuel Guimarães: uma conversa com Leonor Areal

Hugo Gomes, 03.07.24

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Onde está o Pessoa? (2023)

Onde Está o Pessoa?” relembra, e bem relembrado, o jogo visual celebrizado mundialmente “Onde Está o Wally?”. Neste caso, trata-se de um ensaio audiovisual que se incorpora como um filme-documento sobre uma certa nata artística da capital portuguesa. Estamos em 1913, e à saída de um concerto que teve lugar no antigo Teatro da República, uma multidão apercebe-se que está a ser “espiada” por uma câmara do outro lado da rua. A reação desta, que vai desde o evidente desconforto, passando por brincadeiras, até ao pensamento de posterioridade, proporciona à estudiosa académica, realizadora e ensaísta Leonor Areal um delicioso jogo de “quem é quem?”, até que… zás… eis Fernando Pessoa!

Este loop de imagens de poucos minutos fez notícia por ser uma alegada captura do escritor de “A Mensagem” em movimento. Será mesmo ele, ou um sósia?

Leonor Areal conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto, que faz parte de uma multi-plataforma em homenagem ao poeta – o Arquivo Pessoa – sobrando tempo para abordar “países imaginados”, Manuel Guimarães e os Saltimbancos nunca concretizados.

Gostaria que começasse por falar sobre este projeto, o Arquivo Pessoa.

Este projeto começou há cerca de 30 anos, desde que a ideia surgiu. Depois, levou alguns anos para ser realizado em CD-ROM. Desenvolvi-o no meu mestrado em Comunicação Educacional Multimédia e que converti em CD-ROM em 1997. Consiste numa base de dados de toda a obra atribuída a Fernando Pessoa até àquela data, e numa outra vertente mais de iniciação para leigos e estudantes, que é uma antologia guiada que depois se transforma num percurso labiríntico. Portanto, tem muitas ligações, porque a obra de Pessoa é labiríntica. Em 2008, esse CD-ROM foi transposto para a internet e é o que hoje está no site Arquivo Pessoa Net e Multi-Pessoa Net.

Mas de onde vem esse fascínio por Pessoa?

Estudei Literatura na minha licenciatura e, portanto, conheci a obra de Fernando Pessoa através das aulas e desenvolvi um gosto por ele. Acho que é difícil não se sentir atraído e fascinado por Pessoa, porque a sua obra é tão vasta e complexa que todos nós encontramos nela algo que nos toca, não é? E pareceu-me que o hipertexto, que na altura estava a emergir, era um instrumento de organização das ideias, das imagens e do pensamento em rede que se adequava perfeitamente à obra de Fernando Pessoa. Naquela época, estávamos habituados aos livros com uma estrutura linear, que não podem ser de outra forma. 

Ele mesmo explica que as suas ideias surgem em associações permanentes e iniciam caminhos que depois não consegue terminar, porque desses caminhos nascem inúmeras ramificações. Por isso, ele nunca conseguia terminar as coisas, porque as suas ideias proliferavam imensamente. Assim, pareceu-me que essa maneira como Pessoa descrevia o seu pensamento e a sua obra fragmentária era, especificamente, adequada ao hipertexto.

Com o auxílio das possibilidades de pesquisa de uma base de dados, construí aquela parte mais didática também como hipertexto, em que temos percursos lineares, como os percursos guiados, quando se conta uma história ou se apresenta um conteúdo. Mas depois, esses percursos cruzam-se entre si, e as ligações cruzadas estão lá feitas, de maneira que podemos saltar de um percurso para outro através de uma associação informada, indo de um para outro e, provavelmente, a certa altura, já estamos perdidos no labirinto da obra de Pessoa. Assim, construí essa parte como um labirinto, criando todo o sistema em torno da vastidão da obra pessoana.

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Leonor Areal

Gosto do termo "pessoano". Não sei quanto a si, mas quando olho para a Pessoa, reconheço o seu inegável génio, mas há qualquer coisa de conspiratório no seu percurso, como estivesse dependente e “e se”. No filme do Edgar Pêra, "The Nothingness Club", logo no início, é-nos informado que Pessoa poderia ter ganho o prémio Nobel se não fosse a guerra. Portanto, lanço esta questão; acha que hoje, apesar de ser tão estudado e reconhecido, Pessoa continua, de certa forma, incompreendido?

Não acho que Fernando Pessoa seja incompreendido; pelo contrário, acho que ele é cada vez mais compreendido. Até porque essa maneira de pensar, essa dispersão em que ele vivia, essa multiplicidade, até os vários heterónimos que são egos ou alter-egos. Nós hoje lidamos com isso como algo quase inevitável, porque acedemos à internet, começamos num sítio, acabamos noutro, perdemos tempo e deixamos coisas inacabadas…

Como os avatares?

