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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Trapaceiros em world tour

Hugo Gomes, 11.08.24

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São vários os elementos ou características que nos facilmente identificam M. Night Shyamalan numa espécie de autor “perdido” do cinema de género; da recorrência temática da fé, a teatralidade do horror incutido ou dos constantes planos-perspectivas que seguem a ação com perigosa cautela. Na chegada deste “Trap”, somos ‘atropelados’ a um jogo duplo de uma das outras marcas autorais do seu cinema, o constante hino à paternidade. 

O trailer, lançado à meses, deixava no ar o dilema, num abalado concerto de uma popstar, Lady Raven (interpretada e performada pela filha de Shyamalan, Saleka), olhamos de perto para um pai e a sua filha adolescente, a jovem de brilho encantatório perante uma fantasia pueril concretizada - a de assistir ao espetáculo da sua estrela-ídolo - e do outro, um homem na oportunidade de fortalecer laços afetivos com o seu “rebento”. Só que o concerto é um embuste musicado (há constantes paralelismos com o fenómeno da Taylor Swift), uma armadilha para capturar, por fim, um perigoso serial-killer cognominado de The Butcher, esse, que sem segredos é o protagonista, o tal progenitor. Shyamalan aposta nesta premissa o constantemente invocado “Un condamné à mort s'est échappé” (Bresson, 1956), enquanto nós, espectadores, cientes da má índole e vilania do “heroi”, somos desafiados em torcer pela sua fuga, testemunhando a sua criatividade ao encená-lo num plano perfeito e “sem espinhas”. 

A câmara, como é da bitola shyamalaniana, incorpora esse olhar do fugitivo-encurralado, cismado pelos corredores vigiados por forças de seguranças e pelos constantes obstáculos que lhe vão surgindo, um hipotético panóptico foucaultiano, o pensamento do protagonista consolida com a do espectador, este mantém ao nível de reflexão do mesmo. É um exercício, ora esplendoroso na encenação - o filme assume como um gigantesco espéctaculo de música pop - e por sua vez reduzido a esse thriller de tendências B, com um regressado Josh Harnett a indiciar os avanços de Shyamalan naquele que fora um dos calcanhares de Aquiles (a direção de atores). É então que vemos esse gesto escondido, a de um pai (o do próprio realizador) a fornecer à sua filha o seu desejo realizado, enquanto expõe a ambiguidade dessa trama de relações e relações. 

Contudo, o filme tende em ter um segundo ato em que troca de protagonismo, e deixa para trás o “jogo rato-e-gato” ali pomposamente orquestrado. Recordá-nos Wes Craven em momentos, nesse cansaço que é de persistir num só template, com isto ajoelhar-se no seu cognome e reputação, seguir e bajular um plot twist. Salienta-se que “Trap” não foi exibido à imprensa, que segundo se trovoa, como salvaguarda das surpresas encavalitadas que o filme obtém, encostando assim Shyamalan às estratagemas mercantis que Hitchcock executara tempos antes. 

Pois, parece que não é na manutenção do “suspense” que o realizador influenciou-se no mestre. Em nome do twist, da reviravolta, ao género de autor, com riscos e arrojos, só por isso, “Trap” vale o interesse, as suas imperfeições soam-nos a testes no tempo e para o tempo.

Amor e uma Cabana (mais 'Fim do Mundo' como taxa)

Hugo Gomes, 05.02.23

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“Truz … Truz”

A fé sempre foi tema recorrente no cinema de M. Night Shyamalan. Nunca escondeu isso, nem mesmo a religiosidade envolto dessa característica esperançosa … cegamente esperançosa digamos. A fé que nos motiva a combater invasores de outras galáxias, a fé que desencadeia o sobre-humano existente no nosso interior ou até mesmo a fé que nos faz “empurrar” para fora do nosso conformismo ao encontro de um desconhecido libertador (fora das Vilas ou dos condomínios). Neste caso é a fé que “cola” a missa do sétimo dia nesta comitiva de boas-vindas ao armagedão. 

“Quem é?”

