Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Hui So-Ying, a eterna Ah Ying numa Hong Kong em mudança: "Viver é representar, e representar é viver."

Hugo Gomes, 05.11.25

images-w1400.jpg

Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Uma jovem corta e amanha peixe num mercado em Hong Kong. Pela sua expressão, não é tarefa que lhe agrade, mas pouco pode reclamar. Ao seu lado, o olhar quase ditatorial da mãe, proprietária daquela banca de peixeira, impõe-se silenciosamente. Depois do trabalho, regressam ao asilo doméstico, abafado pela família numerosa, onde o espaço é mais requisitado do que o apartamento pode oferecer. É uma vida lotada e igualmente limitada. A jovem, que momentos antes esquartejava o possível jantar de alguém, suspira por uma alternativa, aquela que poderá ter encontrado nas aulas de interpretação, lecionadas pelo seu professor invisual, 'brinde' pelo trabalho no centro filmíco. Entre ambos nasce uma forte ligação, erguida sobre a performatividade, a mesma em que a peixeira, já agora de nome Ah Ying, deposita a esperança de um futuro sem o odor do peixe.

Não, não é o vosso típico “ascensão de uma estrela”, esse género que se formalizou por si só, feito para suspirar e inspirar espectadores, embriagados pelas frases motivacionais e histórias-modelo de veneração à resiliência e à determinação. Em “Ah Ying”, de Allen Fong (1983), somos conduzidos a um retrato quase social, e por vezes premonitório, de Hong Kong dos anos 80, num registo cinematográfico distante daquilo que a indústria local da época dava como garantido: dos policiais aos cineastas emergentes, muitos deles saídos do Hong Kong Film and Culture Centre, aqui a servir de cenário para o progresso dramático da protagonista.

Aliás, ela (a tal peixeira contrariada), Hui So-Ying, era também uma rapariga de mercado. Afiava facas como as testava nos peixes comprados pelo freguês e, à noite, seguia para as aulas de interpretação, com o desafio de ser atriz na mente, como entendia que devia ser. Sim, a história é dela, com um pseudónimo pelo meio, um docudrama, como a própria gosta de o definir. Peça importante na cinematografia hongkonguense, o filme enquadra uma época, uma geração, e os movimentos que fervilhavam e reivindicavam uma juventude inquieta — uma juventude em plena renúncia aos passos dos seus progenitores, desejosa de romper com a maldição social, afastar-se do precário e abraçar o artístico. O Cinema, como janela de fuga.

E foi também daí que nasceu uma atriz — Hui So-Ying — que nunca mais se libertou dessa personagem. Viu-se vencida pelas maldições da sua própria encarnação, regressando anos depois com pequenos papéis, passo a passo, até voltar ao protagonismo. Sempre será a nossa rabugenta Ah Yin!  Foi com a 2ª Mostra de Cinema de Hong Kong em Lisboa (25 a 28 de setembro) que voltou a ser lembrada assim. Os dois filmes mais recentes trazidos para o evento só comprovam que se mantém activa, firme no ofício. Se terá sucesso ou não, pouco lhe importa, como expressou abertamente, porque saberá sempre como cortar o peixe. Aquela jovem de rebeldias silenciosas ainda vive nela.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a actriz a poucos dias da apresentação da sua Ah Ying no Cinema Ideal [28/09], praticamente inédita em solo português. O diálogo decorreu sob a sombra desse trabalho, revisitando outros desempenho, rindo no final diante do futuro “endeusado” que poderá surgir. 

Podemos resumir que “Ah Ying”, cuja sua popularidade foi bastante alavancada nos festivais internacionais e de ter deliciado a crítica de cinema na altura, continua pouco referido no Ocidente, principalmente quando se aborda a história do Cinema de Hong Kong dos anos 80. Acredito que isso deve-se ao facto de “Ah Ying” ser um produto, não apenas da sua geração, mas da sua geração local?

Basicamente, acho que muitos críticos no Ocidente (ou quem não conhece bem o cinema e a história de Hong Kong) não souberam interpretar o filme. Não têm noção da sociedade, das tradições e da realidade de Hong Kong naquela altura. Especialmente os valores familiares tradicionais. Por exemplo, porque é que ela tinha de ir ao mercado? E o mercado cinematográfico, naquela altura, era muito diferente do que é hoje.

Ah Ying”, não era um cinema muito… virado para o entretenimento, digamos assim. Na verdade, o cinema de Hong Kong era muito ambicioso. Havia muito apoio ao cinema local. Na década de 80, alguns realizadores da Nova Vaga fizeram filmes muito realistas. Claro que alguns foram bem recebidos e outros não.

Por exemplo, “Ah Ying”, sendo sobre uma jovem mulher e tendo algumas associações a certas políticas de esquerda, não recebeu grande atenção na altura. Isso, e porque não era um filme de entretenimento comum na linha das produções de acção que se fazia naqueles tempos.

Mesmo assim acredita que o “Ah Ying” tem lugar na história do cinema de Hong Kong?

Afirmativamente, de certa forma. Não se pode negar que, nos anos 80, a história do cinema de Hong Kong apoiava muito os realizadores da Nova Vaga hongkonguense. Havia vontade de investir em filmes realistas, não comerciais e não centrados na questão do entretenimento.

556995968_122177288042494886_5860797731680154027_n

Hui So-Ying na apresentação de "Ah Ying" no Cinema Ideal / Foto.:  Gonçalo Castelo Soares

Achas que o gosto do público de Hong Kong mudou desde então?

Mudou, sim. Hoje em dia é mais fácil estudar em Hong Kong. O nível de conhecimento e o nível académico melhoraram muito. Por isso, as pessoas não querem apenas ver filmes de entretenimento, também gostam de ver filmes mais profundos. Isso elevou o pensamento e o gosto do público no geral.

