“Um festival com filmes que mudam o mundo". CineEco arranca com 31ª edição sob o mote da urgência, educação e ambição

A New Kind of Wilderness (Silje Evensmo Jacobsen, 2024)
Não é nenhum “31”, apenas a 31ª edição do CineEco Seia - Festival Internacional de Cinema Ambiental, a decorrer na referido município da Serra da Estrela (de 10 a 18 de Outubro), por entre o selvagem, por entre a lembrança de um ecossistema a merecer preservação, com a máxima urgência. Mas é no cinema que nos debruçamos, ou melhor o festival debruça sempre com olhar para o horizonte da sua temática, e nesta 31ª mostra, com claras atenções à emergência climática, e com foco no debate, na educação, formação e na construção de novos públicos que coexistem com a cinematografia e a ecologia.
Tiago Alves, programador e crítico, avançou-se para responder pelo festival ao Cinematograficamente Falando …, da longevidade, do legado, do futuro, do presente em construção e ainda sobre a memória. CineEco, que ao 31º ano de existência, renova os seus votos de festival único, mas não exclusivo, neste panorama nacional e … como também internacional.
O CineEco celebra 31 edições, um número notável. Qual considera ser o segredo da sua longevidade e que principais desafios surgiram na concretização desta 31.ª edição?
Penso que um dos segredos para a longevidade do CineEco é a presença do Lauro António. Pensando um pouco, é a consistência de programação, que se deve, obviamente, à forma como o Lauro António consolidou o festival durante grande parte do seu tempo de existência, mas também ao Mário Branquinho, que foi programador no CineEco durante 24 ou 25 edições, reforçando o espírito do festival, posicionando-o num lugar bem distinto, com relevância internacional, do ponto de vista destes eventos que se dedicam às programações ambientais.
Nesse sentido, o CineEco foi pioneiro, e é pioneiro, em Portugal. Ninguém retira a um festival de cinema documental, com essa característica temática, esse lugar. Mas deu também muita atenção internacional, e isso se sente hoje, quando nós fazemos o nosso trabalho de programação. Continuamos a receber muitas propostas de realizadores que estiveram presentes, como também de produtores e distribuidores que conhecem o festival, mas, sobretudo, de uma rede de contactos que se estabelece a partir desses fóruns, desse espaço, e também de outros festivais que não têm a mesma antiguidade, que surgiram noutros países depois do CineEco e até com inspiração nele, e hoje continuam ligados ao festival.
Não é uma rede evidente. Os filmes produzidos com uma especificidade ambiental, ou com uma preocupação relacionada com o ambiente, não fazem forçosamente o circuito dos festivais principais. Muitos deles encontram dificuldades de exibição, porque podem ser feitos em condições muito precárias, do ponto de vista produtivo. Enfim, alguns encontrarão esse espaço em festivais mais generalistas de cinema documental, mas há, verdadeiramente, um circuito de festivais com temática ambiental e o CineEco, aí, tem um peso muito específico.
O que temos feito, em anos recentes, para prolongar, dar longevidade ao CineEco, enquanto programadores que chegámos ao festival e, de certa forma, recebemos esta herança do Lauro António e do Mário Branquinho, é, obviamente, manter essa ligação. Sobretudo, procurar afirmar, através da programação, o espaço do CineEco no panorama dos festivais nacionais. Torná-lo mais relevante para o público em Seia primeiro, mas também para o público além de Seia (um público interessado em cinema, profissionais do próprio cinema) e encontrar aqui algumas opções de programação que posicionem o CineEco no contexto dos festivais nacionais.
Olhando para outros festivais mais generalistas de cinema documental, olhando para o CineEco e, em simultâneo, para esses festivais, procurando que o CineEco tenha uma relevância maior na relação com os seus congéneres que acontecem sobretudo em Lisboa e no Porto. Mas há também outros exemplos de festivais de cinema documental, ou até com preocupação ambiental, a acontecer fora das duas grandes cidades.
A presença de alunos das escolas de Seia é sublinhada como essencial nestes debates. Tendo conhecimento da expansão de movimentos negacionistas climáticas, inclusive a sua popularidade em camadas mais jovens, com associações de certas frentes políticas, que impacto terá estes debates ou formações na conscientização ambiental e até cívicas? Ou, de uma forma mais abstracta e pertinente, o cinema deve deter um papel formador ou pedagógico?
O cinema tem uma relação muito forte com o público escolar. Ou seja, com os professores do agrupamento de Seia, mas sobretudo com os jovens, de todas as faixas etárias, de todas as idades. Enfim, começando pelos mais novos: nós temos, durante o próprio festival, uma programação de curtas-metragens de imagem animada, com uma diversidade de propostas do ponto de vista estético-visual, mas também temático e narrativo, que os envolve. Durante a semana do festival, nas manhãs, organizamos sessões em que os alunos vão ao cinema — saem da escola e vão ao cinema — os mais novos, para acompanhar a nossa programação de curtinhas.

