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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Preencher um silêncio em "Os Faroleiros": uma conversa com o compositor Daniel Moreira

Hugo Gomes, 30.03.23

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Realizado, escrito, produzido e protagonizado por Maurice Mariaud, “Os Faroleiros” (1922) foi durante tempos considerado um dos projetos mais ambiciosos concretizados em solo português. O “drama-documentário”, desta forma descrito, apresenta-nos um trio amoroso rompante entre “ondas de paixão e de ódio”, decorrendo numa vila costeira “guardada” por um pujante farol. Aqui, uma bela órfã, Rosa (Abegaida De Almeida), é acolhida pelo tio, o faroleiro João Vidal (o próprio Mariaud), que nutre sentimentos por ela. Contudo, o coração da moça também é disputado por António Gaspar (Castro Neves), o outro faroleiro, sedento de uma mortal obsessão. O filme culminará num confronto entre os dois homens, “barricados” na “torre luminosa” e lutando pela memória de um amor perdido, tentando com isto sobreviver numa prisão marítima algures entre o espiritual e o delirante. 

“Os Faroleiros”, raridade preservada (estando várias décadas desaparecido, até ser reencontrado em 1993 no Palácio do Bolhão, no Porto) e restaurada no âmbito do FILMar, projeto operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa, parceira e impulsionadora desta iniciativa, com o apoio do programa EEA Grants 2020/2024, encontra nova vida nos grandes ecrãs. Primeiro no Batalha [Porto] e depois em Lisboa na Culturgest [31.03, pelas 21h00], num concerto orquestral conduzido e originalmente composto por Daniel Moreira e interpretado ao vivo pelo quarteto de cordas The Arditti Quartet.  

Em preparação com o espectáculo a decorrer na capital, conversei com o compositor e investigador musical sobre esta encomenda, e ainda abordando a relação Herrmann / Hitchcock e a escassa tradição de banda-sonora à portuguesa. 

A minha primeira questão soará um bocado “vaga”, mas gostaria de entender a sua relação com o Cinema e com a Música. Se foi através da Música que se relacionou com o Cinema, ou se pelo Cinema se relacionou com a Música?

Desde há muito que tenho uma forte relação com o Cinema. Embora seja músico, de formação e de profissão, costumo dizer que gosto tanto do Cinema como da Música. E na verdade isso possui uma dimensão pessoal, o de gostar de ver filmes e de conhecer o que se faz no mundo do cinema, como também reflete no meu trabalho - porque para além de ser compositor sou também investigador em música, em áreas mais teóricas - cujo foco principal é a música de cinema e a relação entre música e o cinema. 

Tenho projetos, sobretudo, sobre o trabalho de Bernard Herrmann, principalmente com Alfred Hitchcock, e sobre a noção de musicalidade dos filmes do David Lynch. Do ponto de vista da composição, na verdade, este projeto foi fantástico, porque desejava essa experiência de escrita musical para cinema. Tinha alguns projetos que infelizmente não chegaram ao fim, e este é o primeiro que efetivamente chega a concretizar-se.

Queria que me falasse um pouco sobre esse seu trabalho acerca do Bernard Herrmann e até que ponto não podemos desassociar o compositor do cinema de suspense do Hitchcock?

A minha investigação sobre Bernard Herrmann começou pela sua colaboração com Hitchcock, e o que se encontra publicado circula entre os seus trabalhos em torno de “Vertigo” e de “Psycho”, enfim, hoje soam como exemplos previsíveis e supra-estudados, possivelmente os filmes mais estudados dentro do Cinema, não apenas dentro da sua área musical. Mas ao fazer essas investigações e sobretudo a do “Psycho”, acabei por sentir a necessidade, também fui encorajado na altura pelo editor da revista em que o artigo foi publicado, abranger mais sobre o trabalho do Bernard Herrmann no cinema, e não restringi-lo a somente Hitchcock. Este aprofundamento permitiu-me reconhecer particularidades do estilo-modelo, e a partir do último ano, tal estudo começou a abrir outras portas. Encontro-me, atualmente, numa fase de tentar conhecer todas as bandas sonoras da autoria de Herrmann, o qual contamos com por volta de 50 partituras, e com isto desenvolver uma pesquisa mais transversal, porque embora ele seja reconhecido pelas colaborações com Hitchcock, que contabilizam 6 ou 7 obras, ele ainda trabalhou com muitos outros realizadores, e em outros géneros, como filmes de aventura, e de ficção científica.

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Daniel Moreira / Foto.: Culturgest

… e trabalhou com Orson Welles em “Citizen Kane”.