Se hoje “Ah Ying” fosse feito, seria bem recebido em Hong Kong?

Mesmo hoje em dia, não vejo muitos filmes de Hong Kong feitos daquela maneira. Filmes assim, tipo docudrama, praticamente não existem. Este ano, em 2025, tivemos algumas exibições especiais em Hong Kong e a reação foi muito positiva. Mas claro, não é o mesmo que a exibição regular, com várias sessões por dia … nesse caso, não sei se haveria assim tantas pessoas a ver. Não tenho a certeza. Mas em sessões especiais, nota-se que as pessoas gostam.

É descrito que “Ah Ying” tem como base muito da sua experiência pessoal. Como isso contribuiu para concepção para jornada vivente desta Ah Ying, e o que há nela de real à sua pessoa e vivência?

Não é uma obra totalmente dramática. Como é que digo? Não é só ficção. Mas se fosse apenas o meu registo pessoal, não funcionaria, porque não haveria esperança [risos]. Então foram acrescentadas coisas ficcionais nela. Por isso é que se pode chamar de docudrama: metade real e metade não. No filme, a minha família é mesmo a minha família: o meu pai, a minha mãe e a minha irmã. Só o meu irmão mais novo e a minha cunhada não são reais. O resto são mesmo os meus familiares.

E o mercado era o mesmo?

O mercado não é exatamente o mesmo, porque era difícil filmar lá. Encontrámos outro mercado para rodar o filme.

De peixeira a aspirante a actriz, a jornada de “Ah Ying” não é tanto de ascensão no meio artístico, mas a sua luta em evadir uma vida precária. Em um momento a mãe de Ah Ying perante o anúncio de uma nova audição da filha diz que ela deveria se dedicar ao mercado. O filme lida com essa visão pejorativa da classe trabalhadora para com a classe artística dos anos 80, hoje o cenário é o mesmo, ou existiu alterações?

Na verdade, quem vende peixe continua a vender peixe. A minha situação era muito específica, por isso o realizador pediu-me para contar a minha história. Em classes sociais diferentes, as pessoas não têm muito contacto com o cinema, nem vão as vezes que pretendiam às salas. Então, a diferença entre os anos 80 e hoje? Diria que é quase igual. Quanto à luta retratada no filme, também não mudou muito. Vender peixe até dá mais dinheiro do que muitos outros trabalhos.

Mas a sua personagem quis escapar dessa vida, como a Hui So Ying …

Pode-se dizer que sim, mas a principal razão para ter feito este filme foi o meu professor de interpretação ter falecido. Então pensei que devia fazer algo para o homenagear. Ele ensinou-me representação, e quando soube que tinha morrido, senti que precisava de fazer alguma coisa.

Se me perguntares se queria sair daquela vida, não consigo dizer concretamente. O meu principal objetivo era homenageá-lo. Vendia peixe porque os meus pais eram muito trabalhadores, e simplesmente queria ajudá-los. Essa era a razão de estar no mercado… e a razão pela qual entrei no cinema foi o facto do meu professor ter morrido.

Vender peixe é mais admirável do que ser atriz?

Não posso dizer isso. [risos] Não. São coisas diferentes. No meu caso, sempre gostei de representar. Por isso vendia peixe durante o dia, e à noite ia ao Hong Kong Film Culture. No filme consegues ver isso representado de alguma forma.

E acerca disso. A Ah Ying tem aulas de interpretação no Film Culture Centre, que foi um centro de formação importante para a vinda de uma nova vaga de cineastas de Hong Kong, o filme antecipa esses nomes e estilos, ou foi pensado para incentivar esse crescimento artístico?

O Hong Kong Film and Culture Centre ajudou muita gente com interesse em cinema. Essas pessoas trabalhavam durante o dia e iam estudar à noite. Na altura, não havia assim tantas oportunidades para aprender técnicas de cinema. O Fruit Chan, por exemplo, foi uma das pessoas que frequentou o centro. A Ann Hui, com a qual vim a trabalhar em “A Simple Life” (2011), aprendeu lá e entrou na indústria.

Por isso digo que o centro ajudou muitos cineastas, e também queriam mostrar que nos anos 80 existia esse espaço. Muitos dos professores eram realizadores e argumentistas da Nova Vaga de Hong Kong. Quando filmámos, voltámos ao centro, todavia, eles já tinham mudado para outro sítio, e ainda não estava renovado. Pedimos ao dono para alugar o espaço para terminar o filme.

Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Então, essa cena em que eles destroem o carro pode ser entendida como uma metáfora ao fim do ‘Film Center?

Não exactamente. Eles mudaram-se para outro sítio, mas continuaram em Hong Kong. O espaço é que ficou mais pequeno. Havia menos produção, não havia tantas aulas. A razão principal foi o financiamento limitado.

O centro cultural ainda existe?

Continua a existir, mas é diferente. O nome mudou. Antes era Hong Kong Film Culture Centre, agora é Film Culture Center Hong Kong. Mudou porque houve dinheiro que desapareceu, ou algo assim, não estava muito claro na altura. Portanto, decidiram alterar o nome: puseram “Hong Kong” no fim. [risos]

Com os louros de “Ah Ying”, a sua carreira obteve o devido ‘empurrão’, poderemos considerar este o seu filme crucial? De algum modo ainda é reconhecida ou referida como Ah Ying em Hong Kong?

Na verdade, quem costuma me chamar para representar sabe que eu sou a Ah Ying. Claro, este é o meu filme mais importante. Muito especial na minha carreira.

Agora se a minha carreira ia ter o impulso que devia… estou só a ser sincera: se acontecesse, aconteceu. Se não acontecesse, não aconteceria. Não sou daquelas pessoas que tem de continuar a representar a todo o custo. Isso não faz parte de mim. Se alguém achar que este filme, ou que uma certa personagem, me assenta bem, vem falar comigo. Penso na proposta, leio o guião. Aceitar ou não depende do motivo.