Ele tornou-se de tudo: mítico, um autor projetivo, ou seja, alguém em quem as pessoas projetam as suas próprias ideias e sentimentos, que nem sempre são dele, e até um ícone. Hoje em dia, vemos Fernando Pessoa em camisetas, em objetos decorativos, até em sabonetes. Eu acho que ele alcançou uma notoriedade tão grande. Mas, quando vi isso, pensei: "Isto é tão superficial. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com sabonetes?" [risos]. É apenas uma tentativa de vender um produto usando a sua imagem, um desenho com o sujeito de óculos e bigode…

Fernando Pessoa desprendeu-se do seu imaginário literário, tornou-se numa atração e por sua vez uma figura ficcional. Há pouco referia o filme do Pêra, mas também fruto de duas metragens de João Botelho [“O Filme do Desassossego”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”], de Eugéne Green, para além dos inúmeras obras literárias como a do José Saramago [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”] …

Simplificadamente: Óculos, bigode e chapéu, e por isso, vendem sabonetes aos turistas. Só para dizer que ele se tornou, de facto, quase um gadget caricato. Até há bandas desenhadas, algumas até bem interessantes e uma quantidade de literatura e filmes sobre ele. Aliás, há uma revista chamada Pessoa Plural, se não me engano, dedicada ao estudo de Fernando Pessoa no cinema. Penso que está disponível online, por curiosidade. O cinema português, em particular, tem uma grande ligação a Pessoa.

Ele está no cinema, na literatura, e há imensos autores que se inspiram nele. Além de Saramago que bem referiu, temos também o Antonio Tabucchi, que escreveu "Requiem".

Que também virou filme …

Sim, Alain Tanner adaptou para o cinema … E há muitos outros autores, no fundo, ele é uma referência …

Sim, mas falo não só dessa adaptação à sua figura como também se separou da sua pele de escritor para se tornar numa figura ficcional em domínio público [risos]. Não sei qual a banda desenhada que se refere mas recordo de uma em que Pessoa era um espião numa das suas vidas duplas [“A Vida Oculta de Fernando Pessoa”, de André F. Morgado e Alexandre Leoni].

Há outra obra engraçada, uma banda desenhada do Miguel Moreira e da Catarina Verdier. Pessoa dá origem a uma quantidade enorme de obras que o questionam, interpretam, que o leem. No cinema, ele tem sido interpretado por vários atores, mas inicialmente adquiriu um aspecto mais grave, pesado e sorumbático. De certo modo, isso é reforçado pelos comentários das pessoas, que perpetuam essa imagem mais austera de Pessoa. Mas isso também tem a ver com os retratos fotográficos da época. Curiosamente, naquela altura, as pessoas não sorriam para os retratos, muitas vezes porque as fotografias eram tiradas em pose, e sorrir poderia resultar numa imagem tremida.

Isso porque o processo de fotografia era muito demorado?

Exatamente. Durante muitos anos, pensei que essa seriedade nas fotografias refletia a seriedade da sociedade da época. Depois, percebi que era devido à necessidade de ficar imóvel para que a fotografia ficasse nítida. Por exemplo, no caso das fotografias de rua, as pessoas muitas vezes eram capturadas em movimento, o que dificultava a obtenção de sorrisos. Temos muito poucas fotografias de pessoas a sorrir ou a rir, e o mesmo acontece com Fernando Pessoa. Não temos uma fotografia onde ele mostre os dentes ou sequer um sorriso. Isso nos transmite uma imagem de gravidade ou tristeza que talvez não corresponda completamente à sua personalidade.

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Fernando Pessoa

Ou até tormento? A sua alma torturada é também mítica.

Sim, mas em relação a isso, ele queixa-se nas correspondências e nos seus poemas. Como toda a gente, ele tinha dias bons e maus, dias mais produtivos e criativos. No entanto, tendemos a congelar uma única imagem dele, uma imagem séria e grave. De certo modo, essa imagem se descongela com este filme, permitindo-nos ver outras facetas de sua personalidade.

Sobre este filme, as primeiras divulgações que tivemos através da comunicação social, foi o de alguém ter encontrado uma suposta imagem em movimento de Pessoa neste trecho. Portanto, começo por perguntar: como foi que o encontrou? Será mesmo ele, como o filme indica?

Sim, eu o encontrei porque fui à procura dele, sem saber que realmente o encontraria. [risos] Achei interessante que tantos homens daquela época se parecessem com o que hoje consideramos o ícone de Pessoa: chapéu e bigode. Todos pareciam iguais naquela altura. Como eu sabia que ele circulava por Lisboa e frequentava concertos, havia a possibilidade de ele estar ali, e igualmente a possibilidade de não estar, como tudo na vida. Fui à procura, pensando que essa pergunta seria interessante como ponto de partida para um filme ou ensaio que pudesse fazer a partir daquelas imagens.

Quando comecei a analisá-las, houve um momento em que o vi e tive aquele insight imediato: “É ele, pronto!”. Mas isso não bastava, tive que verificar e comparar. As fotografias de Pessoa não são muitas, mas os fotogramas desses segundos, cerca de 12 segundos, são muitos, talvez uma centena ou duas, todos diferentes porque ele se move. A partir do trabalho e da análise desses fotogramas, consegui verificar se os traços correspondiam às fotografias conhecidas dele.

Após muito tempo de dúvida, tive a certeza. Aquela certeza intuitiva inicial foi confirmada pela análise. No filme, demonstro isso. Claro que não mostro todo o processo de meses, quase um ano, mas destaco alguns pontos chave que permitem, com bastante segurança, afirmar que aquela é Pessoa. Claro que devemos sempre admitir a possibilidade de erro, mas estou bastante segura. Segura o suficiente para arriscar a minha reputação e dizer: "Acredite em mim, se quiser, eu estou segura."