Com o Orson Welles também. Essa colaboração também é muito importante. E depois tem filmes assim, soltos, que na minha opinião possuem uma música igualmente fantástica, por exemplo, “Sisters”, do Brian de Palma, uma banda sonora extraordinária, ou até mesmo "The Day The Earth Stood Still" de Robert Wise. E, portanto, agora estou numa fase de perceber um ‘bocadinho’ melhor o seu trajeto artístico, e muito fora de Hitchcock. Embora, a partir de certa altura, essa ligação tenha sido tão marcante que alguns realizadores desejaram trabalhar com ele devido essa referência de colaboração com Hitchcock

Portanto, é incontornável essa colaboração, até porque transformou o cinema do Hitchcock. O seu cinema não seria mesmo sem essa colaboração.

Em relação a Brian De Palma, há todo um sentido nessa repescagem, visto que Hitchcock era em grande parte o seu modelo de Cinema.

Sim, obviamente.

Tinha uma lógica de seguir essas pisadas. Agora, passando aos “Os Faroleiros”, gostaria que me falasse um pouco deste trabalho. Estamos a falar de um filme mudo, hoje considerado uma raridade, e que durante vários anos esteve perdido, tendo sido posteriormente recuperado, e remasterizado.

Certo.

E sobre “Os Faroleiros”? Teve alguma referência sobre a sua composição musical ou criou algo em termos de raiz?

Sim, foi uma questão que me levou a ter muita reflexão no início, mas em relação a este filme não se conhecia nenhuma banda-sonora autêntica e original da época. Penso que nunca há tido. Soube até, por falar com outras pessoas que têm investigado isso, que na altura dos anos 20, em Portugal, alguns filmes tiveram composições originais. “Os Lobos” de Rino Lupo, por exemplo, teve uma partitura original. 

Consultei algumas dessas partituras para tentar perceber o tipo de música que se fazia na altura no nosso país. Não sei se isto teve uma influência muito direta na música que escrevi, mas constatei que era habitual na década de 20’, quando havia música previamente composta para filmes, eram sobretudo formações de música de câmara e não tanto para orquestra. Por exemplo, quinteto com piano, o quarteto de cordas convencional com piano, ou por vezes formações parecidas com essas, mais um ou dois instrumentos. E desse ponto de vista, achei curioso que a encomenda vinda do Batalha, no Porto, tenha sido uma proposta de escrita para quarteto de cordas. Uma ligação, digamos, à tradição, pelo menos ao tipo de formação existente em Portugal na época.

E, portanto, essa referência foi para mim importante. Na verdade, fiquei satisfeito, em medida que fui avançando no processo, que tivesse seguido para uma formação de câmara e não para uma formação mais larga de grande ensemble [pequeno agrupamento de intérpretes que pode englobar instrumentistas e/ou cantores] ou de orquestra, porque acho que um filme como este … que em certa maneira, é um drama de câmara no mesmo sentido que os filmes do Bergman. Não é que seja muito bergmaniano, é, contudo, bastante focado, pelo menos da maneira na relação entre três ou quatro personagens. Aliás, há uma parte substancial do filme em que até só temos duas personagens. E portanto, pareceu que ter um ensemble relativamente pequeno casava melhor com essa atmosfera do que ter um ensemble muito maior.

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Esse último ato que você falou, quando as duas personagens estão “aprisionadas” no farol, num perverso jogo de “mata-mata”, julgo ser o ponto auge do filme.

Tem uma dimensão quase expressionista, não é? Muito forte, claustrofóbica e violenta, na verdade. Que, musicalmente, foi muito desafiador e para alguém como eu que gosto de Bernard Herrmann e das emoções mais sombrias que era tão exímio ao retratar musicalmente, tais nuances foram inspiradoras. O filme é interessante, porque reúne atmosferas bastantes diferentes, se no final alberga esse tom quase expressionista, o início é-nos muito diferente. Essa diversidade atmosférica converte-se num ambiente sugestivo para a música. Ao mesmo tempo que se tem esta noção de que atmosfera vai para além da música que se cria, do mesmo modo que esta vai-se definindo consoante a composição musical criada. Se impusesse outra partitura, ou até mesmo outro compositor, a atmosfera nunca seria a mesma. Uma das vantagens em ver cinema mudo musicado do que sem música alguma, as experiências são díspares. 

Até à data desta conversa, o Daniel conduziu a sessão do Batalha, e encontra-se pronto para o da Culturgest. Ficaremos por aqui nesta experiência de composição para cinema ou existe um “bichinho” para continuar?