Já disse isto: o meu objetivo principal com este filme era homenagear o meu professor, e tal feito consegui. Não estou aqui para procurar atenção ou outras regalias.

Depois de “Ah Ying” trabalhou em “No Regret” (Herman Yau, 1987), depois dessa obra deu-se um hiato, voltaria ao cinema em 2009. O que terá acontecido por essa ausência e o que motivou esse ressurgimento no Cinema?

Casei. [risos] E quando tive a minha primeira filha, ainda estava a trabalhar como assistente de produção, só que estava sempre a pensar nela. Então senti que tinha de deixar o trabalho para cuidar dela. Depois tive a segunda filha e aí já não dava mesmo para voltar. Só quando elas cresceram é que senti que podia, e estava na altura de regressar.

Nesta Mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa serão exibidos dois filmes com duas interpretações recentes suas, que proveito obtém de uma carreira longa de filmes como “Papa” (Philip Yung Chi-Kwong, 2024) e “All Shall Be Well” (Ray Yeung, 2024)?

Representar é como a vida, e a vida é como representar. Viver é representar, e representar é viver. Por isso, para mim, não há diferença de um filme ou de outro. Mesmo agora, neste momento, também estou a representar. [risos] 

1417130_allshallbewell_823057.jpg

All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)

Em “All Shall Be Well” são abordadas questões delicadas, não apenas no contexto de Hong Kong, mas também em relação a outras realidades sociais, como as relações afectivas entre pessoas do mesmo sexo. Na sociedade de Hong Kong, continua a ser um tabu representar estes temas no cinema? Além disso, segundo o filme, essas relações permanecem num vazio ou desprezo jurídico.

Não é tabu  nenhum. Só que há pessoas contra. Hoje em dia pode-se falar, está aberto, mas o Governo de Hong Kong ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse é o ponto principal. Claro que há políticos que são contra. Acho que é um passo atrás, visto que em muitos sítios do mundo já é aceite. Portanto, não ser aceite, ou não ser legal, é injusto para os casais do mesmo sexo.

Pergunto isto porque o filme em si é muito tímido a mostrar a relação entre aquelas duas personagens. Discreto até.

Sim, porque algumas famílias não aceitam. Há famílias que aceitam, claro, mas há outras que não querem ter sequer um vislumbre dessa estrutura familiar. Esse é o problema. Por isso há casais do mesmo sexo, mesmo já com idade, que continuam a ter dificuldade em assumir-se.

O filme está a mostrar uma realidade verdadeira. Talvez na sociedade chinesa ainda não queiramos mesmo enfrentar isso. E a forma como o filme mostra é a forma como é na realidade.

Queria terminar com uma contemplação ao futuro: quanto a novos projetos? E vais voltar a ser a atriz principal nesses próximos trabalhos?

Sim, vou voltar.

Vai?!

Vou sim! Posso adiantar que vou ser uma deusa taoísta. Uma rainha celestial numa curta-metragem. É sobre a realidade, mas usa essa mitologia, essa lenda, para tornar tudo mais delirante.

 

Um agradecimento especial a Virginia Or, pela tradução do cantonês e pelo auxílio.

Oliver Chan: "o cinema tem romantizado a maternidade durante tanto tempo e de tantas formas"

Hugo Gomes, 24.10.25

37th-TIFF-Womens-Empowerment-Main_Montages_of_a_Mo

Montages of a Modern Motherhood (2024)

À primeira vista, podemos apontar “Montages of a Modern Motherhood” como um filme de maternidade sem brilho algum nos olhos quanto ao tema que aborda, e isso é um facto assumido. No fim de contas, a Maternidade tem sido, ao longo do último século, o melhor dos seus próprios publicistas: um período belo, crucial, “o mais justo e sublime dos eventos na vida de uma mulher”. Assim o mentalizamos, e assim o instituímos como um axioma da nossa existência.

Contudo, nos últimos anos, mais e mais vozes (maioritariamente femininas) têm amplificado as suas experiências, revelando os cantos mais sombrios da maternidade e alertando para a fabulação construída em torno dela. Resgatam, assim, a experiência individual, mostrando que, por vezes, ser mãe não é das mais belas ‘coisas’ de sempre.

Oliver Siu Kuen Chan, jovem realizadora de Hong Kong, viveu a maternidade e deparou-se com as suas adversidades, os seus obstáculos e o lado nada colorido desse estado. Dessa experiência nasceu a vontade de fazer um filme, “Montages of a Modern Motherhood”, a sua segunda longa-metragem (depois do bem-recebido “Still Human”, 2018), um retrato cinzento, de realismo incómodo, sobre uma jovem mãe ‘maltratada’ por uma sociedade que encara a maternidade como uma infortuna obrigação. Seja no campo laboral, no ócio ou na vida familiar, a protagonista cede à depressão pós-parto e ao desespero silencioso. Obviamente, se o(a) leitor(a) pensa em crescer a família, este não é o “feel good movie” recomendado para o efeito.

No âmbito da 2.ª Mostra de Cinema de Hong Kong, em Lisboa (25 a 28 de setembro), a realizadora esteve presente na estreia nacional do filme, no Cinema Ideal, sem, antes, ter se encontrado com o Cinematograficamente Falando… para uma conversa sobre o projecto e, sobretudo, para desmistificar essa “Maternidade com confettis”.

Encontra-se nos cinemas portugueses actualmente [à data desta entrevista] um filme espanhol chamado “Sorda”, que lida com a sua maneira particular com questões pertinentes sobre a maternidade. Entrevistei a realizadora, Eva Libertad, recentemente, e recordo dela referir que a Maternidade tem sido muito romantizada nos últimos anos no cinema, porque a maioria dos filmes são realizados por homens, e agora, com a vinda de mais mulheres na direcção, é possível assistir a uma desconstrução dessa visão no Cinema.

