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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Linha de Sombra: 'a shop around the corner' e a conversa com um livreiro

Hugo Gomes, 28.05.25

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Foto.: Mafalda Martins

Bastou um pé dentro do espaço para ser recebido por um sorriso. “Boa tarde, Hugo. Hoje temos a apresentação deste livro.João Coimbra Oliveira, livreiro de profissão, cinéfilo por paixão, aponta para uma pequena edição de capa mole exposta na recepção, trata-se de “Contos das Histórias, Estórias dos Contos”, de António Haddad.

“Vamos ter a apresentação dele hoje.” Acrescenta a informação, para de seguida puxar de baixo do balcão um volume de tamanho generoso. “Mas penso que este te vai interessar: ‘Jean-Luc Godard’, numa edição de Serralves.” Por uns minutos pavoneei o livro na mão e, com entusiasmo, fiz-lhe um gesto de quem quer pedir algo. “Preciso de ti por uns momentos. Dá para irmos lá fora?

Naquele preciso instante, dois clientes exploram os cantos e recantos do espaço — não muito grande, é certo, 30 metros quadrados para sermos exactos, mas com uma voluntária desorganização no centro da livraria: pilhas de livros, revistas e outros coleccionáveis, raridades que só aqui parecem existir. “Este é uma jóia! Para ti, faço um desconto.” João exibe-me “Os Meninos de Ouro”, de Agustina Bessa-Luís, um livro claramente em segunda mão, de uma tiragem há muito extinta. “Se este livro falasse, que histórias teria me para contar sobre os seus antigos donos.” pensei eu.

Seguimos para o pátio que une a Linha de Sombra ao bar 39 Degraus, no primeiro andar da Cinemateca de Lisboa. Por entre a algazarra dos que apenas anseiam petiscar ou matar a sede, há toda uma parede enfeitada por edições de fazer inveja — cartazes e outras curiosidades, uma verdadeira máquina do tempo, de um passado que muitos ali, de passagem, não viveram. João faz um gesto a uma das empregadas do bar: dois cafés e uma garrafa de água de um litro. “Isto fica por minha conta”, apressa-se a dizer. Nesse momento, atravessando o pátio, somos interpolados por Samuel Andrade, um dos projecionista da Cinemateca, a meio do trajecto diário até ao seu “estúdio”, os bastidores onde a 'magia acontece' no Museu de Cinema.Como vai, João?”, acena. “Estou bem, obrigado. E contigo?” responde, fazendo-se acompanhar por um vigoroso polegar para cima.

Inaugurada a 5 de Janeiro de 2015 e com dez anos recentemente cumpridos, a Livraria Linha de Sombrasurgiu numa oportunidade e num momento de inspiração, o desejo de criar uma boa livraria de cinema na Cinemateca Portuguesa, que é uma excelente editora. Fazia todo o sentido que esses livros estivessem disponíveis, e acreditar no espaço era natural”, refere João Coimbra Oliveira, após um rápido sorvo no café.

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Foto.: Mafalda Martins

"Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship"

Essas jóias, as edições próprias da Instituição, muitas já descontinuadas, continuam a ser motivo de peregrinação da cinefilia lusófona e não só. “Esses livros são hoje considerados edições de coleccionador. É muito raro encontrá-los, porque, normalmente, os cinéfilos não se desfazem deles — são núcleos de biblioteca que passam de geração em geração.

João destaca o trabalho incansável da Cinemateca na área editorial: só no último ano, em 2024, foram 20 publicações, incluindo os próprios filmes actualmente a ser digitalizados no ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento]. “Há também vários projectos em curso. E esta minha tentativa aqui, que é mais do que um projecto pessoal, começou com uma ideia apoiada desde o início pelo então director José Manuel Costa, pela Antónia Fonseca e por toda a equipa de programação. Desde o primeiro momento ajudaram, ofereceram livros e tornaram-se até clientes.