Vou dizer que SIM [risos]. Só que não depende de mim, e sim das instituições que a promovem. Mas sim, foi uma experiência e tanto, e muito gratificante, a de compor uma música para um filme raro e histórico cuja sua partitura original desconhece-se, foi um processo enriquecedor. 

E quanto a banda-sonoras de filmes contemporâneos?

Sinceramente, gostava de avançar numa proposta dessas se alguma oportunidade surgisse. Tenho a consciência que fazer música para um filme sonoro seria muito diferente para um mudo, por várias razões, uma delas é que não tive que negociar a música com o realizador [risos] … por razões óbvias, não é? Enquanto num filme sonoro teria, o que significaria menos liberdade mas que me daria um grau de colaboração o qual gostaria de experimentar. Por outro lado num filme mudo, à partida, o único “som” que se ouvirá será o da música que compus, e num ‘sonoro’ teria que aliar-me a diálogos, sound design e sonoplastia. 

De certa forma, o meu trabalho com “Os Faroleiros” também serviu para compensar essa falta de sonoplastia, dar essa sensação através da música, essencial num filme tão forte nesse ponto de vista, com todo aquele ambiente marinho invocado e os muitos planos expressivos do mar. Não de maneira direta, mas o que tentei fazer foi, através dos instrumentos, sugerir os sons que poderíamos ouvir naquela atmosfera. Obviamente que num ‘sonoro’, a música iria ter essa função, só que estaria em permanente diálogo com os outros elementos sonoplásticos. 

Outra diferença, é que num ‘mudo’ a música necessita ser quase onipresente, se o filme tem duração de 80 minutos são 80 minutos de música ininterrumpida. Já o ‘sonoro’, os outros elementos seriam destacados, por vezes ganhando prioridade sobre a música, ou, por vezes dispensá-la. Outro factor é a gestão dos silêncios, o ‘sonoro’ trabalha o silêncio, coisa que o ‘mudo’ não faz de maneira a não quebrar o seu vínculo musical / visual. 

Pegando novamente na banda-sonora de filmes “falantes”, e num prisma português, não pude deixar de reparar, salvo algumas excepções, que o nosso cinema é pobre em partituras originais. Novamente friso, salvo algumas excepções como alguns trabalhos do Rodrigo Leão, mas tenho notado as enésimas colectâneas de clássicos presentes em muitas das nossas obras, nomeadamente a quantidade de vezes que ouço o “Moonlight Sonata” de Beethoven a tocar. De um modo geral, não possuímos uma tradição de banda-sonora cinematográfica?

Não conheço tão profundamente o universo, mas existem várias excepções, recordo, por exemplo, da colaboração de Manoel de Oliveira com João Paes nos anos 80 e que foram responsáveis pelo original e fantástico “Os Canibais” (1988), um filme de ópera absolutamente único no Mundo. Mas fora mesmo desse registo operático, tens também o “Francisca” (1981), com uma partitura bastante original … e pelo que sei o Daniel Bernardes tem colaborado com o Botelho. Ou seja, as excepções são muitas, mas é verdade que existe essa prática em abundância, o João César Monteiro recorria maioritariamente à música clássica pré-existente … quer dizer, não só clássica, e sim pré-existente. O que também é toda uma arte fantástica, crítica uma obra dessas é como crítica uma obra-prima do Kubrick

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"Os Canibais" (Manoel de Oliveira, 1988)

Claro, claro, não estou a criticar o gesto em si, nem a música selecionada, estou com isto a constatar essa baixa tendência em criar bandas-sonoras próprias. Visto que falou do João Paes e do Oliveira, também gostaria de colocar na conversa o rock progressivo de António de Sousa Dias no badalado “Os Abismos da Meia-Noite” de António de Macedo, que julgo ter sido posteriormente editado em álbum. 

E quanto a novos projetos? 

Sobre investigação posso falar à vontade, já os de composição deixo em abstracto porque ainda não foram anunciados publicamente. Os de investigação são mais aos menos as duas alíneas referidas. O primeiro, que é o de compreender o estilo e influência de Bernard Herrmann (que talvez origine um livro daqui a uns anos) e segundo, não mais sobre um compositor, e sim de um realizador, David Lynch. Uma ideia de musicalidade envolto nos seus filmes, e nas séries televisivas, é um pouco pegar no que ele acredita, ou seja, segundo Lynch as suas obras são como partituras musicais, e isso é comprovado através deles. Na verdade ainda estou em fase, de levar os meus artigos a conferências, com isto recolher feedback das pessoas desse campo, tendo a ideia máxima de transformá-lo num livro.