Naturalmente, é normal que o espectador tenha dúvidas até aceitar a conclusão. Será difícil provar que não é Pessoa, porque se não for, é alguém igual a ele. E o que significa alguém ser igual a alguém?

Mas o que é curioso no seu filme, logo a começar pelo título - "Onde Está a Pessoa?" - é a proposta que apresenta. Ao longo do filme, antes de irmos diretamente a Pessoa, codifica aquela nata artística que saía daquele espetáculo, que atualmente é o Teatro São Luiz, mas que antes se dava pelo nome de Teatro da República. Ou seja, o filme não é apenas um dispositivo para encontrar Pessoa, mas também é quase uma reflexão sobre a elite artística da época. Eles praticamente conviviam e mantinham relações próximas, pelo menos de homem para homem.

Sim, aquilo era o centro de Lisboa, era a comunidade da Brasileira. Todo mundo sabia que os intelectuais se encontravam na Brasileira [café lisboeta]. Era lá que eles trabalhavam, mesmo vivendo em outros lugares da cidade. Todo mundo passava por lá, era o ponto de encontro. Naquela época, Lisboa recebia influências do comércio e da cidade, mas comparada aos dias de hoje, era relativamente pequena. Ali era o coração da capital, onde as pessoas se encontravam.

Se havia um concerto especial ao domingo, como música sinfónica, quem tinha uma certa cultura ou frequência habitual desses ambientes certamente ia. Talvez não houvesse muito mais além disso. Talvez teatro, e já havia os animatógrafos, onde se passavam peças curtas. Então, era natural que eles se encontrassem na Brasileira.

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Onde está o Pessoa? (2023)

Aliás, o concerto que aparece no filme foi um evento esgotado, muito disputado. Para reconhecer as pessoas, precisei fazer um trabalho meticuloso de pesquisa em documentos antigos, revistas como a Ilustração Portuguesa, revistas musicais, biografias, fotobiografias e sites, procurando pessoas que viveram em Lisboa naquela época para verificar se correspondiam às imagens que encontrava. Foi um trabalho que também dependeu de insights.

Por exemplo, por vezes folheava uma revista e de repente via uma ilustração que reconhecia, associando-a a uma pessoa que conhecia da vida real ou do filme. O inverso também aconteceu, procurando no filme pessoas que eu conhecia. Assim, foi um processo que se estendeu ao longo de meses e anos, porque mesmo depois de terminar o filme na forma atual, continuei a descobrir mais pessoas e informações.

Há mais pessoas para além daquelas que apresenta no filme? Descobriu mais alguma após terminar o filme?

Há mais uma coisa. Por exemplo, fiz algumas descobertas depois de terminar o filme (porque os filmes não podem ser feitos e refeitos), o que é um trabalho contínuo e exigente. O percurso não termina com o filme, ele continua.

Quanto ao filme, já descobri muitas coisas. Por exemplo, encontrei a Florbela Espanca, que na altura não a identifiquei. No entanto, um espectador que saiba disso hoje poderá possivelmente identificá-la quando ela aparecer.

Julgo ter lido Florbela Espanca nos exemplos dados no press release do filme, mas não recordava de a ter visto.

Pois é, mas isso faz parte das conversas, não é verdade? Posso dizer onde a Florbela está. Talvez se lembre. Há um momento no início em que digo: "O casal feliz.”, é ela. Eu estava atenta, mas é verdade que não esperava descobrir todos esses famosos. Para mim, eles eram todos anónimos, como qualquer multidão, seja hoje ou em outra época. Estava mais curiosa para entender o comportamento das pessoas diante da câmara, como elas se mostram interprerlativas. Queria capturar esses momentos de vida entusiástica. Depois, aos poucos, foram surgindo os famosos que encontrava. O primeiro que tocou particularmente no meu percurso foi o António Silva. Foi o primeiro que vi.

Sim, o homem fardado!

Bombeiro, de fato. Então, vejo o homem com aquela farda e penso: "António Silva!”. Volto atrás, exatamente como fiz na minha investigação, quase da mesma maneira como as coisas aconteceram. Claro, tive que condensar um pouco.

É curioso ver no seu filme, a relação das pessoas, desta época, em relação a uma câmara. Hoje a nossa interação é completamente diferente …

Sim, comportavam-se como crianças …

Exato …

Isso suponho que tenha a ver com a novidade que era uma câmara a filmar pessoas na rua. Hoje em dia, ninguém pararia para ver ou até...

Hoje, a maioria evitaria a câmara …

Naquela época, a novidade por si só devia ser suficiente para deixar as pessoas fascinadas. Quando as filmagens eram feitas, o que não era muito frequente, era costume apresentar esses filmes nos animatógrafos ou em outros locais. Provavelmente as pessoas que estavam presentes eram filmadas sem saber exatamente para quê, mas esperavam ansiosamente para verem a si mesmas na semana seguinte.