Sim.

Como no seu caso e especialmente este seu filme. Concorda com isso?

Sim, concordo. Acho que não há problema em realizadores homens ou criadores tentarem representar a maternidade a partir da sua perspectiva, mas precisamos também de vozes femininas, e sobretudo de mães reais. É uma questão de equilíbrio. O mesmo tema pode ser mostrado de diferentes pontos de vista e precisamos de todos eles.

Certo. E acredito que a próxima pergunta é uma continuação dessa. Porque, mesmo fora do cinema, culturalmente, a Maternidade ainda é...

Um tema delicado e até algo assustador de abordar.

Sim, quase sagrado.

Absolutamente. E, na verdade, no nosso cinema [na indústria de Hong Kong], até fui criticada por isso. Algumas pessoas diziam: “O teu filme é imoral, faz as pessoas terem medo de ter filhos.” Chegaram-me a dizer: “O teu filme vai afetar a taxa de natalidade em Hong Kong!” E eu pensei: o quê? É só um filme! Bem, não é “só um filme”, mas é curioso pensar que poderia ter esse tipo de impacto.

Como havia dito, acho importante termos o ponto de vista das mães reais. Talvez, se olhar para o meu filme isoladamente, ele pareça pesado, ou que demoniza a maternidade. Mas quando o colocas num contexto mais amplo, junto de tantos outros filmes (a maioria romantizados), percebes que é uma voz necessária.

Se tivesse feito um filme neutro, com cuidado para não incomodar ninguém, penso que não teria o mesmo impacto. Quero que as pessoas saiam da sessão a questionar-se: é mesmo assim? É tão difícil, tão doloroso? Que comecem conversas, perguntem às mães que passaram por isso, e muitas responderão: sim, é exatamente assim, sobretudo as que enfrentaram depressão pós-parto. Portanto, não sinto que esteja a exagerar. Claro que, se quisesse, podia incluir cenas mais leves ou felizes. Mas não achei necessário, o cinema tem romantizado a maternidade durante tanto tempo e de tantas formas... apenas quis equilibrar um pouco essa balança.

Mostrar o outro lado da história. Mas este filme nasce … penso que nascer é uma boa palavra para este caso … também da sua própria experiência de maternidade, certo

Sim. Tornei-me mãe há cerca de seis anos. Talvez tenha sido um pouco ingénua, mas achei que isso não me afetaria muito. Estava numa boa fase da carreira como realizadora e pensei: “Depois de dar à luz, volto logo a trabalhar, vou conseguir equilibrar tudo: carreira, família, vida pessoal.” Mas não foi nada disso que aconteceu. As pessoas mudaram completamente as suas expectativas sobre mim. Produtores e estúdios deixaram de me considerar para projetos, diziam: “Ela acabou de ser mãe, não a convides, não vai ter tempo, a prioridade dela agora é a família.” Anos depois, descobri que tinha sido considerada para alguns desses projetos, mas acabaram por escolher outra pessoa com esse argumento. Isto aconteceu várias vezes.

Mesmo quando comecei a levar o filme a festivais, outros cineastas me perguntavam: “Ah, estás aqui! Mas quem está a cuidar do bebé?” Respondia: “Temos ajuda — o meu marido, a família...” Não é como se, depois de ser mãe, tivesse de estar confinada ao lado do meu filho o tempo todo. Ainda tenho a minha vida, a minha identidade, o meu trabalho, os meus sonhos. O mais engraçado é que o meu filho já tinha cinco anos, e mesmo assim as pessoas perguntavam: “Onde está o bebé? Deve estar tão triste por estares longe dele...”

Percebi então que, mesmo na era moderna, quando acreditamos que todos podem fazer o que quiserem com esforço, a imagem idealizada do que uma mãe deve ser ainda nos aprisiona muito.

556018648_122177127074494886_7247846692621133523_n

Oliver Chan na apresentação de "Montages of a Modern Motherhood" no Cinema Ideal / Foto.: Joana Linda

Mas essa expectativa sobre a mãe é muito diferente da que se tem em relação à figura do pai?

Totalmente. É um duplo padrão. Um pai muda uma fralda ou dá um biberão e é logo elogiado. “Que óptimo pai!”, enquanto a mãe faz isso tudo e muito mais, além de carregar uma gravidez de nove meses. Se um pai estiver num McDonald’s a alimentar o filho com batatas fritas, as pessoas dizem: “Que querido, está a cuidar bem do filho.” Mas se for uma mãe, tiram-lhe uma foto e publicam nas redes a chamar-lhe “má mãe”, por dar fast food à criança.

Os padrões são completamente diferentes. Ainda assim, vejo que as coisas estão a mudar, especialmente em países asiáticos. Como as famílias têm menos filhos, os pais tentam estar mais presentes e participativos. Só que continua a ser difícil, porque todos os pais trabalham, e as mães também. Acho que é urgente mudar essa mentalidade.

Queria falar sobre o mundo laboral. Porque o teu filme denuncia o modo como a sociedade, não só em Hong Kong, mas de forma geral, trata as mães. As mães trabalham, têm as suas próprias vidas, a sua vida privada...

Sim. Acho que, hoje em dia, ser pai já é difícil, mas ser mãe é ainda mais complicado do que antigamente. Antes, a vida era muito mais sobre sobrevivência. As pessoas tinham muitos filhos e apenas esperavam que alguns crescessem saudáveis, recebessem uma boa educação e isso bastava. Agora é diferente. Há tanta investigação científica... Um especialista diz que o leite materno é o melhor. Outro diz que o bebé não deve usar chupeta porque afeta os dentes. Outro ainda defende que o parto natural é o ideal, porque a pressão ajuda o bebé a ser mais saudável. Há tantas teorias e muitas são completamente opostas umas às outras.