Do ponto vista da composição, tenho várias ‘coisas’! Sou de formação clássica contemporânea, logo todos os meus projetos não são todos necessariamente relacionados com o cinema. Tenho um projeto que envolve coro e orquestra, e talvez eletrônica, e ainda existe outro que coloca ópera e ecrã. Peço desculpa, mas tenho que ser muito abstrato aqui. [risos]   

Irene Pappas (1926 - 2022), uma deusa grega para todo o Mundo

Hugo Gomes, 14.09.22

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Party (Manoel de Oliveira, 1996)

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The Lake of Sighs (Grigoris Grigoriou, 1959)

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The Brotherhood (Martin Ritt, 1968)

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Z (Costa-Gavras, 1969)

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The Guns of Navarone (J. Lee Thompson, 1961)

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Zorba The Greek (Michael Cacoyannis, 1964)

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Mohammed, Messenger of God / The Message: The Story of Islam (Moustapha Akkad, 1976)

Tristeza e alegria na vida dos cinéfilos

Hugo Gomes, 16.03.22

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

O medo da juventude parece um sintoma sobretudo manifestado por quem vê o seu cânone ameaçado por eventuais revisionismos ou reavaliações patrimoniais. Inconcebível percepção de que até os mesmos jovens detêm o seu direito de “queimar livros”, apologia de Henri Langlois que parece ser apenas aplicada a qualquer intervenção de Godard e nunca amplificada aos demais. Não que concorde totalmente com a destruição de um pensamento para a criação de um outro em oposição, mas sim, com específica abordagem com a novas gerações para uma conscientização do universo cinematográfico e mais do que impor vontades e visualizações, a possibilidade de escuta, as suas preocupações e visões, a fim de lhes conquistar o interesse. A cinefilia não é um estatuto garantido e estagnado, é um estado de passagem e quem faz desses territórios a sua casa é, inevitavelmente, proclamado cinéfilo como o alpinista que atinge o cume de tão apetecível montanha. Mas que é isso de ser “cinéfilo”? Curiosamente, foi através de um jovem que me fez questionar essa mesma “roupagem” nos últimos dias. 

Apresento-vos Fábio Silva, graduado na Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo no seu currículo algumas curtas - e uma longa-metragem à espera da luz do dia (“Hip to da Hop”, que quase obteve estreia comercial nos cinemas em 2018) – desafiou-me a repensar na definição de cinefilia, exercida para os dias atuais como gerais, num dos seus trabalhos. “Fruto do Vosso Ventre”, a curta motivadora deste texto, arranca com o próprio Silva a expor-se no ecrã, advertindo ao espectador daquilo que veremos e aquilo que a obra se assume, uma colheita memorialista, sobretudo de vídeos caseiros armazenados pelo seu pai, uma cápsula temporal que ostenta um teor genealógico. Essa visita guiada a um passado não tão longínquo, em busca de uma recordação que o une com o seu progenitor intermitentemente ausente, realça uma jornada identitária, tal como sucedera com “Visita ou Memórias e Confissões” de Manoel de Oliveira (o próprio realizador confessou-me essa inspiração, evidente no ponto de partida e de partilha do filme, a casa e que reminiscências ela esconde, no caso de Fábio Silva é a sua habitação de infância no Alto dos Barronhos).

O documento venceu o Prémio de Documentário do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, seguindo o quarto uso do cinema propriamente dito, fora do narrativo, político e estético (este último pode estar “embrulhado" nos anteriormente mencionados, mas isso é conversa para uma outra altura), deparamos com as propriedades arquivistas, a de preservação de uma existência. Silva desejou com este pequeno filme conduzir-se à razão da sua presença neste mundo, tentando, como vontade epifânica, decifrar a personagem fantasmagórica que é o seu pai. Há aqui qualquer coisa que me remeteu aos ditos e lições (muitos que elucidamente adquirem cariz motivacional) do professor de cinema Pedro Florêncio nas suas aulas, em particular numa sessão sobre a Nouvelle Vague, referindo a transgressão destes, na altura, jovens cineastas, que “por vezes para avançar, o filho deve ‘matar’ o pai”. Aqui o verbo matar é figurativo, não o ato grotesco e animalesco, mas o de “cortar” com um pensamento seguidista que nos limita as ideias num só traço, e porque não, a falta de ambição para se restringir a aprovação “paternal”? Fábio Silva não “matou” o seu pai, mas o superou na sua partitura existencial, e através disso, traçou o seu próprio caminho, nem que para isso tenha que reviver, ou melhor, revisitar as suas memórias. 