João Coimbra Oliveira é hoje visto como uma figura querida dentro das quatro paredes da Cinemateca. Todos os departamentos o conhecem, tratam-no como um vizinho a quem de vez em quando pedem "emprestado o sal". O seu trabalho hercúleo em preservar uma ligação afectiva com a Cinemateca e com o público habitual revela-o como mais do que um mero livreiro, dir-se-ia mesmo, um curador. “Quer dizer, acabo por sentir que estou a prestar um serviço à comunidade. Tanto para os cinéfilos como, até, para a própria Cinemateca. Juntos fomos construindo uma livraria bastante original, que começa a reunir bastantes títulos, inclusive de outros centros.

"A minha abordagem à fileira do cinema é um bocadinho idêntica à fileira do livro. Vem desde a criação à produção, da exibição à leitura e à distribuição."

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Foto.: Mafalda Martins

"Tu n’as rien vu à Hiroshima."

Do interior da livraria é possível ouvir Thomas Newman, a banda sonora do oscarizado filme de Sam Mendes, “American Beauty”. Uma cadência atípica, reconhecível, que se mistura com a algazarra do bar: o tilintar de copos e talheres, conversas alheias, e até a máquina de café a lançar os seus sonoros vapores - mais uma chávena para a mesa 56. Enquanto isso, é a música oriunda da Linha de Sombra que nos encaminha para outra realidade. Ou melhor, para várias. Todas elas impressas naquelas páginas e páginas de livros e folhetins.

É, aqui na livraria está sempre a passar bandas sonoras. É a música que me faz companhia… e também as pessoas gostam. Perguntam de que filme é, comentam… e cria-se ali uma dose, assim, um bocado de... de comunidade a acontecer”, esclarece, apercebendo-se da minha atenção à sonoridade do espaço. “Porque creio que todos os cinéfilos — pelo menos na minha realidade pessoal, na minha experiência de vida — têm uma certa dose de misantropia. Em certos momentos preferem estar sós. E aqui, na livraria, acho que os livros são nossos amigos.

Antes da sessão de cinema, a pessoa pode vir ao espaço do 39° e tomar um copo, comer qualquer coisa, ou vir ver as novidades. É muito comum… mesmo… os clientes habituais, os amigos da Cinemateca, ou estudantes da Escola Superior de Teatro e Cinema, aparecerem e perguntarem logo: ‘Quais são as novidades?’

Criámos o site, e tem sido uma ótima plataforma, até para distribuição a nível nacional e internacional. Temos recebido encomendas de todo o mundo: Indonésia, Brasil… os brasileiros estão sempre muito atentos ao que se vai produzindo cá em Portugal ... mas também de França, dos Estados Unidos… e o catálogo está todo lá, disponível.

Para além da venda de livros, DVDs e outros acessórios cinéfilos, a Linha de Sombra é também vista como um espaço privilegiado para apresentações de obras, eventos e alguns beberetes, obviamente, com os livros e o cinema como pano de fundo e contexto social.

Contam-se entre dois a três por semana, albergando convidados ilustres como Pedro Mexia, Carlos Vaz Marques, Daniel Ribas, Regina Guimarães, Catarina Mourão, Rui Simões, entre outros: críticos, realizadores, poetas, professores, escritores e filósofos. Toda uma gama de personalidades que contribuem para enriquecer a comunidade criada e envolvente da livraria. No decorrer da conversa, atrás de nós, uma mesa já estava preparada para o evento daquela tarde. João não resistiu a lançar-me outro convite: “Tens que ficar, vai ser espectacular.”

“É essa a poesia do quotidiano. Ao mesmo tempo, temos consciência de que este trabalho é também fruto das próprias exigências da actividade editorial e dos amigos, autores e criadores que nos procuram.”

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Foto.: Mafalda Martins

”When the truth becomes legend, print the legend.”

Prometi-lhe o último tópico, e, por sua vez, um dos mais sensíveis para o João: a sua própria editora Linha de Sombra. Lançada em 2017 com a publicação de “O Cinema Não Morreu”, um colectivo de textos do site À Pala de Walsh, popular plataforma de crítica cinematográfica surgida da blogosfera e alimentada por cinéfilos atentos.