Inspirado no livro de Paul Tremblay, Shyamalan presta-se ao enredo de visitas (mais uma vez), com quatro desconhecidos que “batem” à porta de uma cabana no seio da floresta, residida por um casal gay e a sua adoptada filha. Após atos de resistência, o casal, literalmente de “mãos atadas”, é forçado a escolher entre salvar o Mundo (a Humanidade como quiserem especificar) ou salvar a família. Enquanto a derradeira decisão vem ou não vê, uma cerimónia de destruição é encenada no hall de entrada da “cabine”, um rito em invocação da prescrita praga, cada uma delas libertada após a “queda” de uns dos seus anjos. 

“O Apocalipse”

É uma história de contornos bíblicos, requisitado ares do Livro das Revelações ou até mesmo o Sacrifício de Isaac por Abraão, só que desta vez não existe alados salvadores de última hora, existe sim, um clima em constante joguete com o espectador, entre a realidade aí “fabricada” ou a negação com vias de embeber o pior da Humanidade, a sua auto-destruidora loucura. Através desta estância entramos em um outro tema, constantemente referido de forma latente, que é o contacto de Shyamalan com a pós-verdade e as suas vertentes mais delirantes. Na ante-descida da cortina em “Glass” - onde a viralidade das “imagens reais” enviadas e divulgadas nos telejornais revelam ao Mundo uma “outra realidade” - somos impingidos por um paralelismo involuntário ao fenómeno das “fake news” e a dicotómica resistência / assistência - em “Knock at the Cabin”, por sua vez, leva-nos ao desconforto desse choque entre realidades, ora cedendo à “mitologia” cristã de destruição e criação, anjos e demónios, ou persistência no esqueleto da crença enquanto paranóia colectiva (que bem sabemos ser fruto das inúmeras teorias da conspiração). 

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“O Apocalipse quê?”

Mesmo que a obra seja um “filme fechado” (aliás, Shyamalan nunca é aberto a sugestões, somente a representações ou alegorias), “Knock at the Cabin” pode encarnar essa leitura pertinente, sem nunca iludir o espectador para o que “lhe bate à porta”. E o que realmente vem não é o “Fim do Mundo”, mas a encenação do apocalipse como manda a bitola de Shyamalan através da sua constante teatralidade em prol da subversão do género (seja as mitologias impostas de Glass a Dunn a "Unbreakable", ou as regras de segurança em “The Village”, ou até mesma a desconstrução em modo “livro de manual” de “Lady in the Water”). Há com isto uma plasticidade, ou será antes embuste, para com a própria matéria, até porque o realizador trata os seus filmes como ensaios, seja de género ou da ginástica do “plot twist”, contudo, convém afirmar que "Knock at the Cabin” não é dependente do seu final, este, cuja “surpresa”, joga consoante a fé do espectador em relação ao enredo ou à farsa. 

O Apocalipse ou o sacrifício?"

Obviamente, que a crença em Shyamalan não ‘renascerá’ aqui caso tenha-se dissipado há muito, ou até mesmo o cético não sairá daqui “convertido”, isso é paleio para outra conversa e para outra ocasião. Porque às “portas” do trágico desfecho do mundo, o realizador demonstra a capacidade em arquitetar a obra para a sua iminente destruição, portanto, crentes, os seus travellings de percepção encontram-se “vivos”, não vale a pena desesperar. É preciso muito para que tais gestos desapareçam ao ritmo da Humanidade aqui condenada.

A "Coisa" de Jordan Peele ...

Hugo Gomes, 18.08.22

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Nope (Jordan Peele, 2022)

Ao terceiro filme e com o sucesso garantido nos dois anteriores (seja de crítica, público e do culto entretanto gerado), Jordan Peele adquiriu um cognome de “mestre do terror”, automaticamente contestado pelo próprio, que respondeu com John Carpenter como o merecido detentor do título. Nesta instância, tornou-se fácil a comparação de ambos os cineastas nas diferentes resenhas, principalmente quanto à mistela de elementos (o western no coração de tudo) em função de um terror aparentemente descomprometido (no caso de Peele o tal júbilo opera sempre em concordância com as suas preocupações sociais). 