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Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1993)

A esta altura o leitor, o que tem de relacionado a curta de um jovem com o legado já duradouro e de certa forma paquiderme da cinefilia? Em “Fruto do Vosso Ventre” reti uma frase proclamada pelo próprio realizador / protagonista enquanto remexia e mostrava com o seu devido destaque a coleção de VHS(s) do seu pai: “O meu pai sempre foi cinéfilo sem saber o peso da palavra.” E aí fez o “clique”, não porque obtive uma resposta concreta, mas fiquei por mim a pensar o que é realmente ser um cinéfilo e que consequências isso aplica? Além do mais, que razão Fábio Silva declarou o seu pai como tal sem ter a consciência de o ser?

Palavra resultante da conjugação entre Cinema e Filo (do grego amigo), no sentido mais simplista do termo, o cinéfilo é um apaixonado por cinema, um vocacionado pela arte e na preservação da mesma nem que para isso a sua existência resuma a demonstrações amorosas. Em certa parte, a cinefilia é essa relação, esse ato de amor consumado que provoca vício, tornando os cinéfilos “doentes” e insaciáveis. Para Fábio Silva a devoção pelas imagens por parte do seu pai, seja na arrecadação de memórias filmadas e preservadas que mais tarde são fruto de um ventre cinematográfico (o filme para quem as metáforas fogem), ou seja nessa memória transcrita nos filmes que grava em 8mm ou a que detém na sua coleção de “cassetes”. A cinefilia pode muito ser uma jornada identitária, e cinéfilo essa posição de constante descoberta de si próprio. 

E como em qualquer introspecção, existe um efeito entrópico, um caos que rodeia a cinefilia, mas será também o seu interior desorganizado? Discordo da organização, aliás, afronto-o com a História. Os Cahiers du Cinéma, a génese da Nova Vaga Francesa como bem sabemos, insurgiu-se contra uma canonização, um certo cinema francês, seguindo a ordem de pensamentos de Truffaut, que se instalou numa determinada intelligentsia francesa. Foram eles mesmos que colocaram Chaplin, Hitchcock e Hawks no sistema da canonização, portanto, “mataram os seus pais”, novamente parafraseando Florêncio, ou “queimaram livros” como situa Langlois. 

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Sunrise (F.W. Murnau, 1923)

Portanto, porque é que precisamos de três estágios como neste “artigo” (mais uma confissão que qualquer outra coisa) do site de cinéfilos “À Pala de Walsh”, sem ser o da limitação do próprio conceito de cinefilia? Porquê que quando falamos de decadência do cinema a ligamos umbilicalmente a uma “decadência da cinefilia” como fizera Susan Sontag no seu famoso texto em comemoração dos 100 anos do Cinema? Devemos confinar a cinefilia à nossa própria cinefilia, da mesma forma que Louis Skorecki escreveu na edição de abril de 1978 do Cahiers', um ativismo à chamada “nova cinefilia” que não foi mais do que o realçar da sua autenticada cinefilia?

Através dessa sopa de ideias faço o exercício mental de ir atrás da raiz de tudo. O que me faz duvidar de uma cinefilia canonizada? E a resposta foi encontrada na imagem, aliás, devo antes insinuar, palavras, vindas de Luís Mendonça, na altura somente fundador do referido site “À Pala de Walsh”, hoje já professor e programador da Cinemateca (só para dar a ideia de como nós somos personagens em desenvolvimento), que perante uma audiência, o qual fazia parte, lê um específico texto da autoria de Sabrina D. Marques, também ele relacionado com definição de Cinefilia. Não recordo de grande parte dele (numa pesquisa rápida o encontrei aqui), mas memorizei uma palavra tida como uma única frase - "Anarquia''.   

Cinefilia pode assumir muitas definições, conotações e razões, mas nunca dependerá da disciplina, e essa mesma revela-se na antimatéria da própria liberdade, sobretudo a do olhar. Um olhar treinado não poderá ser um olhar limitado, acima disso, um olhar experiente que saiba contextualizar e a cinefilia integra essa experiência a merecer ser passada para terceiros, porém, densamente incrustada em nós. Não se trata de conflito entre cinefilias, trata-se sim da coexistência dessas mesmas que constituem uma constelação. Como o crítico Ricardo Gross uma vez disse, “o Cinema é familiaridade, é a aproximação para com os outros”. Não é bem a citação correta, mas sim o espectro desse mesmo diálogo. 