Eram pessoas por quem tinha - e continuo a ter - imenso respeito intelectual e humano. Na altura, a livraria tinha cumprido os objectivos traçados desde o início: não ter dívidas e não prejudicar ninguém. Os objectivos foram atingidos. E então pensei logo que a melhor maneira de retribuir todo o apoio que os cinéfilos me tinham dado até então seria publicar um livro.”

Havia toda uma geração que, naquele momento, estava a terminar os seus percursos… em mestrados, em doutoramentos… E, em muitos casos, dos vinte e tal autores que publicámos, muitos desses textos eram primeiras obras impressas. Eu sei que vale o que vale, mas a academia é muito receptiva às publicações. Foi a minha maneira de fazer uma pontuação simbólica  - sem qualquer objectivo financeiro ou económico - junto das pessoas que me apoiaram desde o princípio: por virem à livraria, por visitarem a livraria, por falarem da livraria.

Depois desse livro inaugural, seguiram-se mais dois títulos lançados nos últimos meses. Primeiro, “O Desembarque das Ondas: Uma Antologia de Ingmar Bergman”, organizado por Raquel Nobre Guerra, poeta por quem João nutre grande estima: “É um objecto perfeito. Ela é das melhores poetas da sua geração.”. E, por fim, um segundo volume do colectivo À Pala de Walsh, “O Cinema das Palavras” — uma colectânea de entrevistas a realizadores e outras figuras do cinema.

Na Feira do Livro de Lisboa, os editores brasileiros brincavam: ‘É só ao terceiro livro que uma pessoa se torna realmente editora.’ O primeiro livro é movido pelo entusiasmo, seja do próprio editor, seja do público. Ou seja, tem tudo para correr bem, para ser um sucesso. O segundo… já não. Não tem aquele efeito de novidade. É um trabalho de continuidade. E o terceiro… pronto, é o momento da verdade. Ou a pessoa está mesmo para editar, ou não estáFoi com o terceiro livro que lançámos que eu me apercebi: mais do que editor, sou livreiro.

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Foto.: Mafalda Martins

"Well ...Nobody's perfect"

Um dos clientes que resistia no interior chega ao balcão com uma pequena pilha de livros na mão — a deixa perfeita para encerrar a conversa. “Bem, o dever chama-me.João levanta-se, sai da mesa e regressa à livraria, atravessando para o outro lado da recepção. De novo na pele de livreiro, conversa com o cliente, sugere outros livros, aponta sessões futuras na Cinemateca. No final da compra, brinda-o com um postal. “Uma pequena lembrança.

É a minha vez de regressar à livraria. Faço-lhe um gesto de gratidão e uma promessa: “Guarda-me a Bessa-Luís. Da próxima levo.” Com um sorriso de satisfação, o livreiro pisca-me o olho e despede-se, deixando no ar o compromisso selado. Pequeno espaço no coração de Lisboa, raro, sobretudo numa cidade cada vez mais despida culturalmente (mas isso são outros cinco tostões). Enquanto houver Linha de Sombra — nome inspirado numa das obras preferidas de João, o homónimo livro de Joseph Conrad — estamos garantidos.

Pedro Cabeleira: "Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa."

Hugo Gomes, 03.08.17

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Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

O verão de 2017 faz-se danado! E é com orgulho que a primeira longa-metragem de Pedro Cabeleira tem a sua estreia mundial num dos mais prestigiados festivais de cinema da Europa, Locarno, sob o signo da secção Cineastas do Presente. É uma obra estival que não respira a brisa marítima, mas inspira com tamanha euforia a noite que se abre envolvendo-nos como um só organismo.

Mais do que um retrato de uma juventude perdida num extenso limbo, mais do que a frustração destes seres incapazes de alcançarem os seus respectivos estados adultos, mais do que uma fustigada moldura dos “rapazes da noite”, “Verão Danado” é um filme para descobrir sobre o que nos mantêm jovens e essa ilusão de eterna juventude, embebida como se não houvesse amanhã.