Estas imagens datam do ano 1913, décadas depois do primeiro “filme” português …

Sim, o realizado por Aurélio Paz de Oliveira em 1896 [“Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”]. Naquela época [em 1913], ocasionalmente viam-se filmes estrangeiros, além de curtas-metragens, onde as pessoas iam principalmente para ver aquela ‘coisa’ espantosa que era a imagem animada. O cinema naquele tempo encantava e intrigava, assim como hoje a inteligência artificial nos intriga. No entanto, hoje em dia temos que lidar com ‘coisas’ que nos assustam, talvez, a mim assustam um pouco.

Havia uma sensação de novidade naquela época, era isso que queria dizer. As atitudes das pessoas podem revelar ou refletir isso. Embora muita coisa daquela época já não se consiga explicar exatamente, pois eram filmes mudos, e por isso, nós não sabemos o que as pessoas diziam. Estou à espera de que alguém com dotes de leitura labial me possa ajudar a decifrar.

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Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta (2017)

Saímos agora do filme … poderia-me falar um pouco sobre “Cinema Português - Um País Imaginado”, o seu livro-tese?

Então, esse livro, que foi publicado há aproximadamente 12 anos, foi baseado na minha tese de doutoramento, concluída cerca de 14 ou 15 anos atrás. Ele realiza uma análise abrangente de um período da história do cinema português, geralmente situado entre 1950 e 1980, com algumas variações devido à natureza fluida do tempo, da história e da vida em geral. Para efeitos metodológicos e para concluir a tese de maneira robusta, foi necessário estabelecer limites claros.

O livro tem como corpo somente as longas-metragens de ficção ambientadas na contemporaneidade, refletindo o mundo atual, e não em filmes históricos. Além de analisar as representações gerais, explora os temas e o contexto cultural desses filmes. Examina como Portugal é retratado ao longo do tempo e como esse retrato evolui nas produções cinematográficas. Não se restringe apenas a uma análise das representações, mas também investiga a evolução do cinema em si, a sua linguagem e estética, o que reflete diferentes maneiras de pensar e de ver o mundo.

Vim cerca de 200 filmes integralmente para conceber essa tese. [risos]

Essa relação com o país que estamos a ver, e com o mundo, é muito interessante. Você realizou um filme chamado "Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta", sobre Manuel Guimarães, realizador com uma visão muito ligada ao neorrealismo da época. Poderia-me falar sobre esse filme como também sobre Manuel Guimarães, que me parece um cineasta que, por mais tentam resgatar a sua obra, nunca conseguem plenamente.

Mas há muita gente hoje em dia que aprecia o Manuel Guimarães! E eu os aprecio bastante [os filmes]. Eles têm sido revisitados ao longo do tempo. Houve um período nos anos, se não me engano, 80 ou 90 … talvez nos anos 90 [em 1997], em que a Cinemateca fez um ciclo dos filmes do Manuel Guimarães, exclusivamente dedicado: "A Travessia do Deserto", um título muito adequado. Essa foi a travessia que ele enfrentou nos anos 50, quando tentava fazer cinema interessante tanto socialmente quanto cinematograficamente, mas enfrentava a censura e a falta de recursos. Mesmo assim, ele conseguiu produzir algo significativo.

Por outro lado, ele faleceu em 1975, após a Revolução. Por isso, a sua sequência de carreira não se deu como esperado. Mais tarde, começaram a surgir os DVDs, uma coisa mais recente, talvez nos anos… 2009, 2010, mas posso estar errada em relação às datas.

Não estou a duvidar da sua dedicação a Manuel Guimarães, sei fez curadoria à exposição [com pesquisa de Carlos Braga, Miguel Cardoso e Rafael Prata.] que aquando no mais “recente” ciclo do cineasta na Cinemateca [em 2015]. O que refiro é este esquecimento que parece ainda envolver Guimarães, por exemplo, deu-se um gesto de reavaliação de António Macedo que parece, hoje em dia, ter dado frutos em relação à sua deixada obra.

Devo dizer que fiz um grande esforço para recuperar Manuel Guimarães, pois acredito que era um bom cineasta e que, se a sua obra não é perfeita, foi devido às condições adversas e às lutas que teve de enfrentar. Todos os seus filmes foram censurados, exceto o último [“Cântico Final”, 1976], que não foi cortado, mas que ele não conseguiu terminar porque morreu. A obra é um reflexo de uma vida difícil, e considero isso de grande valor. O que restou das suas intenções ainda possui qualidade, apesar de tudo.

Tenho uma teoria, que não posso comprovar, mas acredito que existe uma certa rejeição a Manuel Guimarães por ele ser visto como comunista ou esquerdista. Ele, de facto, tinha afinidades com os neo-realistas comunistas, como Alves Redol, por exemplo, e com Manuel da Fonseca.

Ele tinha desejo de adaptar a “Seara de Vento” do Fonseca, certo?

Sim. Ele tinha um projeto de adaptar o livro, que nunca chegou a realizar. Projetos havia muitos naquela época terrível. Hoje em dia também há muitos projetos; embora os tempos não sejam tão terríveis, continuam a ser desafiantes, de uma forma ou de outra. Faz parte do sonho, no fundo. Em vez de vermos isso como obstáculos, devemos ver como sonhos. Era o que Manuel Guimarães fazia. Ele usava, aliás, muito essa palavra, "sonho".

