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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Todo Comenzó por el Fin: um adeus a Luís Ospina

Hugo Gomes, 28.09.19

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Luís Ospina na Cinemateca, durante o Doclisboa 2018

Há uma honestidade intelectual em Luís Ospina.” Era a frase feita que nos vendiam quando da sua vinda à Cinemateca de Lisboa, no período correspondente ao que Doclisboa lhe dedicava numa retrospectiva integral em 2018.

Nesse mesmo ano notava-se na sua figura uma certa fragilidade. O tempo não lhe estava a ser generoso (foi-lhe diagnosticado cancro alguns anos antes), porém, era identificável a sua resistência. O cineasta e cinéfilo de “boa raça” colombiano manteve-se incansável, presenciando todas as sessões e inclusivamente indo ao encontro com os espectadores. Como uma espécie de “teaser”, antes da projeção, ele falava sobre as respectivas produções, os pós e contras, as suas percepções, confirmando aí a sua honestidade para com o seu legado.

Era um realizador que caiu no erro de explorar o miserabilismo naquilo que apelidava de “porno miséria”, até por fim encontrar o conforto na busca pela dignidade dos mais pobres, tendo concretizado “Agarrando Pueblo” com Carlos Mayolo, como um “antídoto (…) para abrir os olhos dos espectadores quanto à exploração por detrás do ‘cinema de miséria’ que converte pessoas em objetos“, segundo o seu manifesto de 1978. Apesar de ter estado presente em todas as sessões, o colombiano não conseguiu estar presente no nosso marcado encontro. No dia seguinte, a curadora da retrospectiva (Agnès Wildenstein) veio desculpar-se da ausência e, em jeito de confissão, disse-nos que o estado de saúde de Ospina piorava a olhos vistos e que nessa altura encontrava-se demasiado fatigado para se encontrar com a imprensa.

Confesso que não guardei rancor por ele ter faltado ao seu compromisso, pois notava-se a léguas que Luís Ospina mantinha em segredo, apesar de em vão, as suas fraquezas, neste caso o tempo que lhe restava, e que o próprio pretendia transformar numa eternidade.

Se o seu objetivo foi ou não foi cumprido, só o tempo dirá, mas até lá há que sentir o pesar. O Mundo perdeu um dos seus grandes autores marginalizados, que mesmo sob o registo de duas longas-metragens de ficção que operaram como experiências de género, foi no seu trabalho documental que costurava questões sociais e culturais do seu país, imortalizando os seus amigos artistas e do “povo” que até à sua chegada não tinham voz, que deparamos com um incalculável legado.

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Agarrando Pueblo"

Nascido na cidade de Cali, em 1949, Ospina estudou cinema na UCLA (EUA) e concretizou o seu primeiro aperitivo cinematográfico ao adaptar o conto de Eróstrato de Sartre numa abordagem livre em Acto de fé. A sua paixão pelo cinema norte-americano levou-o diversas vezes a revisitar, quer no documentário sobre os filmes mudos de Hollywood (“Slapstick: La Comedia Muda Norte Americana”, 1989), quer na influência nas suas tentativas de enriquecer a arte de contar histórias no cinema colombiano (“Pura Sangre” em 1982 e “Soplo de Vida” em 1998, terror e noir com crítica social injetada).

Contudo, foi com isso mesmo, a vénia ao cinema colombiano, oculto por esse mundo fora, que Ospina consultava constantemente como sua fonte inspiracional. Procurou o primeiro filme mudo do seu país em “En Busca de “Maria”” (1985), percorreu o seu cinema em “De La Ilusión al Desconcierto: Cine Colombiano 1979 – 1995” (2007), e prestou homenagem ao seu amigo crítico Andrés Caicedo, “Unos Pocos Buenos Amigos” (1986), com o qual fundou a revista “Ojos del Cine”. Quanto às suas amizades, com o cineasta chileno Raoul Ruiz filmou uma curta em modo “cadáver esquisito” denominada de “Capítulo 66”.

E foi através desses vai e vem pelo património cinematográfico que Luís Ospina revelou pela primeira vez os seus problemas de saúde, mais concretamente em 2015, num olhar ao chamado Caliwood, grupo cinematográfico de Cali (também fundado em conjunto com Andrés Caicedo no anos 70), em “Todo Comenzó por el Fin” (2015). Como premonição, a morte por fim visitou-o a 27 de setembro de 2019, em Bogotá, onde estava radicado.

Antes disso, esteve presente no FidLab em Marselha, em junho deste ano, em busca de financiamento para um novo projeto: o de pegar em doze filmes mudos colombianos e montá-los como uma obra imaginária. Mesmo não concretizado, é um final digno de um cineasta. Luís Ospina morreu aos 70 anos, mas morreu na paixão daquilo que tanto amou: o Cinema.

"Soplo de Vida": citando o "noir" em negro

Hugo Gomes, 24.10.18

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Luis Ospina pode muito bem ser referenciado como um denunciador de uma realidade ocultada, a divulgação de uma pobreza extrema na Colômbia, captada para o grande ecrã, o qual atravessou o Globo, conquistando assim os mais ímpares cinéfilos. A sua forte conotação política sempre o colocou debaixo de muitos olhares, da admiração e até ao desdém, tudo orientado para o tornar num dos mais importantes cineastas da América Latina, hoje uma voz esquecida, mas sem com isso negada essa relevância. Os documentários da precariedade e de contexto social, as “reportagens” disfarçadas de ensaios cinematográficos, são tidos como as suas marcas autorais, porém, não só a realidade imprimida fez parte do seu currículo. A ficção também está no cardápio, neste caso duas fitas que realçaram, acima de tudo, a sua fervorosa cinefilia.