Tive o prazer de falar com Pedro Cabeleira, realizador de um projeto que coloca em xeque não só a sua carreira ainda “verde”, mas a de uma produtora nos seus primeiros passos e de uma distribuição em plena grande aposta.

Para começar, como se sente pelo facto de ter uma primeira obra a estrear num Festival de nome como o de Locarno?

É uma sensação prestigiada, uma experiência nova e, talvez, uma aventura. Até porque nunca estive num festival destes. Mas vou sem grandes expectativas, o meu objetivo, para além de ser o de apresentar o meu filme, é sobretudo descontrair, uma recompensa por estes anos de trabalho na longa-metragem. É bem verdade que esta ida a Locarno talvez traga alguma atenção ao meu filme, porque possivelmente serão mais pessoas a vê-lo, e possivelmente mais se interessarão, o que motivará a outra parcela a querer descobrir o que é isto e integrar tais sensações. Acredito que o papel mais importante dos festivais é levar estas pessoas interessadas em Cinema a descobrirem novas paixões, fazer com que os filmes sejam falados e reconhecidos.

Mas para além de si e da sua carreira, Verão Danado será sobretudo importante para a vossa produtora Videolotion e assim, para a distribuidora FILMIN, que aposta numa estreia em sala.

Verão Danado” representa os “primeiros passos”. Vai ser o nosso primeiro filme, contudo, em termos institucionais não é bem nosso, é da OPTEC e a Videolotion funciona como uma produtora associada. O “Verão Danado" foi produzido no seio desta produtora, portanto, vai ser um passo importante para nos dar a conhecer ao mundo e tornar possível que novos projetos adquiram instantaneamente força. Quanto à Filmin, será sobretudo uma experiência, visto ser a primeira vez que estrearão um dos seus projetos em sala.

Há muito em jogo neste lançamento?

Sim, mas se correr mal este lançamento, ninguém morre, mesmo que para a FILMIN seja crucial resultar. É muito importante que estas plataformas de VOD não estejam em rutura com as salas de cinema, mas sim existir uma espécie de sinergia. Tal como a Amazon que, ao contrário da Netflix, lança os seus projetos em sala. A FILMIN obtém uma posição saudável enquanto plataforma VOD. Efetivamente apoiam o Cinema enquanto formato. Existem filmes que devem ser vistos em grande tela. No nosso caso, nós concebemos o “Verão Danado” a pensar na sua projeção numa sala de cinema e não num ecrã de computador. Desde o visual até ao som, tentamos concretizar uma experiência mais imersiva que o assistir num computador, rodeado por infinitas distrações. No geral, o Cinema e o VOD são formatos diferentes e por isso, contraem linguagens divergentes. Para a FILMIN, este filme tem que correr bem para que a distribuidora possa continuar a lançar as suas apostas em grande sala e restringir o VOD ao pós-lançamento, uma espécie de proteção às estreias cinematográficas.

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Sim, em relação a esse pensar no grande ecrã, em “Verão Danado" é evidente esse trabalho sensorial. Apostou muito, sobretudo, na atmosfera do filme.

Quando estava a pensar no filme e a construir a ideia, uma das perguntas que sempre colocava era qual a validade disto em grande. Existe sempre uma sensação oposta de ver um grande plano num grande ecrã e um grande plano num pequeno. O Cinema é um formato muito específico, dá-te a oportunidade de explorar ‘coisas’ que, por exemplo, em vídeo não são possíveis. Quando estava a filmar “Verão Danado”, refletia constantemente na sensação de que determinada cena ficaria em grande. Houve uma tentativa de distanciar este filme noutro formato, por isso requisitou-se um cuidado especial com as sequências de “festas”, porque eram sobretudo estas cenas que imaginava serem importantes a níveis imersivos para a experiência do filme, apesar de todo ele ter sido pensado para o grande ecrã. A sala de cinema é uma espécie de aquário. 

