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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma pizzaria para lá do Armagedão

Hugo Gomes, 29.06.24

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A demanda pela última pizza nova-iorquina, o macguffin que se reúne a outros adereços de Fim do Mundo; que podemos contabilizar o aperto na Bíblia como recordação da Humanidade em “The Day After Tomorrow”, de Roland Emmerich, partilhada numa versão em braile em “The Book of Eli”, os twinkies como obsessão de Woody Harrelson em “Zombieland”, ou ainda mais “longínquo” dessa impregnação de Apocalypses cinematográficos, os livros, essas páginas agora entregues à mente dos errantes que se auto-baptizam por “homens-livros” em “Fahrenheit 451”, escrito por Ray Bradbury (com adaptação célebre de François Truffaut). Isto para dizer que às portas do Armagedão todos procuram ou preservam algo, esse mesmo encarado como uma negação face à extinção civilizacional, e no caso de “A Quiet Place: Day One” esse “objeto” é uma pizza, o que fará os protagonistas se moverem por uma Nova Iorque abandonada ao silêncio, salvaguardado por uma espécie alienígena invasora, que para quem assistiu aos anteriores “A Quiet Place” sabe em antemão que são sensíveis e atraídas pelo ruído (piada mortal o facto que terem “aterrado” na cidade mais barulhenta). 

Aqui, o empenho de John Krasinski nos referidos exemplares, a tentativa de um filme de família nos confins do Mundo (o desejo desse cinema para todos é trazido com a estreia do reconhecivelmente familiar “If: Amigos Imaginários”), organizou-se como a sua estreia em plena na realização, prometendo, e convém afirmar o fracasso daí exercido, o de executar uma obra com o receio da barafunda sonora, uma história, que registando as qualidades muitas vezes perdidas pelo cinema sonoro, a de ser perceptível através de movimentos, expressões e toda a semiótica ali, narrativamente falando, viável. Porém, a música intrusiva abandona a ideia fulcral, apenas dando espaço de manobra a Krasinski apresentar-se como um discípulo das lições fundamentadas de Spielberg neste reconhecível jogo de cinema para massas. Hoje em dia, arriscamos afirmar que é o homem mais capaz de mimetizar os passos do cineasta de “Jaws” e “E.T.”, mas só o tempo nos dirá obviamente. 

Quanto a “Day One”, Michael Sarnoski (“Pig”) assume o cargo e estabiliza o estilo e arquitetura do franchise, e como o título indica é uma prequela, o início da iminente extinção. No centro está Lupita Nyong’o, como mulher em estado terminal num Mundo que parece estar no mesmo modo, tenta sobreviver por entre uma “Big Apple” transformada em escombros e ninho destas vespas extraterrestres (o visual é que continua como enfadonhamente descaracterizado), na companhia do seu gato Frodo (bichano que fará delícias das audiências) e de um estranho (Joseph Quinn) que parte com ela na busca do seu referido “macguffin”. 

Ao encontro dessa tal pizzaria, perante a destruição e a possibilidade daquele “bem” proustiano ter desaparecido à face da Terra, uma imagem depara-se entre os dois sobreviventes, rendidos à sua desintegração no mundo, de joelhos no asfalto e rodeados de todos os sinais destrutivos possíveis, até uma labareda ascender-se do esgoto como um convite danteado. Esta imagem perdura por alguns segundos mais, e no simbolismo apocalíptico adquire uma carga emocional na sua estética, dois sujeitos, um com muito para viver, outra sem nada e a contar os dias, um felino no meio como anjo de guarda, abraçados, consolidando os seus lamentos, lutos e aceitam por fim o seu destino.    

Jordan Peele do outro lado do espelho

Hugo Gomes, 21.03.19

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Tal como no anterior “Get Out”, “Us" é um filme sobre o medo incutido na sociedade que vivemos atualmente. As claras alusões aos eventos mediáticos no nosso tempo parecem ser acolhidos num produto que desesperadamente tenta ser série B, mas a confiança de Jordan Peele após o sucesso da sua primeira longa-metragem leva-nos a um objeto dependente da indústria onde se insere.

Prometiam ser umas férias em família num paraíso qualquer, mas torna-se automaticamente num pesadelo com a chegada de um estranho grupo que lhes invade a casa. Por mais estranho que pareça, estes invasores são versões sádicas deles próprios, sujeitos que se autoproclamam como “Nós“ (“Us”). As evidências são claras, Peele cede ao seu intelecto cinéfilo que recita todo um contingente de obras à mão. Nada contra às referências, mas ao incuti-las como brindes perante a inaptidão de um enredo que se desenrola nos jumpscares “limpinhos” e nos plot twists (sendo que o ‘final” já se adivinhava a léguas e não faz qualquer sentido para a narrativa).

Encontramos “Funny Games” salteados por aqui, um Romero e os treinos básicos para o seu “Twilight Zone”, a estrear brevemente na TV. “Us” é, fora esses exercícios contidos, um filme que se pavoneia perante a sua “astúcia” ou a carência desta, no preciso momento em que se explica totalmente não dando ao espectador a vontade de interpretar as próprias imagens, como havia sucedido com “Get Out”. Claramente que apontamos aqui, neste díptico, um renascimento do cinema de terror negro, que anteriormente era visto como negligenciado e marginalizado na nossa indústria. Tendo como impulso a era do blackexplotation nos 70, que curiosamente garantiu-nos versões negras de Frankenstein ou Drácula (ou Blackula), a personagem do negro no cinema de terror ganhou sobretudo legitimidade com o protagonismo em “The Night of Living Dead”, de George A. Romero, isto após anos e anos de secundarização. Contudo, essas personagens raramente vingaram numa indústria dominada maioritariamente por brancos, sendo que as escassas invocações no cinema de género nunca concretizaram o sucesso comercial [(re)descubram “Tales from the Hood”, de Rusty Cundieff, de 1995].

Jordan Peele, em conjunto com o produtor em ascensão Jason Blum, conseguiu tal feito com “Get Out” e “Us” segue o mesmo caminho. Mas as boas intenções não fazem filmes e esta segunda obra, mais pretensiosa que a anterior, apenas quer ser o mesmo filme que tanto critica: um objeto fácil, quer na planificação, quer nos elementos inseridos, ou no medo de sujar as mãos, que vinga apenas pela dualidade de Lupita Nyong’o (o seu melhor papel) e pelo eterno conflito de Peele em tornar-se um autor de género, nem que para isso replique, como é possível ver aqui, alguns gestos de Hitchcock.

A matemática de Jordan Peele resulta em génio?

Hugo Gomes, 19.03.19

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Jordan Peele banha-se no sucesso de Get Out e joga-se de cabeça a uma mescla de referências e jump scares fáceis. Aliás, é isso mesmo, Us é um filme fácil em todo o seu registo. Um Funny Games com cruzamentos de Twilight Zone e Crazies de Romero. Uma equação que parece apetitosa? Olha que não. De tudo isto, ao menos, viva a Lupita Nyong'o.