After the Snowmelt (Yi-Shan Lo, 2024)
O termo “de estudo” pode até não parecer adequado, porque estamos a falar de filmes de animação, mas depois podem ser trabalhados (isso já depende dos professores, claro) em contexto educativo, em sala de aula, nos meses seguintes. É óptimo, porque o festival acontece no início do ano letivo, o que permite esse prolongamento pedagógico. Alargamos também essa programação, tentando promover hábitos de frequência de cinema: criar momentos que sejam satisfatórios, do ponto de vista da ida ao cinema. Expandimos aos alunos mais velhos, do básico e do secundário, portanto além do ensino primário e pré-escolar, com uma programação que podemos considerar, obviamente, mais adulta.
Nesse eixo, não fazemos apenas exibição de filmes com uma proposta ambiental, procuramos enriquecer as sessões com a presença de convidados. Tentamos todos os anos que as temáticas sejam relevantes, com um foco nacional, mas também trazendo uma ou outra proposta que introduza um olhar mais amplo sobre problemáticas noutros territórios. Neste ano, essa programação está até mais bem estruturada do que em anos anteriores. Por vezes o que acontecia era o envolvimento dos alunos em sessões integradas na programação competitiva principal, promovendo o encontro com o realizador convidado.
A programação está mais definida: nos dias úteis da primeira semana do festival (de segunda a sexta-feira) vamos propor quatro documentários que integram o “Cinema em Debate”. São quatro filmes que, do nosso ponto de vista, têm qualidade cinematográfica e são inéditos em Portugal, mas que não foram incluídos na competição, nem na de língua portuguesa, nem na internacional de longas-metragens, e permitem encontrar realizadores que, no último ano, abordaram temáticas ambientais que nos parecem relevantes. Esse ciclo “Cinema em Debate” está estruturado com perspectivas muito diferentes: temos uma dimensão etnográfica (muito habitual no cinema documental exibido no CineEco) mas também abordagens mais dirigidas para a restauração dos ecossistemas, para questões hídricas, energéticas, ou seja, utilização, preservação e gestão sustentável dos recursos. Essas são as quatro grandes temáticas que vamos apresentar.
Curiosamente, não sentimos, indo à tua observação, que o pensamento negacionista seja algo presente, ou que esteja em crescimento. Não é, de todo, dominante. Encontramos aqui um público que, pela vivência num espaço natural como é a Serra da Estrela, e também pela própria cidade de Seia, possui uma sensibilidade particular para estes temas. Quase já estão “convencidos”, digamos assim [risos]. Os filmes apresentam-se sempre, claro, mas não sentimos que nos debates haja surpresa face ao que os filmes propõem. É um público sensibilizado … diria até esclarecido … e que muitas vezes faz caminho ao lado do CineEco.
Porque, se pensarmos que estamos a trabalhar com turmas que têm alunos que vão crescendo, transitando de ano, e que no seguinte voltam ao CineEco, percebemos que são claramente espectadores do futuro. São espectadores que ganham essa consciência, dando verdadeiro sentido ao nosso lema de ser “um festival com filmes que mudam o mundo.”
A exibição de “Terra de Pão, Terra de Luta” (José Nascimento, 1977) e “Linha Vermelha” (José Filipe Costa, 2012) convoca a Reforma Agrária e a memória coletiva do pós-25 de Abril. É um gesto de resistência à amnésia cultural ou um sintoma de nostalgia que recorre ao arquivo sempre que o presente se revela demasiado complexo para ser lido no imediato?
Começando pela curiosidade do arquivo. Sim. Em anos recentes, a Cinemateca e o ANIM, o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, criaram condições, técnicas e humanas, para restaurar mais cinema português. Isso é conhecido, pelo menos, no meio do cinema. Esse processo foi desenvolvido através de um projeto de financiamento estruturado pelo FILMar, que entretanto terminou, mas que nos deixou um importante conjunto de filmes restaurados em dois ou três anos. Sobretudo, deixou um processo em andamento, todos os anos a Cinemateca vai entregando mais cinema “reencontrado”. Gosto muito desta expressão, que vem de um festival italiano de cinema clássico [Il Cinema Ritrovato, em Bolonha], talvez o mais relevante no mundo dedicado ao cinema restaurado.
Portanto, sim, há essa relação com o cinema reencontrado, redescoberto, e uma relação que o CineEco criou com a Cinemateca Portuguesa nos últimos anos. É uma opção de programação afirmada por esta equipa de formas diferentes. Já fizemos, há três anos, sessões de abertura com cinema clássico, ainda no contexto do FILMar. Temos procurado, dentro da nossa programação, criar momentos, sejam curtas, longas, ou sessões duplas, que relacionem filmes de tempos diferentes: um mais antigo, mais clássico, e outro contemporâneo que o complemente. Fizemos isso nos últimos dois anos, e é o que voltamos a fazer agora.