Mesmo que a tela seja a barreira física, o nosso espírito é absorvido para esse meio, tudo graças a esse efeito-aquário do Cinema e do som que ecoa por toda a sala, literalmente, a envolver-nos. Depois, o filme aposta em sensações muito primárias, relembro a festa em que o nosso protagonista experimenta MD pela primeira vez. A festa torna-se assim, algo quase equiparado a uma orgia, e nesse tempo, o fascínio pelas luzes, pelo psicadélico, pela construção de uma atmosfera, adereça-nos. Isso foi pensado para servir igualmente de uma experiência coletiva para com os espectadores, emocionalmente da mesma maneira que as personagens da tela.

Mas é verdade que o filme arranca com um retrato rural, quase como um engodo. O Pedro tentou enganar o espetador dando-lhe a sensação de “eis mais um retrato da nossa portugalidade” para depois passar a um jogo de estéticas de um mundo marginalmente festeiro e jovial.

Em relação ao início do filme, aqueles são na realidade os meus avós e a minha terra natal. Portanto nós acabamos sempre por filmar o que nos apaixona. E eu sou uma pessoa apaixonada pelos meus avós, assim como também sou apaixonado pelo sítio de onde vim, do sítio de onde cresci e isso para mim faz parte do meu imaginário como realizador. Assim como o cinema é uma oportunidade de mostrar ao mundo aquilo que te fascina, o que te faz apaixonar.

Outra vertente deste começo no rural para depois a ação deslocar-se para Lisboa, foi obtida para conseguir especificar a perspetiva do filme. A perspetiva de quem é de fora da capital, alguém “marginal” que integra esse quotidiano lisboeta. É um contraste de culturas, e o nosso protagonista encontra em Lisboa todo um rol de experiências novas, que não eram possíveis na sua terra natal. Nesse sentido, o filme consegue criar uma empatia com muitos que passaram, ou que passam pelo mesmo, gente de fora que chega a Lisboa e que se depara com uma dinâmica diferente, uma energia não sentida anteriormente, um meio underground, a multiculturalidade, uma descoberta.

Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa. Arrancamos na ruralidade, para a seguir penetrar num mero jogo de football a decorrer na Mouraria. Até dar-mos com uma sucessão de festas, festas e festas, um novo mundo que se abre gradualmente e nos prende a esse magnetismo.

Mas no meio desses festejos e trips, tenta expor um pouco a situação de muitos, mas muitos jovens de hoje. A vida pós-licenciatura, a dificuldade de não conseguir um emprego à imagem daquilo que passou anos e anos a estudar. Existe uma certa frustração entrelinhas neste filme celebrativo?

Sim, diria que o filme tem um lado de frustração. O dos jovens recém-licenciados não conseguirem arranjar trabalho pelo qual estudaram anos a fio, e por um lado esse problema advém da pressão que os pais cometem para que os seus filhos sejam, sobretudo, licenciados. Existe uma ideia de credibilidade numa licenciatura, como um papel que garanta ofícios, e os pais acreditam solenemente nisso e por isso temos imensos jovens a tirarem cursos, mais para poderem satisfazer as inseguranças dos seus progenitores do que propriamente pelas respetivas necessidades. Muitos deles são iludidos com essa ideia e chegam a Lisboa, por exemplo, forçados a tirarem esses cursos, o que motiva, durante o seu processo, um desinteresse e uma referida frustração no pós, quando estes se apercebem do quão difícil é arranjar trabalho.

Mas eu não queria verdadeiramente focar nisso, não pretendia um filme moralista de jovens martirológicos que não conseguem emprego e que porventura “bateriam com a cabeça nas paredes”. Quis sobretudo pegar nesse conceito e retirar esses lados morais, e substituí-los por um certo desleixo hedonista. Quis filmar jovens a divertirem-se, sem pensar no amanhã, evitar aquele rótulo de “geração à rasca” e de coitadinhos, até porque nunca iria tratar os meus personagens, de que tanto gosto, como “coitadinhos”. Soa como uma filosofia superficial, mas tendo em encontrar nessa superficialidade algo mais profundo, com base em sensações e experimentações primárias. De certa forma, vejo todo este mundo profissional e esta constante despreocupação dos jovens em não conseguirem arranjar um emprego enquadrado nos seus estudos, não como uma coisa alarmante, mas como um pedaço das suas jovialidades. Encaro todo este conceito como um descendente daquela temática do Vasco Santana e as suas tias em “A Canção de Lisboa”.