A mim, parece-me que existe um preconceito, uma rejeição inicial por ele ser esquerdista ou por estar associado a isso. Não sei se é, mas é o meu palpite.

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Saltimbancos (Manuel Guimarães, 1952)

Mas em relação ao seu documentário - “Nasci com a Trovoada”?

Então, esse filme era um projeto do Manuel Guimarães, que ele queria realizar como filme autobiográfico. Nos seus documentos, que listava os filmes que pretendia fazer e sobre os quais falava em cartas aos amigos, havia alguns esboços. No início, não escreveu sequências e planos, mas redigiu algo que corresponde a uma voz off, uma voz interior na primeira pessoa.

Utilizei esses documentos e outros materiais pessoais dele, além dos seus filmes, para construir essa autobiografia póstuma. Portanto, é uma falsa autobiografia, mas como é tudo feito com materiais dele, fui muito purista: tudo o que está ali é Manuel Guimarães remixado por mim.

E o que é feito desse filme?

Não consegui distribuir o filme nem que a televisão o passasse. E acho que a RTP tinha a obrigação de passar um documentário que é sobre o cinema português, como tem passado tantos outros. Tinha essa obrigação moral e estatutária, digamos, de serviço público, de passar filmes portugueses, especialmente os que são sobre a nossa história e cultura. A RTP deve isso ao cinema nacional.

Foi dado algum motivo a essa rejeição?

Houve muitos emails de um lado para o outro, conversas e negociações. Chegaram a dizer que sim, mas o sim nunca se concretizou. Acabei por desistir, de certo modo. Desisti de insistir ou de persistir, mas tenho o filme disponível para quem quiser ver. Para divulgar o filme, gosto de mostrar aos interessados.

Mas voltando à reavaliação de Manuel Guimarães, falou-me do seu quadrante político-ideológico, mas também se associa a fraca adesão do público português ao seu trabalho pelo facto de os anos 50 terem sido uma década difícil para o nosso cinema. Guimarães começou nessa altura a dar os primeiros passos na realização e fez isso lindamente com "Saltimbancos", três anos antes de "La Strada" de Fellini.

Já que menciona isso, é interessante que recentemente escrevi um ensaio onde li e analisei os projetos de filmes do Manoel de Oliveira, aqueles que ele teve nas décadas de 1930, 1940 e 1950, mas que não pôde realizar. Todo esse espólio está atualmente disponível na Casa do Cinema no Porto e fui lá consultar esses guiões. Há um deles que se chama "Saltimbancos", que li atentamente e comparei com o filme do Guimarães.

Esse projeto é de '44 ou '45, não tenho a certeza, mas esse meu texto já está publicado. Para além desse guião, tem planificação, orçamentos, tudo mesmo ‘preparadinho’, só que o filme nunca foi realizado. Era um projeto muito duro, muito neorrealista antes do tempo, e com muitas semelhanças na crueldade humana retratada em “La Strada” de Fellini, lançado 10 anos depois. É impressionante.

Isto é durante a Guerra que ele faz este projeto, portanto, são formas de olhar para o mundo e de construir uma visão, uma história dentro desse mundo, com preocupações, neste caso, acerca da sociedade, do tratamento dado às crianças e da vida errante e difícil dos saltimbancos.

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Manoel de Oliveira

Falava-se disso na época nos jornais, e, por volta de 1945, surgiu o romance "O Circo" de Leão Penedo, que depois foi adaptado pelo próprio escritor para o "Saltimbancos" de Guimarães. Portanto, na mesma altura, havia um escritor em Lisboa e um cineasta no Porto a abordar o mesmo assunto. Além disso, existem representações de "Saltimbancos" na pintura, embora não se saiba se essas datam da mesma época. Às vezes, há ideias que andam no ar, são preocupações comuns. Fellini, mais tarde, em outro contexto, também abordou temas semelhantes.

Só para concluir sobre Manuel Guimarães, fiz aquele documentário ”Nasci com a Trovoada” apenas com materiais de arquivo. No entanto, também realizei cerca de vinte entrevistas com pessoas que trabalharam com Manuel Guimarães. Se não tivesse encontrado o arquivo na Cinemateca, teria utilizado apenas as entrevistas, mas não consegui juntar ambos os elementos. Assim, metade do filme das entrevistas está montado, enquanto a outra metade aguarda há 10 anos. É isso que pretendo fazer a seguir.

Debates sobre Cinema Português, para que vos quero?

Hugo Gomes, 20.06.24

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Na rodagem de "Revolução (Sem) Sangue" de Rui Pedro Sousa, até à data o filme português com mais espectadores em 2024

Desta vez tenho que tirar o chapéu a Jorge Mourinha por esta pertinente (mais disto, por favor) crónica influenciada pelos debates (nada enriquecedores) dos Encontros do Cinema Português, promovido pela NOS Cinemas. O último deste segmento que presenciei foi o de 2020, que após despachar filmes portugueses sem eira nem beira, culpavam os filmes pelos seus fracassos e o facto de uma representante da NOS (julgo ser a mesma que Mourinha referencia no seu texto), afirmar que a distribuidora / exibidora é um empresa que vende "filmes para millennials" (é que nem sabem sequer o que é um millennial), o que prova que há um problema nestas chefias.