Contudo, deparei-me com “Nope”, um exercício em terreno da ficção científica (ou será antes uma distopia americana à imagem do que tem construído até então), numa linhagem à lá Spielberg, trazendo o certo minimalismo e transfusões hitchcockianas dos primeiros filmes desse realizador (refiro a “Duel” e obviamente a“Jaws”). E não é por menos que muitos dos “catchphrases” envoltos do marketing deste filme “vendem” a ideia de uma criação de fobia cinematográfica (““Nope” faz dos céus, aquilo que “Jaws” fez com as praias” é o que tem-se banalizado por aí). Porém, é cedo para cair nessas “armadilhas mediáticas”, não negando com isto a aproximação desses dois mundos. E é em equivalências spielbergeanas que entra o terceiro e mais próximo “parentesco” de Peele - M. Night Shyamalan (dos últimos cineastas que levava o lendário Bénard da Costa a deslocar-se para uma sala de cinema mais próxima) . 

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Nope (Jordan Peele, 2022)

E sabendo que no Cinema nada se cria, tudo é reformulado e apropriado através de uma cadeia de influências atrás de influências, é em Shyamalan no qual deparávamos, em tempos, com o genuíno Spielberg perdido, principalmente nessa tendência de criar ameaças minimalistas, conduzindo as suas personagens a uma aliança cívica em "detê-las". Não é por menos que “Signs” (2022) e “Nope” ressoam pertencer ao mesmo universo, estabelecendo esse "heroísmo" - a “americana” jornada do herói - em que um viúvo agricultor (Mel Gibson) instalou como derradeira parte da sua existência (assim como Henry Fonda assumiu a luta entre classes nas “The Grapes of Wrath” de John Ford) na óptica de Shyamalan, partilhada para com um criador de cavalos (Daniel Kaluuya) na mão de Peele

Mas não é só essa inerência que nos faz sonhar com um herdeiro “shyamaliano”, o realizador demonstra com “Nope” abordagens ainda mais vincadas com o imediato através de uma planificação em concordância com a natureza do olhar. Se Shyamalan utilizou tal artifício na sequência do comboio em “Unbreakable” (2000) - com a câmara a responder aos chamamentos de duas personagens a bordo [Bruce Willis e Leslie Stefanson] e assim induzindo um travelling que mimetizava a posição de uma “terceira figura” [Samantha Savino], ou nas inúmeras passagens no seu último “Old” (2021), cujo tempo relativo era acompanhado por um jogo de “fora-de-campo” - Peele no “flashback” de Gordy reproduz essa aliança do olhar com o travelling aí executado. 

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O efeito ping-pong reproduzido pela câmara na sequência de "Unbreakable" (M. Night Shyamalan, 2000)

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O travelling desfeito e a revelação da perspetiva em "Unbreakable" (M. Night Shyamalan, 2000)

Embora a convergência, existe uma característica bem reconhecível em Shyamalan que Peele não partilha aqui. Sim, esse mesmo … o “twist”, a reviravolta em bom português … nesse aspecto deixa-se levar pelo mistério, pela não-resolução e como tal, reforça o seu tom respeitavelmente minimalista. O resto, o espectador poderá fazer as somas como trabalho de casa. Só que não é longínqua essa perda do “explicadinho”, recordo que Peele condenou a narrativa da sua metáfora em “Us” (2019) ao criar uma lógica com o seu “twist final”, o “ganchinho” desnecessário sabendo que o mistério prevalece em condições mais saudáveis (já em “Get Out”, o “twist” nunca é totalmente consolidado, visto que desde o início do filme o espectador tem a percepção de que o aparente é somente isso, aparência).

Como tal, “Nope” funciona como esse exercício de terror, simples, direto e sem “espertices” para mais do que o dado, apenas o orbitar da sua proposta é que somos fomentados com um universo em construção (mais do que apenas pistas para resolver o enigma). E como não poderia deixar de ser, o realizador deixa a sua própria marca, respeitando, e muito, nos propósitos do género do terror - abordagens a problemas sociais formuladas em alegorias - e talvez seja isso que as comparações com o Carpenter são trazidas “à baila”. Aqui, em “Nope”, é o discurso de uma desconstrução social envolto na génese do cinema: "Did you know that the very first assembly of photographs to create a motion picture was a two-second clip of a Black man on a horse?". 