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Em entrevista com Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

É verdade que esta produção obteve um orçamento quase inexistente, e foi graças a essas limitações que “Verão Danado” tornou-se um filme mais instintivo do que subjugado a um argumento ditatorial, um como o cinema dos irmãos Safdie? Quer falar sobre essas atribuições durante a produção e rodagem do filme?

Se o filme tivesse um orçamento realista, vamos supor uns 300 mil, mas como a produção só dispôs de mil euros… bem. O que aconteceu verdadeiramente foi o seguinte: depois de terminar o curso sabia perfeitamente que teria algumas ajudas na execução de uma primeira obra, e o dinheiro conseguido com o orçamento serviu sobretudo para pagar algumas despesas extras, tais como o transporte, a alimentação dos atores, etc. “Verão Danado” foi ajudado em muitas outras formas, não a nível monetário, ou seja, tudo foi concretizado muito a nível de favores até porque os atores não estavam a ser pagos, o material foi a escola que emprestou, os décors também foram todos emprestados, a câmara pertencia a um amigo meu, basicamente foi tudo favores atrás de favores.

Quando sabes que estás a trabalhar sobre estes métodos de produção, tens que estar de mente aberta para saberes que te vais deparar com algumas fragilidades, ou seja, por qualquer momento há um décor que não pode ser filmado, um amigo que afinal não pode emprestar o material, ou um ator que à última hora não pôde aparecer. Não podíamos ter um argumento fechado, porque se tivéssemos, a produção seria uma ruína devido a estes contratempos e bloqueios. O filme tinha essa abertura, que facilmente nos levaria a  resolver essas fragilidades através de soluções criativas. E ao ter um filme assim, tínhamos espaço para sermos espontâneos, para improvisarmos, e eu ouvia os atores e o resto da equipa, estava perfeitamente ciente de qualquer mudança, ou ideia, porque acima de tudo queria realizar um filme com que as personagens dessem a entender que habitavam e coabitavam em Lisboa. Isso também só poderia ser possível tendo um elenco jovem. Mas apesar da experiência, eu não voltaria a trabalhar nestes moldes, também desejo uma produção mais contida [risos].

Em relação a influências? Houve quem apontasse veias de Gaspar Noé no seu trabalho.

Influências diretas não tive. Quando fiz este filme, tentei desligar-me de tudo o poderia soar a influências, e tentei filmar como um amador, até porque não queria começar a minha carreira com vícios de enquadramentos. Queria acima de tudo filmar sem uma planificação formal. Era importante para mim desviar-me do academismo escolar, daquela linha estética, posso gostar ou não, mas queria ter a certeza que ao filmar deste jeito, quase amador, poderia surgir dali o verdadeiro “eu”, aquilo que realmente sou enquanto realizador. Estava disposto a conhecer esse meu lado criativo.

Poderá ter saído algum ou outro lado muito semelhante a Gaspar Noé, nada contra, até gosto dele enquanto realizador, mas no meu subconsciente poderá ter sido possível, até porque ele trabalha muito bem esse ambiente de festa, essa atmosfera no qual tentei trazer para o filme. Mas no geral não queria utilizar referências, queria uma forma pura, e quando estás a filmar como um amador estás a descobrir-te. Poderia ter saído mal, mas eram essas as minhas pretensões. Filmas isso e filmas em excesso e é então que na sala de montagem inicias a tua auto-descoberta e deparas-te com o realizador dentro de ti. E este filme foi isso, a minha descoberta.