Sobre o cinema português e o seu público, o tema mais complexo do que encostar as produções à delegacia ou paternalizar os espectadores com os “que eles querem ver”, traduzindo-os por comédias de teor televisivo. Ou mais grave, um representante da RTP a tratar filmes com conteúdos e a maldizer dos “festivais”.Há muito por onde começar e são poucos os parágrafos para acabar, mas uma ‘coisa’ é certa, tivemos obras de Manoel de Oliveira em pleno anos 90 que fizeram mais espectadores que “Soares é Fixe”, portanto, como explicar isto sem ser o de apontar o dedo aos mesmos?  

Fica a minha homenagem: Os Filme!!

Hugo Gomes, 14.06.23

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A Filha da Mãe (João Canijo, 1991)

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Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989)

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Pesadelo Cor de Rosa (Fernando Fragata, 1998)

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Rosa Negra (Margarida Gil, 1992)

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O Sangue (Pedro Costa, 1990)

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O Convento (Manoel de Oliveira, 1995)

 

Teresa Ferreira (1940 - 2023) colorista 

Preencher um silêncio em "Os Faroleiros": uma conversa com o compositor Daniel Moreira

Hugo Gomes, 30.03.23

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Realizado, escrito, produzido e protagonizado por Maurice Mariaud, “Os Faroleiros” (1922) foi durante tempos considerado um dos projetos mais ambiciosos concretizados em solo português. O “drama-documentário”, desta forma descrito, apresenta-nos um trio amoroso rompante entre “ondas de paixão e de ódio”, decorrendo numa vila costeira “guardada” por um pujante farol. Aqui, uma bela órfã, Rosa (Abegaida De Almeida), é acolhida pelo tio, o faroleiro João Vidal (o próprio Mariaud), que nutre sentimentos por ela. Contudo, o coração da moça também é disputado por António Gaspar (Castro Neves), o outro faroleiro, sedento de uma mortal obsessão. O filme culminará num confronto entre os dois homens, “barricados” na “torre luminosa” e lutando pela memória de um amor perdido, tentando com isto sobreviver numa prisão marítima algures entre o espiritual e o delirante. 

“Os Faroleiros”, raridade preservada (estando várias décadas desaparecido, até ser reencontrado em 1993 no Palácio do Bolhão, no Porto) e restaurada no âmbito do FILMar, projeto operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa, parceira e impulsionadora desta iniciativa, com o apoio do programa EEA Grants 2020/2024, encontra nova vida nos grandes ecrãs. Primeiro no Batalha [Porto] e depois em Lisboa na Culturgest [31.03, pelas 21h00], num concerto orquestral conduzido e originalmente composto por Daniel Moreira e interpretado ao vivo pelo quarteto de cordas The Arditti Quartet.  

Em preparação com o espectáculo a decorrer na capital, conversei com o compositor e investigador musical sobre esta encomenda, e ainda abordando a relação Herrmann / Hitchcock e a escassa tradição de banda-sonora à portuguesa. 

A minha primeira questão soará um bocado “vaga”, mas gostaria de entender a sua relação com o Cinema e com a Música. Se foi através da Música que se relacionou com o Cinema, ou se pelo Cinema se relacionou com a Música?

Desde há muito que tenho uma forte relação com o Cinema. Embora seja músico, de formação e de profissão, costumo dizer que gosto tanto do Cinema como da Música. E na verdade isso possui uma dimensão pessoal, o de gostar de ver filmes e de conhecer o que se faz no mundo do cinema, como também reflete no meu trabalho - porque para além de ser compositor sou também investigador em música, em áreas mais teóricas - cujo foco principal é a música de cinema e a relação entre música e o cinema. 

Tenho projetos, sobretudo, sobre o trabalho de Bernard Herrmann, principalmente com Alfred Hitchcock, e sobre a noção de musicalidade dos filmes do David Lynch. Do ponto de vista da composição, na verdade, este projeto foi fantástico, porque desejava essa experiência de escrita musical para cinema. Tinha alguns projetos que infelizmente não chegaram ao fim, e este é o primeiro que efetivamente chega a concretizar-se.

Queria que me falasse um pouco sobre esse seu trabalho acerca do Bernard Herrmann e até que ponto não podemos desassociar o compositor do cinema de suspense do Hitchcock?

A minha investigação sobre Bernard Herrmann começou pela sua colaboração com Hitchcock, e o que se encontra publicado circula entre os seus trabalhos em torno de “Vertigo” e de “Psycho”, enfim, hoje soam como exemplos previsíveis e supra-estudados, possivelmente os filmes mais estudados dentro do Cinema, não apenas dentro da sua área musical. Mas ao fazer essas investigações e sobretudo a do “Psycho”, acabei por sentir a necessidade, também fui encorajado na altura pelo editor da revista em que o artigo foi publicado, abranger mais sobre o trabalho do Bernard Herrmann no cinema, e não restringi-lo a somente Hitchcock. Este aprofundamento permitiu-me reconhecer particularidades do estilo-modelo, e a partir do último ano, tal estudo começou a abrir outras portas. Encontro-me, atualmente, numa fase de tentar conhecer todas as bandas sonoras da autoria de Herrmann, o qual contamos com por volta de 50 partituras, e com isto desenvolver uma pesquisa mais transversal, porque embora ele seja reconhecido pelas colaborações com Hitchcock, que contabilizam 6 ou 7 obras, ele ainda trabalhou com muitos outros realizadores, e em outros géneros, como filmes de aventura, e de ficção científica.