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Horse in Motion (Eadweard Muybridge, 1878)

Eadweard Muybridge e o “Horse in Motion” [1878 - conjunto de fotografias que projetadas em sequência demonstravam um cavalo em movimento], o berço da própria “imagem em movimento” são à luz de Peele desvendadas a um espectador que as esqueceu (é para isto que deve ser utilizado o dito “cinema popular”!). Embora o seu uso revele um ativismo de punho encerrado às declarações do Cinema enquanto “arte parida por brancos”, sem o encarar com a imunidade crítica (conhecemos o nome do cavalo, Sallie Gardner, só que desconhecemos a do jóquei negro imortalizado para posteridade, eis o slogan captado). 

Nessa prol (e para a prole), Jordan Peele ostenta a sua natureza, fertiliza o hype envolto à sua figura, solidificando como o artesão do terror (rasuro, substituo por “cinema de género”). Curioso que a atenção que tem conquistado, filme após filme, advenha dos temas que invoca, mas felizmente, as sabe trabalhar como material simbólico, criando as tais e referidas metáforas, distopias, ou simplesmente americanos. “Nope” é parte desse hectare, como bem refere o seu protagonista: “What's a bad miracle?”.

Nunca gostei de domingos, porque por vezes eles "doem"

Hugo Gomes, 13.03.22

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The Accidental Tourist (Lawrence Kasdan, 1988)

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Kiss of the Spider Woman (Hector Babenco, 1985)

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The Village (M. Night Shyamalan, 2004)

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Altered States (Ken Russell, 1980)

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A History of Violence (David Cronenberg, 2005)

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A.I. Artificial Intelligence (Steven Spielberg, 2001)

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Body Heat (Lawrence Kasdan, 1981)

 

William Hurt (1950 - 2022)

Não houve "sexto sentido" para estas férias no paraíso

Hugo Gomes, 31.07.21

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Não confundamos subtileza com sugestão: M. Night Shyamalan nunca seguiu a primeira e isso nota-se no seu mais recente filme, centrado na intriga de três famílias “enclausuradas” numa praia remota por quem o tempo passa a velocidade anormal. Ou, diríamos mesmo, quase sobrenatural.

Inspirado numa BD francesa de Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters intitulada “Sandcastle” (“Castelo de Areia”), este “Old” poderia usufruir-se como um exercício de surrealismo e de metáfora visual em relação ao nosso comum medo da hiperatividade temporal, do constatar das nossas mudanças corporais, ao estilo do “body horror”, ou da experiência amargurada e inconsolável que é o de testemunhar os nossos entes queridos a desvanecer-se perante os nossos olhos, como os tais castelos da areia “acolhidos” pelas ondas do mar.

O tempo destrói tudo”, frase célebre e imortalizada no genuíno drama temporal de Gaspar Noé – “Irréversible” – poderia situar-se aqui como uma boa nota de cadência. Infelizmente, a tal subtileza permanece na matéria-prima (a BD), mas o filme segue por uma outra via para encontrar um fundamento para o que não tinha explicação, tentando com todo este embrulho concentrar-se na materialização de teorias de conspiração, um jogo habitual de Shyamalan. O resultado de tudo isto é que se perde a humanidade. Aliás, ao sucumbirem pelas artimanhas do tempo, pouco resta ao espectador para consolidar uma ligação com estas condenadas personagens, mesmo nos momentos em que elas se redimem ou exibem o seu valor emocional. E isto deve-se ao facto de não existir um trabalho de composição afetiva ou sequer psicológica, que seria (e será) um factor em jogo neste falso filme de cerco.

Shyamalan podia e devia ter investido nas suas personagens, mas preferiu ficar-se por caricaturas. Desde a introdução do seu leque de “vítimas”, o espectador pouco conhece sobre os seus motivos, as suas aflições, os seus medos e até mesmo as suas personalidades (Gael Garcia Bernal, por exemplo, é um avaliador de seguros e grande parte do seu discurso deriva disso mesmo). O que vemos não são mais do que condenados a merecer a sua decadência numa prisão. E “Old” precisava mesmo de personalidades por quem nos pudéssemos afeiçoar, estabelecer laços de cumplicidade e torcer para que contrariasse o seu "destino".