Em relação às influências, conscientemente não usei nenhuma cinematográfica, mas utilizei referências literárias que eram o David Foster Wallace e o Pincher. Estes escritores usavam um leque variadíssimo de personagens, imensos gags, faziam espécies de comédias de costumes ao mesmo tempo que possuíam uma veia hiper-realista. David Foster Wallace por exemplo, falava do quotidiano de forma bela, e eu seguindo os seus passos, queria abordar com beleza o contemporâneo que hoje em cinema, é quase escasso. Tentei atribuir um lado estético a esta Lisboa, mantendo-me fora do cartaz turístico. Queria embelezar este quotidiano, estes seus personagens fúteis. Tal como o Foster Wallace e Pincher, tentei abordar esta comunidade, porém, não me sujeitando ao papel de crítico, ao invés disso, honrando-a.

Outra pretensão minha era a de criar um filme coral, não restringindo o filme a um punhado de personagens. É por isso que temos o Chico, que é um protagonista que não se impõe, que se deixa absorver pelos outros, pelo seu redor, por esta minha Lisboa. No fundo este seu redor acaba por tirar-lhe o protagonismo e atribuir ao filme um lado muito geracional. Mas a minha intenção não era fazer um retrato geracional, não era fazer um filme sobre a minha geração, era esse sentido coral que queria, e talvez esse efeito tocasse em inúmeros pontos que o transformariam num retrato dessa natureza.

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Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Em relação a estas novas polémicas do ICA, o qual tem sido apontado como um impasse para muitos jovens realizadores. O que tem a declarar sobre o assunto?

Relativamente ao ICA, isso é uma conversa com “panos para mangas” e não vou tomar nenhuma posição política até porque este filme contou com financiamento do mesmo. O que posso dizer sobre o ICA é que o apoio à finalização foi crucial para conseguir acabar o filme. E em relação a esses tipos de apoio, julgo serem dos apoios mais justos, porque simplesmente não ligam a currículos, nem nada que apareça. Ou seja, o meu currículo não estava a ser avaliado, apenas o meu projeto, etc. Acontece é que o ICA sempre será um sistema falacioso, por mais que se tente lutar contra ou alterar as suas normas, as regras, as alinhas, ou o que quer que seja. O ICA será sempre e continuará a ser esse sistema falacioso. Percebo perfeitamente que não são apenas os mais jovens a fazerem filmes, os mais velhos também fazem e todos querem fazer, e todos eles precisam de dinheiro para o fazerem.

O que acontece é que se eu mudar alguma regra do ICA estarei sempre a puxar a “brasa à minha sardinha” e isso é  entrar em rutura com alguém que esteja numa diferente posição da minha. E eles tentarão mudar as regras também de forma a “puxar a sua sardinha”, sistematicamente. Se alterares uma alinha, estarás sempre a prejudicar alguém de certeza, e a beneficiar outro alguém. Para o bem de todos, tens que jogar esse jogo e sujeitas-te àquilo que o jogo te dá. Por exemplo, existe essa polémica de que não se devia contar os currículos dos produtores e somente os dos realizadores, mas vamos supor que alguém de mais de 60 anos com um número x de filmes, alguns estreados em festivais de nome como Cannes e que fez um n número de espectadores, seja inserido nessa avaliação de currículos de realizador. Logo a média é boa, e eu, sendo um jovem ainda na casa dos 20 com uma longa a estrear em Locarno e ainda não tenho nenhum número definido de espectadores, seria benéfico estar associado a um produtor de um currículo extenso. Caso contrário, não cumpriria a devida média.

É difícil, porque o ICA está a tentar objetivar coisas subjetivas. Tenta objetivar ideias, atribuir parâmetros para avaliar essas mesmas, quando estas são avaliadas de uma forma subjetiva. As pessoas identificam-se com os filmes de formas diferentes. Claro, o que se discute hoje é a SECA, as escolhas de júris, entre os quais, muitos deles estão ligados a distribuidoras como a NOS, etc. Esta novela da ICA não sairá daqui, e a única solução é procurar alternativas, nem que seja discutir estes assuntos no Parlamento. Mas eu não quero tomar uma posição política, porque hoje em dia vivemos numa aldeia global e existem muitos lados aonde podemos ir buscar financiamento. Para mim a luta do ICA é uma luta muito pequena e sinceramente não é algo que valha a pena. O nosso país é demasiado pequeno para nos concentrarmos neste tipo de conflitos.