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

Falando em diálogos, um outro amigo, Duarte Mata, revelou-me uma fábula de Esopo - “O Vento e o Sol” - em que os dois elementos apostam, qual dos dois conseguem fazer com que um pobre viajante despisse o seu casaco. O Vento começou, soprou e soprou com a intenção do casaco voar. Não resultou e, aliás, o viajante agarrou-o com ainda mais força. O Sol, por sua vez, começou a brilhar intensamente, mais e mais, causando calor, levando, por fim, o errante voluntariamente a retirar o casaco. O Sol ganhou a aposta, e desta metáfora é-nos incutido a seguinte moral - a persuasão tem-se em melhor estima que a força. Ou seja, “obrigar” alguém a ver, no mínimo duas vezes, “Sunrise” de F.W. Murnau antes de este “pegar” numa câmara, não é favor nenhum a uma eventual cinefilia, é antes, incentivar à criação de anticorpos no indivíduo o qual deveríamos cativar. A consequência é a alimentação dum conflito entre cinefilias, aliás a disputa de uma nova em oposição de uma velha e cansada.

E foi com Fábio Silva que a ideia de cinefilia e a inexistência de uma definição total nela me fascinou ainda mais, e é por essa via que reforço a minha fé nos jovens em encontrar o seu caminho pelo Cinema e dedicarem-se à sua devoção do mesmo. Nós, “cinéfilos de velha guarda” como quiserem chamar, estamos presentes para os guiarem, alicerçá-los a redescobrirem-se, não para formatá-los a um modelo idealizado de “cinéfilo” (aquilo que nós poetizamos como tal). 

A convite do YMOTION, moderei um debate entre os jovens realizadores de uma linhagem de curtas vencedoras do festival, entre elas “Fruto do Vosso Ventre”, que foi projetado na Escola Artística de Soares dos Reis, na cidade do Porto, perante um auditório composto segundo as restrições impostas pelo Covid. Sei que abusei do meu tempo, e no final da sessão-conversa dirigi-me à plateia, jovens sobretudo, e desafiei-os ao seguinte: “Se acham que o cinema português não comunica com vocês, o conselho que tenho vos a dar é pegar numa câmara e fazerem o vosso ‘cinema’. Deixar a vossa impressão nele.” Muitos balbuciarão de raiva perante este “ato grotesco” de solicitar o cinema apenas pelo gesto de filmar, mas é um incentivo ao apetite e quem sabe, desse apetite nasça cinéfilos, novos e frescos, assim como novos olhares, possivelmente um novo cinema português. Mas isto é especulação e os cinéfilos foram péssimos em prever o futuro. 

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Durante a Projeção-Conversa do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, na Escola Artística de Soares dos Reis

PS: Neste texto, algo diarista digamos, menciono pessoas. Tal não foi em vão, nem sequer tive a intenção de servir deles como galões de legitimidade para o meu discurso. Apenas achei por bem, num texto sobre cinéfilos, “amigos do cinema”, invocar alguns dos meus amigos e cinéfilos. Porque é através da cinefilia deles que a minha enriquece. 

Na 6ª edição do Close-Up, a Comunidade é o que mais importa!

Hugo Gomes, 14.10.21

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As Tears Go By (Wong Kar-Wai, 1988)

Aquilo que poderia soar a um clube de cinéfilos depressa se transformou num dos mais ascendentes eventos culturais e cinematográficos do país: Close-Up: Observatório de Cinema, uma iniciativa da Casa de Artes de Famalicão, chega à sexta edição, com uma programação fiel à sua génese e igualmente com mais vitalidade.

São filmes, convidados, conversas e eventuais tertúlias pós-projeções: o programador Vítor Ribeiro convidou-me a conhecer as surpresas e ambições de mais uma colheita cinematográfica, com destaque para o cinema de Basil da Cunha (“O Fim do Mundo”, “Até Ver a Luz”) e em dois pólos do cinema asiático, Wong Kar Wai (Hong Kong) e Hong Sang Soo (Coreia do Sul).

O Close-Up arranca a 16 de outubro (sábado) com um filme-concerto dos Sensible Soccers através de dois filmes de Manoel de Oliveira (“Douro Faina Fluvial” e “O Pintor e a Cidade”), e o adeus será com “Metropolis”, o grande clássico de Fritz Lang, acompanhado pelo pianista Filipe Raposo e a Orquestra Sinfónica Portuguesa.

Chegamos a uma 6ª edição de Close-Up, aquilo que poderíamos definir como um espaço cinematográfico e cultural. A primeira questão prende-se na própria formalização e idealização do Close-Up, o que o separa de um festival de cinema, por exemplo?