Como pais, passamos imenso tempo a ler e a tentar decidir em que acreditar. E, quando escolhemos um caminho, logo aparecem pessoas com opiniões contrárias, que nos criticam por essa escolha. Ao mesmo tempo, a economia é cada vez mais exigente. Normalmente, os dois pais têm de trabalhar. Então, quem é que cuida da criança? As creches são caríssimas. Trabalhamos, ganhamos dinheiro, cuidamos do bebé e ainda tentamos seguir todas essas “boas práticas” recomendadas.

E o mais irónico é que as chamadas “melhores opções” são sempre as que exigem mais esforço como amamentar, comprar comida biológica, evitar o tempo de ecrã. Tudo isso consome tempo e energia. Sabemos o que é bom para o nosso filho, mas parece que não há limites para o que é considerado “o melhor”. Sinto que é cada vez mais desafiante. Mas o problema é que as políticas e a sociedade não acompanham essa realidade. Por exemplo: incentivam a amamentação, mas as empresas não são obrigadas a ter salas próprias para isso. Não há dias de folga adicionais, nem apoio suficiente e a mãe pode até adoecer durante a amamentação.

Portanto, todo o peso recai sobre os pais e, principalmente, sobre as mães. Temos de lidar com tudo: o trabalho, o bebé, as expectativas. É como se estivéssemos constantemente a ser puxadas em várias direções ao mesmo tempo.

Imagino que seja ainda mais difícil para as mães da classe média e das classes mais baixas do que para as de classes mais altas. É também uma questão de contexto laboral?

Sim, sem dúvida. Quando se tem dinheiro, muitos problemas resolvem-se. Pode-se contratar ajuda, ter acesso a melhores cuidados de saúde e toda a experiência, desde o parto até à amamentação, torna-se mais fácil.

No filme, a protagonista pertence à classe trabalhadora, mais próxima do operariado. E isso mostra muito bem o tipo de sacrifício que uma mãe tem de fazer. Quando há algo que precisa de ser posto de lado, quem é que abdica primeiro? É quase sempre a mãe. O filme evidencia essa desigualdade.

Percebo. Li numa outra entrevista — penso que era na CUHK Business School — que revelou que o ambiente no set era cheio de risos, apesar de o filme ser tão intenso.

Sim, é verdade. O contraste era enorme. Ríamos muito durante as filmagens, às vezes porque a situação se tornava mesmo absurda, especialmente porque filmámos com bebés verdadeiros. Queria que tudo parecesse real. Não queria que o público olhasse para o ecrã e pensasse logo: “Ah, aquilo é uma boneca.

Por vezes os bebés mexem as pernas, fazem pequenas expressões...

Exactamente. Queria captar isso. Mas é muito difícil, porque por vezes só precisava que a actriz expressasse uma emoção e de repente o bebé chorava... ou ria... ou soltava um som qualquer!

Estávamos todos concentrados numa cena séria e o bebé fazia algo completamente diferente. Nesses momentos, podíamos ficar frustrados, ou rir. Nós escolhemos sempre rir. Há uma história que costumo contar nas conversas pós-exibição. No guião, havia uma cena à beira de um lago, à noite: a mãe tenta acalmar o bebé, mas ele não para de chorar.

Sim, recordo dessa cena. Fiquei inquieto, parecia que ela podia deixar cair o bebé!

[risos] Sim! Foi uma cena trabalhosa. Montámos toda a iluminação, as câmaras, tudo levou quase duas horas, e quando começámos a filmar... o bebé não parava de rir! Era uma bebé super feliz. [risos]

Tentámos, com cuidado, deixá-la um pouco desconfortável — nada de agressivo, claro — só para ver se ela chorava um bocadinho, o suficiente para a cena. Mas assim que a actriz começava a embalá-la, a bebé sorria de novo. Completamente imprevisível. Rimo-nos imenso. Passámos cerca de quatro horas a tentar gravar aquele plano e acabámos por não o usar. Substituímo-lo por um plano mais aberto, em que quase não se vê o rosto da bebé. E situações assim aconteceram várias vezes. [risos]

Sim, reparei que em muitas cenas o bebé não aparece, apenas se ouve o choro.

Quando o bebé está fora do plano, o som do choro é normalmente adicionado na pós-produção. Mas sempre que se vê o bebé, mesmo que seja só uma mão, ou a parte de trás da cabeça, esse momento foi filmado com um bebé real, e o choro é verdadeiro, captado em cena. Há, portanto, dois tipos de momentos: os recriados no som e os genuinamente reais.

maxresdefault.jpg

Montages of Modern Motherhood (2024)

Falando agora do argumento, já referiu que o filme nasceu da sua própria experiência enquanto mãe. Mas mesmo assim, entrevistou outros casos para auxiliar o guião, ou desenvolver o enredo?

Sim, digamos que o ponto de partida veio da minha própria transição para a maternidade. A maior parte (talvez uns 90%) do que aparece no filme vem de muita pesquisa. Falei com imensas pessoas, li casos reais em jornais, de mães que se suicidaram por causa de depressão pós-parto. Também houve casos de mães que mataram os filhos e tentaram tirar a própria vida. Algumas não chegaram a morrer e foram a tribunal. Segui esses processos, queria perceber o que tinha acontecido.

Conseguia compreender a dor, mas queria perceber o que as tinha levado a esse limite, e o que, às vezes, as fazia regressar. Fiz imensa pesquisa, conversei com muitas mães, li estatísticas e tentei entender quais são as pressões e os sintomas da depressão pós-parto, e quais os desafios da maternidade moderna. Depois, tentei incorporar tudo isso no filme.