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Daniel Moreira / Foto.: Culturgest

… e trabalhou com Orson Welles em “Citizen Kane”.

Com o Orson Welles também. Essa colaboração também é muito importante. E depois tem filmes assim, soltos, que na minha opinião possuem uma música igualmente fantástica, por exemplo, “Sisters”, do Brian de Palma, uma banda sonora extraordinária, ou até mesmo "The Day The Earth Stood Still" de Robert Wise. E, portanto, agora estou numa fase de perceber um ‘bocadinho’ melhor o seu trajeto artístico, e muito fora de Hitchcock. Embora, a partir de certa altura, essa ligação tenha sido tão marcante que alguns realizadores desejaram trabalhar com ele devido essa referência de colaboração com Hitchcock

Portanto, é incontornável essa colaboração, até porque transformou o cinema do Hitchcock. O seu cinema não seria mesmo sem essa colaboração.

Em relação a Brian De Palma, há todo um sentido nessa repescagem, visto que Hitchcock era em grande parte o seu modelo de Cinema.

Sim, obviamente.

Tinha uma lógica de seguir essas pisadas. Agora, passando aos “Os Faroleiros”, gostaria que me falasse um pouco deste trabalho. Estamos a falar de um filme mudo, hoje considerado uma raridade, e que durante vários anos esteve perdido, tendo sido posteriormente recuperado, e remasterizado.

Certo.

E sobre “Os Faroleiros”? Teve alguma referência sobre a sua composição musical ou criou algo em termos de raiz?

Sim, foi uma questão que me levou a ter muita reflexão no início, mas em relação a este filme não se conhecia nenhuma banda-sonora autêntica e original da época. Penso que nunca há tido. Soube até, por falar com outras pessoas que têm investigado isso, que na altura dos anos 20, em Portugal, alguns filmes tiveram composições originais. “Os Lobos” de Rino Lupo, por exemplo, teve uma partitura original. 

Consultei algumas dessas partituras para tentar perceber o tipo de música que se fazia na altura no nosso país. Não sei se isto teve uma influência muito direta na música que escrevi, mas constatei que era habitual na década de 20’, quando havia música previamente composta para filmes, eram sobretudo formações de música de câmara e não tanto para orquestra. Por exemplo, quinteto com piano, o quarteto de cordas convencional com piano, ou por vezes formações parecidas com essas, mais um ou dois instrumentos. E desse ponto de vista, achei curioso que a encomenda vinda do Batalha, no Porto, tenha sido uma proposta de escrita para quarteto de cordas. Uma ligação, digamos, à tradição, pelo menos ao tipo de formação existente em Portugal na época.

E, portanto, essa referência foi para mim importante. Na verdade, fiquei satisfeito, em medida que fui avançando no processo, que tivesse seguido para uma formação de câmara e não para uma formação mais larga de grande ensemble [pequeno agrupamento de intérpretes que pode englobar instrumentistas e/ou cantores] ou de orquestra, porque acho que um filme como este … que em certa maneira, é um drama de câmara no mesmo sentido que os filmes do Bergman. Não é que seja muito bergmaniano, é, contudo, bastante focado, pelo menos da maneira na relação entre três ou quatro personagens. Aliás, há uma parte substancial do filme em que até só temos duas personagens. E portanto, pareceu que ter um ensemble relativamente pequeno casava melhor com essa atmosfera do que ter um ensemble muito maior.

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Esse último ato que você falou, quando as duas personagens estão “aprisionadas” no farol, num perverso jogo de “mata-mata”, julgo ser o ponto auge do filme.

Tem uma dimensão quase expressionista, não é? Muito forte, claustrofóbica e violenta, na verdade. Que, musicalmente, foi muito desafiador e para alguém como eu que gosto de Bernard Herrmann e das emoções mais sombrias que era tão exímio ao retratar musicalmente, tais nuances foram inspiradoras. O filme é interessante, porque reúne atmosferas bastantes diferentes, se no final alberga esse tom quase expressionista, o início é-nos muito diferente. Essa diversidade atmosférica converte-se num ambiente sugestivo para a música. Ao mesmo tempo que se tem esta noção de que atmosfera vai para além da música que se cria, do mesmo modo que esta vai-se definindo consoante a composição musical criada. Se impusesse outra partitura, ou até mesmo outro compositor, a atmosfera nunca seria a mesma. Uma das vantagens em ver cinema mudo musicado do que sem música alguma, as experiências são díspares. 

Até à data desta conversa, o Daniel conduziu a sessão do Batalha, e encontra-se pronto para o da Culturgest. Ficaremos por aqui nesta experiência de composição para cinema ou existe um “bichinho” para continuar?

Vou dizer que SIM [risos]. Só que não depende de mim, e sim das instituições que a promovem. Mas sim, foi uma experiência e tanto, e muito gratificante, a de compor uma música para um filme raro e histórico cuja sua partitura original desconhece-se, foi um processo enriquecedor. 

E quanto a banda-sonoras de filmes contemporâneos?