Para terminar, tem alguns novos projetos?

Filmar um filme na minha terra, no Entroncamento, mas não quero abrir muito sobre ele, porque não quero criar expectativas para o caso de não conseguir cumprir o objetivo. Mas pretendo fazer um filme sobre as pessoas que ficaram lá.

Falando com Sinde Filipe, o revelado Manuel Teixeira Gomes de "Zeus"

Hugo Gomes, 08.01.17

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Sinde Filipe / Foto.: Mafalda Martins

Zeus”, a primeira longa-metragem de Paulo Filipe Monteiro, apresenta-nos a história real de um escritor ascendido a Presidente da República, que passado dois anos de mandato vira as costas ao máximo cargo para viver no anonimato numa Argélia colonial. Esta é a biografia de Manuel Teixeira Gomes, um homem, actualmente, esquecido da memória dos portugueses, que encontra nova vida na interpretação de Sinde Filipe. Falei com o veterano ator, um dos mais queridos da sua arte, demonstrando o quanto sabe sobre esta desafiante personagem.

O que lhe interessou em Manuel Teixeira Gomes?

Manuel Teixeira Gomes interessou-me por vários fatores, como cidadão, exemplar devo dizer, como diplomata, como presidente, mas sobretudo pelo seu lado de escritor. Esse seu lado é grande, pelo que deve ser lido, e irá ser lido.

Mas atualmente a obra de Teixeira Gomes encontra-se um “pouco” esquecida.

Não, muito esquecida, é por isso que este filme é importante. Para trazer à memória dos portugueses esta personalidade tão rica e de grande relevância literária.

Fez pesquisa sobre a personalidade ao integrar o elenco de “Zeus”?

Obviamente que fiz uma pesquisa sobre a personagem. Contudo, devo dizer que já tinha conhecido desta importante figura, mas foi durante a pesquisa e a sua encarnação que tentei descobrir mais e mais sobre Manuel Teixeira Gomes. Tentei impregnar a personagem, espero ter feito justiça.

Ao longo da rodagem, descobriu algo de novo em Manuel Teixeira Gomes que não havia encontrado durante o seu processo de pesquisa?

Não lhe consigo dizer, tenho a noção de que as biografias que li fora devidamente esclarecedoras e clarificadoras quanto à sua personalidade. Não senti, de todo, que ao longo filme tenha feito algumas importantes descobertas. Julgo que não tenho acrescentado muito sobre a sua figura.

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Sinde Filipe a ser entrevistado por Hugo Gomes na Cinemateca Portuguesa / Foto.: Mafalda Martins

O período que Manuel Teixeira Gomes integra, é um período esquecido entre os portugueses. Até mesmo nos manuais de História. Acha importante explorar no cinema esta subestimada época? Visto que exploramos em demasia o período salazarista.

Da mesma forma como referi a figura de Teixeira Gomes, este filme também tem o dever de trazer à memória dos portugueses esta fatia de História pouco falada, os primeiros passos da República em Portugal. E claro, Manuel Teixeira Gomes é uma personagem, que em muitos aspetos, precisa de ser redescoberta e revalorizada nos dias de hoje. Precisamos tirá-lo da sombra.

Manuel Teixeira Gomes foi um homem dividido entre o seu lado artístico – a escrita – com a sua política. Qual destes lados vingou-se na nossa História? Segundo a sua opinião.

Como escritor. Ele quando esteve na presidência não escreveu muito, aliás ser Presidente sobrepôs-se bastante à escrita. Foi como se fizesse uma pausa nesta sua vertente artística, felizmente foram só dois anos. Porque a política não o invalidou de ser o grande escritor, pelo qual deve ser reconhecido.

Ele sempre foi um escritor, acima de político, mesmo na sua fase de diplomata, Teixeira Gomes não desistiu de escrever. Apenas parou temporariamente essa sua arte durante o seu cargo presidencial.

Novos projetos?

Apenas teatro, foi trabalhar numa peça que fora feita por Villaret há muitos anos, “Esta Noite Choveu Prata”.