E quando é que escolheu a actriz principal? Numa breve pesquisa reparei que ela, Hedwig Tam, faz muitas comédias, digamos, papéis mais comerciais.

Sim, é verdade, trabalhos mais comerciais.

O seu filme ela está completamente diferente do habitual: muito contida, melancólica, à beira de uma corrosiva tristeza. Até a fotografia do filme adquire tons entre o azulado e o acinzentado para aliar-se a essa depressão. Como é que surgiu a escolha da actriz? Foi a primeira opção?

Quando escrevi o guião, não tinha uma atriz específica em mente. Sabia que a escolha seria crucial, porque praticamente todo o filme gira à volta dela e é uma personagem com uma carga emocional muito forte. Então decidi fazer um processo de casting muito sério. Convidei várias actrizes de Hong Kong em determinada faixa etária, actrizes que já vinha a acompanhar há algum tempo. Foram dezenas. Pedi-lhes que lessem partes do guião e fizessem improvisações.

A Hedwig foi uma delas, na verdade, foi a primeira [risos]. Curiosamente, ela não é mãe. Quando apareceu, estava muito magra, com o cabelo curtíssimo, uma aparência quase andrógina. A forma como interpretou a cena convenceu-me imediatamente. Tem uma amplitude emocional enorme, uma sensibilidade que não se ensina. Mesmo sem ser mãe, compreendia a personagem. Acho que é uma pessoa muito empática, trouxe para o teste observações sobre a própria mãe e integrou-as na interpretação.

Pensei: “Isto é interessante.” Até porque, no mercado local de Hong Kong, o público associa-a a papéis de mulher forte, quase “tomboy”. Participou em filmes LGBT, e até numa série muito popular sobre Taekwondo.

Taekwondo?

Sim, de luta! [risos] Por isso achei que seria um desafio curioso vê-la num papel tão diferente: o de uma mãe. O mais importante é que ela me convenceu. O resultado final mostrou isso: muitos ficaram impressionados com a sua interpretação.

Gostava agora de lhe perguntar sobre a figura masculina no teu filme. Como disse — e penso que também referiu numa entrevista para a Alumni School — a presença masculina é quase ausente. Considera que o cinema asiático, e talvez o cinema mundial, ainda não abordou devidamente a responsabilidade masculina no pós-parto, insistindo antes no cliché da mãe como centro absoluto?

É exatamente isso que disse. Sobretudo nas culturas asiáticas, há uma divisão muito clara das funções entre pai e mãe. Como a maioria dos realizadores ainda são homens, acabam por fazer filmes sobre homens. Homens que salvam o mundo, polícias, cientistas, advogados, mestres de kung fu... sempre figuras heroicas. As mães, ou as personagens femininas, aparecem quase sempre na memória, à espera de serem salvas, ou como vítimas sacrificiais. Dizem coisas como: “O papá vem já”, “O papá vai voltar”, “Estamos à tua espera.” A função delas é apenas ser salvas, ou morrer para que o protagonista masculino tenha uma motivação emocional.

Depois o público sente pena do herói — “coitado, perdeu a mulher” —, mas ninguém pensa na mulher que ficou a cuidar da criança até morrer. Hong Kong está muito habituado a esse tipo de narrativa, porque durante muito tempo não tivemos alternativas. Mas agora, com mais realizadoras e até realizadores mais jovens com mentalidade feminista, acho que essa narrativa vai mudar. Vamos começar a ver filmes com heroínas, e talvez, quem sabe, homens a serem salvos.

Vindo de uma formação em Gestão, e reparando que aborda o cinema quase como se fosse uma espécie de gestão de crises: emocionais e logísticas. Por isso pergunto: o que é mais difícil de liderar - um set de filmagens em colapso ou uma família no meio de fraldas e birras?

[risos] Pois... honestamente, prefiro um set de filmagens em colapso. Tive o meu filho em 2019, demasiado cedo, diria. Quando ele tinha apenas seis meses, chegou a COVID e tudo parou. O meu outro projeto teve de ser interrompido. Ficámos todos confinados. Fiquei presa em casa, sozinha com o bebé. Só passado um ano e meio é que tive oportunidade de voltar a filmar uma curta-metragem. Lembro-me de estar no exterior e sentir-me tão feliz. “Voltei. É aqui que pertenço.”

É engraçado, porque quando estou fora de casa, sinto falta de casa, mas quando estou em casa, sinto falta do trabalho. No fundo, esta é a minha confissão pessoal: prefiro um set de filmagens em colapso. [risos]

Mesmo nos dias em que tudo corre mal (claro que isso estraga o histórico do projeto), pelo menos posso tentar novamente. Com um filho, é diferente: cada dia é único. Não há repetições, não há “segundos takes”. O que acontece fica contigo para sempre, molda a tua identidade, a tua relação com o teu filho e quando te tornas mãe, és mãe para sempre. É um papel muito desafiante, e, sim, por vezes confesso que prefiro estar a trabalhar.

37011WEP06_5.jpg

Montages of a Modern Motherhood (2024)

Mas há algo curioso no que disseste, quando cuidamos de uma criança, estamos sempre a aprender, a ganhar experiência, porque nada é estático...

Sim, e está sempre a mudar.

Mas o set de filmagens também não é estático, porque de filme para filme também mudas, evoluis, cresces com a experiência.

Absolutamente! Acho que cresço sempre que faço um filme e depois da COVID, passei a sentir que cada projeto é precioso. Nunca sei se será o último. O cinema em Hong Kong não está numa fase fácil, está mesmo mal. Por isso, valorizo muito cada oportunidade e tento sempre desafiar-me, experimentar coisas novas. Criar um filho é diferente, não há “projetos”, é contínuo, está sempre a evoluir, estamos sempre a aprender.