Sinceramente, gostava de avançar numa proposta dessas se alguma oportunidade surgisse. Tenho a consciência que fazer música para um filme sonoro seria muito diferente para um mudo, por várias razões, uma delas é que não tive que negociar a música com o realizador [risos] … por razões óbvias, não é? Enquanto num filme sonoro teria, o que significaria menos liberdade mas que me daria um grau de colaboração o qual gostaria de experimentar. Por outro lado num filme mudo, à partida, o único “som” que se ouvirá será o da música que compus, e num ‘sonoro’ teria que aliar-me a diálogos, sound design e sonoplastia. 

De certa forma, o meu trabalho com “Os Faroleiros” também serviu para compensar essa falta de sonoplastia, dar essa sensação através da música, essencial num filme tão forte nesse ponto de vista, com todo aquele ambiente marinho invocado e os muitos planos expressivos do mar. Não de maneira direta, mas o que tentei fazer foi, através dos instrumentos, sugerir os sons que poderíamos ouvir naquela atmosfera. Obviamente que num ‘sonoro’, a música iria ter essa função, só que estaria em permanente diálogo com os outros elementos sonoplásticos. 

Outra diferença, é que num ‘mudo’ a música necessita ser quase onipresente, se o filme tem duração de 80 minutos são 80 minutos de música ininterrumpida. Já o ‘sonoro’, os outros elementos seriam destacados, por vezes ganhando prioridade sobre a música, ou, por vezes dispensá-la. Outro factor é a gestão dos silêncios, o ‘sonoro’ trabalha o silêncio, coisa que o ‘mudo’ não faz de maneira a não quebrar o seu vínculo musical / visual. 

Pegando novamente na banda-sonora de filmes “falantes”, e num prisma português, não pude deixar de reparar, salvo algumas excepções, que o nosso cinema é pobre em partituras originais. Novamente friso, salvo algumas excepções como alguns trabalhos do Rodrigo Leão, mas tenho notado as enésimas colectâneas de clássicos presentes em muitas das nossas obras, nomeadamente a quantidade de vezes que ouço o “Moonlight Sonata” de Beethoven a tocar. De um modo geral, não possuímos uma tradição de banda-sonora cinematográfica?

Não conheço tão profundamente o universo, mas existem várias excepções, recordo, por exemplo, da colaboração de Manoel de Oliveira com João Paes nos anos 80 e que foram responsáveis pelo original e fantástico “Os Canibais” (1988), um filme de ópera absolutamente único no Mundo. Mas fora mesmo desse registo operático, tens também o “Francisca” (1981), com uma partitura bastante original … e pelo que sei o Daniel Bernardes tem colaborado com o Botelho. Ou seja, as excepções são muitas, mas é verdade que existe essa prática em abundância, o João César Monteiro recorria maioritariamente à música clássica pré-existente … quer dizer, não só clássica, e sim pré-existente. O que também é toda uma arte fantástica, crítica uma obra dessas é como crítica uma obra-prima do Kubrick

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"Os Canibais" (Manoel de Oliveira, 1988)

Claro, claro, não estou a criticar o gesto em si, nem a música selecionada, estou com isto a constatar essa baixa tendência em criar bandas-sonoras próprias. Visto que falou do João Paes e do Oliveira, também gostaria de colocar na conversa o rock progressivo de António de Sousa Dias no badalado “Os Abismos da Meia-Noite” de António de Macedo, que julgo ter sido posteriormente editado em álbum. 

E quanto a novos projetos? 

Sobre investigação posso falar à vontade, já os de composição deixo em abstracto porque ainda não foram anunciados publicamente. Os de investigação são mais aos menos as duas alíneas referidas. O primeiro, que é o de compreender o estilo e influência de Bernard Herrmann (que talvez origine um livro daqui a uns anos) e segundo, não mais sobre um compositor, e sim de um realizador, David Lynch. Uma ideia de musicalidade envolto nos seus filmes, e nas séries televisivas, é um pouco pegar no que ele acredita, ou seja, segundo Lynch as suas obras são como partituras musicais, e isso é comprovado através deles. Na verdade ainda estou em fase, de levar os meus artigos a conferências, com isto recolher feedback das pessoas desse campo, tendo a ideia máxima de transformá-lo num livro.

Do ponto vista da composição, tenho várias ‘coisas’! Sou de formação clássica contemporânea, logo todos os meus projetos não são todos necessariamente relacionados com o cinema. Tenho um projeto que envolve coro e orquestra, e talvez eletrônica, e ainda existe outro que coloca ópera e ecrã. Peço desculpa, mas tenho que ser muito abstrato aqui. [risos]   

Irene Pappas (1926 - 2022), uma deusa grega para todo o Mundo

Hugo Gomes, 14.09.22

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Party (Manoel de Oliveira, 1996)

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The Lake of Sighs (Grigoris Grigoriou, 1959)

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The Brotherhood (Martin Ritt, 1968)

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Z (Costa-Gavras, 1969)

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The Guns of Navarone (J. Lee Thompson, 1961)

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Zorba The Greek (Michael Cacoyannis, 1964)

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Mohammed, Messenger of God / The Message: The Story of Islam (Moustapha Akkad, 1976)