Portanto, há aqui uma atenção ao trabalho da Cinemateca, mas também, como dizias e muito bem, um gesto de resistência: uma programação que resiste, que olha para o território, para o que foi preservado, para o que se manteve positivo ao longo do tempo. Tentamos perceber o que determinados filmes nos dizem sobre o passado, e que relevância isso tem para o nosso presente e para o futuro. É um gesto de resistência, não no sentido de dizer que precisamos de uma nova reforma agrária, como a de há 50 anos, em vários latifúndios e territórios, feita de forma quase armada, com os próprios instrumentos agrícolas como ferramentas de luta. E sim para lembrar que “isto aconteceu”. Em boa verdade, a reforma agrária teve o seu epílogo, no contexto político, social, económico e ambiental da época. Não produziu todos os efeitos esperados, mas teve virtudes. É isso que queremos revisitar: perceber, através dessa memória, que virtudes e que lições ficaram.

Terra de Pão, Terra de Luta (José Nascimento, 1977)
Se calhar, em 50 anos, a reforma agrária não cumpriu totalmente a sua promessa: a de uma agricultura mais sustentável, mais ligada às pessoas. Tal leva-nos, naturalmente, a reflectir o agronegócio. Num país como Portugal, o agronegócio não tem a dimensão quase “diabólica” que se vê no Brasil, nos Estados Unidos ou na Ucrânia — grandes produtores agrícolas — mas ainda assim temos hoje grande parte do território agrícola em regime de monocultura. É um problema que, ano após ano, se reflete na programação do CineEco. Eu diria que há dois temas recorrentes: os direitos dos povos indígenas sobre o seu território e a forma como preservam a natureza e os habitats, nomeadamente na Amazónia , e a questão do agronegócio, que está muito ligada a essa vivência e à relação das comunidades com o território.
Esta programação, para além do gesto político de lembrar os 50 anos da reforma agrária, que também coincide com os 50 anos do 25 de Abril e do próprio ciclo democrático, é também uma forma de dizer que há hoje um “cansar-se” da prática agrícola atual. É isso que nós pretendemos mostrar.
Sendo o único festival português exclusivamente dedicado ao cinema ambiental, não teme o CineEco ficar preso a uma bolha temática, quando as questões ecológicas hoje atravessam praticamente todas as áreas do cinema contemporâneo?
É uma boa questão, sabe? Porque nós sentimos que o CineEco pode, de facto, ficar nesse lugar mais fechado, digamos assim, do ponto de vista temático, mas, curiosamente, não deve abdicar de o fazer, porque foi um festival pioneiro — o primeiro a colocar na sala de cinema filmes que refletem sobre as nossas preocupações ambientais — e, de repente, tornou-se… ou seja, foi um festival à frente do seu tempo, e continua a procurar acompanhar este tempo. Muitas vezes, encontramos no cinema ambiental as melhores respostas para as nossas preocupações. Mesmo não estando hoje “à frente do tempo” (porque este é um tempo em que todos nos preocupamos com a extinção das espécies, ou vivemos com essas preocupações), o festival continua a apresentar propostas que estão muito à frente daquilo que vemos no cinema que não tem esta temática ou agenda ambiental.
Portanto, sim, estamos dentro de uma bolha (para usar a tua expressão) mas é uma bolha que cada vez mais reflete problemáticas, histórias e narrativas que vão além da agenda climática. Exemplos disso encontramos, por exemplo, na nossa programação deste ano. Há uma presença muito humana nos dez filmes que vamos estrear na competição internacional. Só para olhar para esses dez: há um filme chamado “A New Kind of Wilderness” (2024), um filme norueguês de Silje Evensmo Jacobsen, que acompanha uma família que procura romper com uma vivência mais urbana e encontrar uma existência mais livre e selvagem.
Julgo que a maior parte das pessoas nem imagina que, em certos pontos da Europa, sobretudo no Norte, as raposas são usadas como animais domésticos e é isso que vemos num thriller, “Pet Farm” (Finn Walther & Martin A. Walther, 2025). Mas há também um filme surpreendente na programação, que nos remete para uma dimensão eco-ansiosa, chama-se “Climate in Therapy” (Nathan Grossman, Olof Berglind & Malin Olofsson, 2024), que coloca sete cientistas do clima em sessões de terapia, onde procuram lidar com as suas emoções. Ou seja, percebem que têm as respostas para os problemas ambientais do planeta, mas que ninguém as aplica devidamente, e isso gera uma “eco-ansiedade”.