O Close-up é uma programação da Casa das Artes, o Teatro Municipal de Famalicão. É um Observatório de Cinema instalado no Teatro, que apesar de apresentar um momento intenso de propostas [em Outubro], permanece na agenda da Casa das Artes durante todo o ano, o que fortalece a sua ligação à comunidade, com os vários públicos. Por exemplo, com a comunidade escolar, com quem estabelece um diálogo estreito e permanente. Organizado em panoramas, que articula produção do presente e história do cinema, também privilegia um programa orientado por um mote, com várias paisagens, o dar a ver.

A primeira sessão deste Close-Up é o filme de Philipp Hartmann – “66 Cinemas” – que se centra na viagem de um cineasta por 66 cinemas por toda a Alemanha para mostrar e debater sobre o seu mais recente filme. Pondo as coisas desta maneira e seguindo a trajetória imaginária do filme, como vê a importância de uma iniciativa do Close-Up ou do Cineclube de Joane [um dos apoios] para existência do espaço cinematográfico fora das grandes metrópoles?

O "66 Cinemas" é um ótimo filme para discutir as comunidades e os fluxos de memórias que as salas de cinema podem gerar: encontramos salas que preservam uma solenidade, em extensas plateias sob balcões, com poltronas de veludo, candeeiros de lustre e cortinas que ocultam o ecrã, ou régies, já com projetores de digital instalados, pois as cópias em película desapareceram do circuito de distribuição. Em que se acumula "memorabilia", matéria em tempo de digital, como projetores de película, bobines, cartazes, livros, catálogos de festivais, cassetes VHS. O que procuramos em Famalicão, a partir da Casa das Artes, é constituir um conjunto de propostas ecléticas, que tratam o cinema com a mesma elevação das outras artes, em que a proposta pode ser erudita, com marca autoral, mas também lúdica ou popular – algo intrínseco ao cinema e à sua história, com a condição de que o centro da proposta seja o cinema e não o seu inverso. O espectador de Famalicão, no que depender do nosso trabalho, tem acesso às mais diversas propostas, como uma boa dieta do que poderia encontrar nos centros urbanos de Lisboa e Porto. Esta pandemia agravou um panorama já deficitário de distribuição de salas de exibição em espaço público de cinema, algo que as políticas públicas devem contrariar, na participação do cinema como uma arte transversal, com capacidade para dialogar com plateias muito distintas.

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Cristina Coelho e Hugo Gomes, na apresentação de "Les Miserables" de Ladj Ly, na ediçaõ de 2020 do Close-Up

No Close-Up, a maior parte das sessões são pontuadas por intervenções e apresentações de variados convidados (cineastas, críticos, jornalistas, artistas, investigadores, etc.). Com que parâmetros seleciona essas importantes partes do programa? O que define um “convidado Close-Up”?

O que se procurou com o destaque atribuído aos filmes comentados é a possibilidade de singularizar as sessões, de acrescentar algo ao visionamento, de intensificar relações com outros filmes do programa e com a memória do comentador e do espectador. Na escolha dos convidados-comentadores valorizamos a relação dessa pessoa com a obra, começando pela relação mais óbvia - do realizador com o seu filme -, em que se privilegiam convidados que escreveram sobre o filme e a obra do realizador, mas também procurando trazer para a apresentação das sessões artistas e investigadores de outras áreas artísticas e do conhecimento que desenham tangentes ao cinema.

Algo que se vem percebendo no Close-Up é que poderá servir como barómetro do melhor que é produzido, distribuído e visualizado num ano cinematográfico no nosso país. Como funciona essa seleção?

Desde a primeira edição que definimos um mote que percorre o programa. Mas não é esse mote que define a seleção e os panoramas, é mais o seu inverso. É como quem coleciona filmes e autores que quer mostrar e, a partir de determinada altura, esboça-se algo que agrega aquela seleção e que, queremos acreditar, valoriza os filmes e o seu visionamento naquele espaço de tempo. Nesta edição, o mote Comunidade surge reforçado pelo contexto da pandemia que afastou o público das salas de cinema. Sendo que os filmes que aqui juntamos procuram estabelecer esse diálogo a partir da comunidade de espectadores, num vaivém com um ecrã povoado pelas mais diversas comunidades, que são histórias do cinema, do nosso presente, mas também do movimento das coisas, outros tempos que o cinema permite imprimir num imaginário coletivo.

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66 Cinemas (Philipp Hartmann, 2016)

Um dos destaques deste ano é a dualidade de um conjunto de obras de Hong Sang-soo e Wong Kar Wai. No programa impresso encontramos um propósito, mas gostaria de saber pelas palavras do programador o que o levou a juntar dois artesãos das relações afetivas no grande ecrã de estirpes e nacionalidades diferentes.