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Em relação ao poder da "sugestão", as transformações corporais e mentais provocadas pela passagem do tempo são terreno fértil para o “body horror”. Nesse aspecto, há que louvar Shyamalan por não seguir o traço óbvio, pois o filme não é grotesco, preferindo jogar diversas vezes com o fora-de-campo, com o que não é visto, mas automaticamente apercebido. Contra todas as colagens a Spielberg que a imprensa americana tem tentado ao longo dos anos, o realizador é um real herdeiro de Jacques Tourneur (1904-1977), um cineasta cuja obra permanece um guia para sugerir aquilo que os nossos olhos não alcancem.

Com vários truques e tiques, “Old” revigora os seus contornos de "thriller" de prestígio, acima do cinema "série B" que não assume de forma alguma mas ao qual se mostra eternamente grato. Infelizmente, essa veia de vincada absurdidade deveria funcionar como o seu ponto forte, face ao desprezo de Shyamalan por outras realidades, mas o que sobra é um filme que cobiça ser mais do que é. Se “Old” fosse um real disparate do início ao fim, conseguiria colocar-se ao nível do surrealismo da história e do cinema do seu criador. Mas o que fica é uma obra frágil constantemente a cair e só o tempo dirá se merece um dia ser vista com outros olhos...

Estará Shyamalan fora de tempo?

Hugo Gomes, 26.07.21

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M. Night Shyamalan perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem e a resposta alcançada é esta série B que não assume totalmente a sua natureza absurdista. Inspirado na BD “Sandcastle” [Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters], “Old” é uma construção arenosa que se apoia na incoerência e nos pesadelos comuns e coletivos como uma suposta metáfora visual. Contudo, o vento e as marés derrubam castelos e outros edifícios moldados pela areia humedecida (há mão de produtor aqui, assim acreditamos), porque se senão fosse isso a invocação se manteria até ao fim. Não podemos negar que é um filme à lá Shyamalan … sem dúvida! Agora se era o idealizado, bem, isso é outra história e em outro tempo.

Cada um com a sua infância, cada um com o seu Cinema

Hugo Gomes, 01.06.21

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Good Morning (Yasujiro Ozu, 1959)

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The Childhood of a Leader (Brady Corbet, 2015)

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Capernaum (Nadine Labaki, 2018)

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Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)

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Home Alone (Chris Columbus, 1990)

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The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)

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Let the Right One in (Thomas Alfredson, 2008)

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Little Fugitive (Ray Ashley & Morris Engel, 1953)

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The Florida Project (Sean Baker, 2017)

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The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999)

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The 400 Blows / Les Quatre Cents Coups (François Truffaut, 1959)

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The Kid (Charlie Chaplin, 1921)

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The Last Emperor (Bernardo Bertolucci, 1987)

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Zero to Conduite / Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Jean Vigo, 1933)

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Bicycle Thieves / Ladri di Biciclette (Vittorio di Sica, 1948)

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Village of the Damned (John Carpenter, 1995)

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My Life as a Zucchini / Ma vie de Courgette (Claude Barras, 2016)

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The Boy with Green Hair (Joseph Losey, 1948)

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Aniki Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Cinema Paradiso / Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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Come and See (Elem Klimov, 1985)

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Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955)

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E.T. the Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

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André Valente (Catarina Ruivo, 2004)

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Ivan's Childhood (Andrei Tarkovsky, 1962)

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Nana (Valérie Massadian, 2011)

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Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1981)

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Poltergeist (Tobe Hooper, 1982)

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800 Balas (Álex de la Iglésia, 2002)

Quem são os Críticos para definir o que é divertido?

Hugo Gomes, 04.03.21

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Lady in the Water (M. Night Shyamalan, 2006)

Não existem palavras mais nocivas para a Crítica de Cinema do que "divertido" e "aborrecido". Ambas condicionam o pensamento e criam uma sensação de definir por via da consensualidade os dois estados de espírito. Além do mais, o uso das mesmas são sintoma da falta de ideias e argumentação.