Mas quando voltei ao set, mesmo com noites sem dormir e dias de rodagem sem fim, dizia à equipa: “Isto não é tão difícil como a fase do recém-nascido!” [risos] Pelo menos aqui não dói em todo o lado, nem há um bebé a chorar no outro quarto e, no cinema, pelo menos sei que o dia acaba, há um fim.

Então termino com esta conversa com a pergunta clássica … quanto a novos projetos?

Sim, na verdade já tenho dois guiões escritos, de estilos diferentes. Um deles é um filme de baixo orçamento, uma história quotidiana, terna e calorosa, sobre uma mãe solteira e o seu filho. Acho que o público vai gostar, especialmente quem gostou do meu “Still Human”.

Não é que queira estar sempre a falar sobre mães, mas esta é uma situação especial que quis explorar. É sobre uma mãe que, para sobreviver, faz entregas tipo Uber Eats, e leva o filho com ela. O público vai perguntar-se: “Porque é que ela tem de levar o filho? O que está por detrás disto?” Aos poucos, o filme vai revelando essa razão. É uma história muito terna, e o outro guião no qual estou a trabalhar é um romance, algo que já não faço há muito tempo.

"O cinema de Hong Kong é pouco visto em Portugal": vem aí o 2º Making Waves para contrariar a tendência!

Hugo Gomes, 24.09.25

ah-ying.webp

Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Está a chegar uma corrente vinda de Hong Kong ao Tejo, parece desaguar no Cinema Ideal nestes tempos. Portanto, façam ondas … O Making Waves, a segunda mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa, acontecerá nos próximos dias, de 25 a 28 de setembro com vista para o rio donde partiram os exploradores para a rota marítima do Oriente, mas longe dessas eras colonizadoras, hoje é Hong Kong a ‘colonizar-nos’ com uma mostra breve e altamente curada do cinema que se pratica naqueles cantos remotos. O que podemos dizer sobre o Hong Kong cinematográfico sem referir os lugares-comuns das vagas anteriores, ou do expoente cinema de acção ou até mesmo desse continente à parte de nome Wong Kar-Wai, esse “bichinho” que conquista corações por esse mundo fora. 

A programadora Vanessa Pimentel respondeu ao desafio do Cinematograficamente Falando … falar-nos desta mostra e as razões para ser uma rota oriental para cinéfilos portugueses. Que segredos cinematográficos ainda tem Hong Kong guardados?

A mostra surge como uma ponte entre Hong Kong e Lisboa, mas também como um gesto de mediação cultural. Quando se seleccionou estes seis filmes, pensou mais em revelar Hong Kong ao público português ou em provocar o olhar que Lisboa tem sobre si mesma através desse espelho asiático?

O programa Making Waves visa a promoção do mais recente cinema de Hong Kong, fora do seu território. É um programa que acontece em várias cidades do mundo, desde a Ásia até à América, em que, cada cidade e cada programação faz a sua própria seleção. Como sabemos, o cinema asiático e, em particular, o cinema de Hong Kong é um cinema menos visto em Portugal - a Ásia é um lugar longínquo.  

Nesse sentido, quando a Blue Lotus Lisboa abraça este projeto, fá-lo com a intenção de dar a conhecer ao público, em Lisboa, o que, do nosso ponto de vista, de melhor se tem produzido no cinema de Hong Kong, deixando em aberto a leitura que quiser ter, sobre Hong Kong, sobre Lisboa e sobre o mundo. Esta mostra é, também, marcada pela presença de público bastante heterogéneo, com diferentes origens e backgrounds, penso que a multiplicidade dos olhares é um dos seus pontos fortes.

Quais os desafios encontrados de uma para a segunda edição da mostra?

Julgo que o desafio mais óbvio de uma segunda edição será certamente superar a primeira. Numa seleção bastante diferente da seleção do ano passado, manter a qualidade dos filmes que propomos era a primeira prioridade, seguindo-lhe a possibilidade de trazer pessoas relacionadas com cada filme para termos as conversas - Q&A  que se seguem às sessões e penso que ambos foram cumpridos. Temos seis filmes premiados ou que marcaram presença em Festivais de Cinema internacionalmente reconhecidos, um restaurado, da primeira Nova Vaga de Hong Kong, de 1983 e, com todos os filmes, temos uma actriz, uma produtora, uma montadora e três realizadores que estarão em Lisboa, para partilharem connosco as suas experiências. Será, sem dúvida, interessante ouvi-los e poder perguntar-lhes sobre o que nos interessa. 

Por fim, e não menos importante, está a capacidade de atrair público que é, naturalmente, outro dos desafios importantes. Temos boas expectativas e acho que podemos conseguir um bom resultado, a ser posto à prova já no dia 25 de Setembro.

allshall1-lvmc-videoSixteenByNineJumbo1600.jpg

All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)

O programa oscila entre novos nomes e um clássico restaurado, “Ah Ying” (Allen Fong, 1983). Que leitura quis propor ao colocar lado a lado estas duas extremidades, o cinema mais fresco e a herança de uma Nova Vaga já distante?

A ideia é sempre criar uma perspetiva mais abrangente do cinema de Hong Kong. Hoje em dia, com a quantidade de títulos que vão sendo restaurados, em Hong Kong e não só, abre-se a possibilidade de trazer à sala de cinema títulos que não poderiam ser revistos, de outra forma. O cinema de Hong Kong é pouco visto em Portugal, no seu todo, ou seja, tanto os títulos mais recentes, como os mais antigos. Trazer um filme restaurado é dar a conhecer mais um título igualmente importante e revelar um pouco mais do património cinematográfico de Hong Kong, dando a possibilidade, como referi acima, de alargar a perspetiva que podemos ter

Há uma evidente intenção de confrontar o público com temas universais — saúde mental, maternidade, género, resistência física — mas sempre ancorados em Hong Kong. O que é que se perde e o que é que se ganha quando se universaliza uma cinematografia ainda marcada por tensões locais?