Portanto, sim, estamos dentro de uma bolha, mas é uma que se expande, porque reflete cada vez mais sobre o mundo, as pessoas, as emoções, e não apenas sobre o clima em si. O festival não pode sair desse lugar, mas temos procurado, nos últimos anos, encontrar caminhos que retirem o CineEco dessa bolha, ou, melhor dizendo, que a façam crescer. Dou-te um exemplo: há sempre filmes que nos colocam nesse lugar de dúvida, em que de repente nos perguntamos “qual é a relevância ambiental deste filme?”.
Este ano, na sessão da meia-noite, decidimos estrear em Seia — fora de competição — o “Sirât”, de Oliver Laxe. Simbolicamente, porque o Oliver Laxe foi premiado aqui em 2018, com “O Que Arde”, em competição internacional. O filme já tinha estreado em Portugal, por isso não o poderíamos apresentar como estreia nacional, mas ainda assim decidimos integrá-lo fora de competição, nesta nova linha de programação: a sessão da meia-noite, algo inédito no CineEco. Normalmente, quem vê “Sirât”, ou mesmo “O Que Arde”, pode não identificar imediatamente a sua dimensão ambiental. Mas ela está lá, é uma dimensão de apocalipse, que passa pela nossa ação e pela nossa relação com o território e o lugar onde vivemos. É uma proposta não ambiental no sentido estrito, mas que nos permite refletir sobre o colapso e o apocalipse ambiental.
Sim, acredito muito que a ecologia tem mais a ver com a preservação da nossa espécie do que propriamente da Terra, porque a Terra já nos deu sinais de que é capaz de recuperar de toda uma extinção em massa, nem que precise milhões de anos para o fazer. Já uma espécie, depois da extinção …
Exactamente. Só para concluir … Ou seja, a nossa programação tem procurado encontrar caminhos, através de algumas propostas, que retirem o cinema que apresentamos dessa bolha que referiu, ou da possível existência de uma bolha.

Sirât (Oliver Laxe, 2025)
Que caminhos o CineEco poderá desbravar nas futuras edições? Quais os objectivos ou projecções?
Um dos desafios que o festival enfrenta, e isto, obviamente, diz mais respeito à Câmara Municipal, enquanto entidade organizadora, mas, do meu ponto de vista, enquanto elemento da programação, e alguém que já acompanha o festival há alguns anos, posso afirmá-lo publicamente, mesmo sem ter essa responsabilidade direta: é tornar mais densas as extensões, chegar a mais cidades.
Nós temos dez filmes em estreia na competição internacional. Vamos estrear em Portugal “Linha de Água”, de Rui Simões, um filme sobre o artista Vítor Gama, que vai dar também um concerto na noite de abertura. Este é um cinema que pode — e deve — ser programado em qualquer cidade, porque desperta o interesse de qualquer público. Se há um gesto de urgência na nossa programação, ele deve ser levado mais longe. Os filmes são suficientemente interessantes para chegar a um público muito mais vasto. Muitos deles não estreiam depois da exibição no CineEco, deixam de ser visíveis. Alguns ainda estreiam noutros contextos, mas há um número considerável de filmes muito interessantes que, simplesmente, não chegam às salas nacionais.
Outro objetivo, que também reforça a programação e a relação com o público (especialmente o mais especializado) é o Mercado de Cinema, que lançámos na 30.ª edição, há um ano. Vamos agora promover a segunda edição, no dia de abertura. É um espaço de encontro entre jovens criadores, profissionais, alunos das academias e escolas superiores de cinema, que apresentam os seus projetos a um painel de convidados com experiência na área, sobretudo na distribuição e produção.
É um encontro que permite, a partir dos filmes já concretizados ou ainda em desenvolvimento, trocar impressões e contribuir para que estes alunos e jovens realizadores saiam dali mais preparados, mais confiantes, e com vontade de continuar a criar. Fazer uma reflexão que não é maioritariamente ambiental mas que pode obviamente passar por esse tema nos filmes que procuramos apresentar nesse espaço mais fechado de mercado. Mas é sobretudo um espaço para estes jovens estudantes de cinema em Seia, e uma oportunidade para se encontrarem e debaterem com profissionais do nosso cinema, como é o caso deste ano de Rui Simões, que dá-nos o prazer da sua presença e de Pedro Fernandes, dois produtores diferentes. Curiosamente um deles é um dos antigos na área documental em Portugal [Simões] e o outro, um jovem [Fernandes] que tem a sua produtora, A Primeira Ideia, com uma visão bem enquadrada no território e na paisagem. É um brilhante painel, a servir de reforço para os alunos presentes, oriundos de três escolas de cinema: UBI, Lusófona e ISMAT.
Toda a programação poderá ser consultada aqui