Na secção Histórias do Cinema procuramos não só mostrar um conjunto de filmes de um autor, mas também colocar em diálogo dois ou mais cineastas, sendo que, curiosamente, a primeira edição também veio de terras asiáticas, com a partilha de mundos, de temas, das famílias e dos lugares de Yasujiro Ozu e Isao Takahata. Nesta edição, ao longo do processo de inventariar possibilidades, apareceram muitas vezes os nomes de Wong Kar Wai e Hong Sang-soo. Se Kar Wai, através da reposição de cópias novas, intensificou a memória dos espectadores que fomos há mais de 20 anos, Sang-soo é um realizador prolífico que nos chegou tardiamente, mas que ocupou o seu lugar na comunidade cinéfila. E se muitas vezes as propostas de um e de outro parecem funcionar por oposição, a velocidade das imagens em movimento de Kar Wai versus um caráter mais contemplativo, também aos pares, de Sang-soo, talvez o coreano seja um autor do nosso tempo, com o cinema, a criação e as suas frustrações, como assunto, enquanto lá atrás Kar Wai usava a cultura popular para nos apontar a vertigem da viragem do milénio.

Como poderá crescer ainda mais o Close-Up? Que outros desafios terão num futuro próximo?

Para lá da exibição, dos encontros entre documentário e ficção, entre produção do presente e história do cinema, na procura de fazer emergir as potencialidades humanistas do cinema, há uma vertente que também pontuou as seis primeiras edições e que é inerente à condição de integrarmos um Teatro Municipal: o apoio à criação. Apresentámos filmes-concerto em estreia, respostas de encomendas da Casa das Artes, cruzamentos artísticos, a que responderam Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Os Mão Morta, Orquestra Jazz de Matosinhos, Black Bombaim e Luís Fernandes. Paralelamente, promovemos o apoio à produção de filmes de Mário Macedo, Tânia Dinis, Eduardo Brito ou Luís Azevedo, em formato de curta-metragem e associados a ciclos e cartas brancas com esses realizadores. 

Um desafio para edições futuras será intensificar esse apoio à criação, fazendo-a ter ainda mais peso no programa. Se os filmes-concerto relacionam história do cinema com novas criações, obras importantes que chegam a outros espectadores transportados por outras bandas sonoras, há outra ambição, também relacionada com o património do cinema, que é a de proporcionar panoramas de obras de realizadores importantes, mas que não obtiveram distribuição, que foram pouco mostrados em Portugal, para lá de exibições na Cinemateca Portuguesa e que passará, também, por concertar parcerias com outras estruturas de programação.

Cada um com a sua infância, cada um com o seu Cinema

Hugo Gomes, 01.06.21

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Good Morning (Yasujiro Ozu, 1959)

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The Childhood of a Leader (Brady Corbet, 2015)

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Capernaum (Nadine Labaki, 2018)

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Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)

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Home Alone (Chris Columbus, 1990)

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The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)

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Let the Right One in (Thomas Alfredson, 2008)

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Little Fugitive (Ray Ashley & Morris Engel, 1953)

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The Florida Project (Sean Baker, 2017)

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The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999)

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The 400 Blows / Les Quatre Cents Coups (François Truffaut, 1959)

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The Kid (Charles Chaplin, 1921)

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The Last Emperor (Bernardo Bertolucci, 1987)

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Zero to Conduite / Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Jean Vigo, 1933)

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Bicycle Thieves / Ladri di Biciclette (Vittorio di Sica, 1948)

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Village of the Damned (John Carpenter, 1995)

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My Life as a Zucchini / Ma vie de Courgette (Claude Barras, 2016)

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The Boy with Green Hair (Joseph Losey, 1948)

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Aniki Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Cinema Paradiso / Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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Come and See (Elem Klimov, 1985)

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Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955)

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E.T. the Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

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André Valente (Catarina Ruivo, 2004)

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Ivan's Childhood (Andrei Tarkovsky, 1962)

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Nana (Valérie Massadian, 2011)

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Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1981)

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Poltergeist (Tobe Hooper, 1982)

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800 Balas (Álex de la Iglésia, 2002)

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, Our Madness, de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Nos bastidores da Páscoa!

Hugo Gomes, 12.04.20

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Monty Python's Life of Brian (Terry Jones, 1979)

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King of Kings (Nicolas Ray, 1961)

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The Last Temptation of Christ (Martin Scorsese, 1988)

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The Passion of the Christ (Mel Gibson, 2004)

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Il Vangelo secondo Matteo (Pier Paolo Pasolini, 1964)

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Acto da Primavera [Manoel de Oliveira, 1963)

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Multiple Maniacs (John Waters, 1970)