As cinematografias das mais diferentes regiões podem versar sobre os mais variados temas. A universalidade talvez nos torne mais próximos uns dos outros, mas têm sempre uma abordagem particular, penso que a ‘individualidade’ ou a componente autoral não se perde e enriquece qualquer universalidade. Tomando como exemplo a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, um tema que se discute em vários sítios do mundo e que colide, na nossa sociedade, com princípios católicos, somos confrontados, em “All Shall Be Well” (2024) com a inexistência da possibilidade legal para reconhecer a união de duas mulheres, aqui, numa perspetiva particular de Hong Kong, levantando outras questões como o problema da especulação imobiliária e da habitação  - curiosamente, outro tema mais universal do que seria desejável e que é foco de grande tensão, dadas as limitações naturais do território. 

De resto, em todos os filmes estão presentes características particulares de Hong Kong, desde as paisagens e cenários aos hábitos culturais, às perspectivas sociais e individuais, facilmente as ‘universalidades’ se particularizam nos autores que as invocam, julgo que essa é uma componente de grande evidência e importância, neste programa.

Segundo os press releases, a mostra pretende “criar uma ideia mais concreta de Hong Kong”. Mas não haverá o risco de, ao concentrar seis filmes num curto espaço de tempo, cristalizar uma imagem que, sendo parcial, se confunda com uma verdade total?

A nossa intenção é trazer ao público em Lisboa mais e mais cinema da Ásia, no caso concreto, o Cinema de Hong Kong, abrindo portas ao imaginário português para esta cinematografia de paragens mais distantes. Pensar que qualquer região ou cinematografia se pode fechar em apenas seis títulos, seria largamente redutor. O ano passado trouxemos sete títulos e este ano mais seis, todos muito diferentes entre si, na forma, na estética, na técnica e na temática. Quando se fala em ‘criar uma ideia mais concreta’ não significa fechar um conceito, mas sim torná-lo concreto, através de imagens, sons e histórias que nos são dadas a ver e ouvir e não uma mera especulação ou ideia pré concebida do que é ou pode ser Hong Kong. 

Um exemplo da possível clarificação de preconceito, são os dois documentários que trazemos este ano que, apesar de bastante diferentes entre si, nos mostram a extensa paisagem natural de Hong Kong e não a habitual cidade repleta de arranha céus que estamos mais habituados a ver. Por outro lado, a vinda dos realizadores e atores estreita esse contacto e permite-nos saber mais sobre a realidade de Hong Kong.

e65edb5e-9839-46ff-b78f-2f425ee08146_064407aa.webp

Four Trails (Robin Lee, 2023)

O que me pode dizer sobre os convidados? Da sua importância para uma mostra destas como a sua selecção?

Como já referi em respostas anteriores, a vinda dos convidados é uma oportunidade única para conversar sobre os filmes que vamos ver, mas também sobre como é fazer um filme em Hong Kong e sobre a sua realidade. Qualquer filme que tenha um elemento principal da equipa disponível para falar sobre o seu trabalho enriquece sempre a experiência da sessão a que se refere e permite que o público se relacione com a história e a experiência partilhadas na sala, de forma mais intensa. Por exemplo, este ano teremos a atriz [Hui So-Ying] que protagoniza o filme restaurado “Ah Ying”, o que não é habitual. Por outro lado, será extremamente enriquecedor tê-la entre nós para partilhar a sua experiência, em particular, neste filme que se inspira, em parte, na sua própria história.

Como encara o atual cinema de Hong Kong, tendo em conta que os principais movimentos artísticos, e até produtivos, parecem ter entrado em desuso ou expirado na sua criatividade. Ou existe desde sempre uma ideia redutoramente ocidental quanto ao cinema de Hong Kong?

O cinema, em todo o mundo, tem vindo a deparar-se com variados desafios e as (im)possibilidades de produção são ainda mais variadas e de diversas índoles, estando sempre presente a nuvem da ‘morte do cinema’ com as diferentes dificuldades de financiamento e a pressão para a ‘standardização’ em determinados canais, um pouco por todo o lado. Sou bastante otimista e julgo que a capacidade de reinvenção e a vontade de filmar e de contar histórias pode e tem superado as adversidades, dando lugar a novas estratégias de produção que permitam a concretização de novos filmes. Este programa é, a meu ver, sinal de que o Cinema de Hong Kong não sofre de criatividade expirada e tem, pelo contrário, um património rico e gerações mais velhas e, também, estreantes a produzir cinema de forma autêntica e com qualidade reconhecida.

Por fim, ao trazer para Lisboa esta segunda edição do Making Waves, até que ponto sente que está a programar para a comunidade asiática residente, para o público cinéfilo português, ou, secretamente, para si própria enquanto espectadora que também procura ver o que raramente chega às salas?

Naturalmente, o que nos motiva na Blue Lotus Lisboa é a ligação  que temos à Ásia e essa é base fundamental para um projeto que ambicionamos ver crescer e evoluir na direção de um Festival de Cinema Asiático em Lisboa.

Na elaboração da programação tentamos, como já referi, manter uma qualidade elevada nos títulos apresentados. De resto, programamos para todos os que estejam interessados e que queiram ver esta cinematografia tão importante e de rara visibilidade em Lisboa, sempre na expectativa de podermos cativar e chegar a mais pessoas. Temos todo o gosto em ter nas salas um público heterogéneo, de diferentes raízes e motivações, a riqueza desta mostra está, também, na diversidade e na partilha de perspetivas motivando o diálogo entre universos tão distantes.

Toda a programação poderá ser consultada aqui.