Se em ’82 concretizou um exercício de terror que misturava vampiros com a habitual crítica à sociedade colombiana com “Pura Sangre”, foi em ’99 que se despediu por fim desta visão ficcional. E fê-lo sem o saber em antemão, com uma homenagem ao seu género predileto, o noir. Tal como o próprio afirma com tamanha convicção, o cinema de género sempre lhe deu o prazer e dentro desse leque – diversas vezes restringido a prazeres pecaminosos por parte de muitos cinéfilos -, Ospina decide aprofundar os seus conhecimentos quanto ao universo do chamado “filme negro”. Citando o incontornável cinema norte-americano, os franceses e porque não os exemplares mexicanos, “Soplo de Vida” é fortalecido como uma revisão dos códigos dos mesmos, mas evitando por completo o formato de best hits.

Invocando à memória os célebres antepassados de Hollywood, damos por nós transportados para uma Bogotá suada e suja, embelezada pelas cores quentes que nos remetem automaticamente aos trópicos ao invés das cidades frias, enevoadas e contrastadas com as pálida pele dos seus artistas na indústria que tão bem conhecemos. A voz-off está lá, como “manda a sapatilha”, a narração por parte de uma polícia renegado, agora convertido em investigador privado de gabardine “melvilleano“, Emerson Roque Friero (como gosta de ser chamado), pronto a recontar o seu Caso. Colocamos em maiúscula para enfatizar o signo detectivesco, o Caso é a essência da medula de qualquer investigador do noir. Singular e ao mesmo tempo pluralizado e homogéneo, este, com toda a previsibilidade, envolve uma mulher (quiçá, duas).

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Por entre flashbacks, dentro de mais flashbacks (a separação entre as camadas temporais distingue-se pela sua fotografia), “Soplo de Vida” percorre todos os lugares-comuns do subgénero; as femme fatales (Flora Martinez), as identidades trocadas, a corrupção e politicas à mistura, a amargura melancolizada, as juras de amor ditas em cenários criminosos e a água ardente (aqui a substituir o eterno whisky com gelo). Mesmo sob o efeito de contraste, Luis Ospina mimetiza os códigos, fazendo questão de relembrar ao espectador que o que está a ver não foge da mera reciclagem. “Os mortos são todos iguais”, assim é afirmado na morgue perante as vítimas da violência mundana, citação que encontra cumplicidade num outro desabafo: “os homens são todos iguais, não existem nem bons, nem maus, apenas homens”. Possivelmente, poderíamos terminar por aqui colocando um ponto final na equação, é um mero exercício, não de estilo, mas de memória cinéfila e Ospina passou o teste, confundindo-se com o protagonista, caracterizado como “um homem de princípios (…) e de fins”, de ideias e de resoluções.

Crimes passionais e a ambiguidade costumeira, dois elementos (que não chegamos a mencionar acima para o bem do suspense) que se entrelaçam com um humor algo caricatural e brejeiro, retalhado pelas lembranças e transformados em idiossincrasias para qualquer freguês jubilar (o universo queer colombiano atado a um curioso olhar “Almodovariano”). Por fim, as doses claras de inserção social, um prisma imundo dos necessitados e dos incapacitados (mais uma vez fere em contraste com o formalismo americanizado). É a marca de Ospina a pesar neste cenário onde ninguém sai ileso, até mesmo o “punchline”” confiante ousa em ferir os mais “novatos” com alusões sexualizadas:  “sempre me privei dos investigadores privados” .

“Soplo de Vida” não esconde os seus baixos recursos e a tendência de “desenrasque” da sua produção. O realizador afirmara que os seus filmes são “baratos” e que a liberdade tem um preço baixo a pagar. Infelizmente, mesmo sob o rótulo de pechincha, esta série B foi um fracasso no box-office, forçando um desinteresse de Ospina na ficção e regressando ao que tão bem soube fazer até então, mostrar a Colômbia desconhecida e proibida. Diremos que, com o auxílio do Génesis, esta sua derradeira e segunda ficção, resolve-se como um “faz-de-conta” a entidades divinas, cujo sopro atribui vida a uma moldado pedaço de barro. Por outras palavras, tudo não passa de uma experiência.

Nós paranoicos, sofremos o dobro

Doclisboa'18: um convite à lá Luis Ospina

Hugo Gomes, 17.10.18

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Todo comenzó por el fin" (2015)

O Doclisboa avança com a sua 16ª edição, um ano que será marcado com regressos de habitués como Wang Bing, Salomé Lamas, Frederick Wiseman e até mesmo Rithy Pahn, e até nomes a descobrir como já é “tradição” na secção Verdes Anos. Porém, afirma-se, no Doclisboa’18 um dos grandes destaques, se não o grande, encontra-se num nome, possivelmente desconhecido para muitos: Luis Ospina.

Originário da cidade de Cali, uma das mais importantes da Colômbia, Ospina estudou cinema nos EUA, mais precisamente na UCLA, tendo regressado após um primeiro filme à terra natal na década de 70. Aí fundou um cineclube e uma revista de cinema Ojos al Cine. Considerado um cinéfilo ferrenho, o cineasta nunca escondeu a sua forte veia política na sua obra, usando diversas vezes o audiovisual como uma denúncia da miséria vivida na sua nação. Para além do seu cinema-intervenção, também concebeu documentários de estudo e investigação de diferentes temas ligados ao Cinema, desde os mudos slapstick até ao perdido e desconhecido cinema colombiano.

O porquê da retrospetiva de Luis Ospina ser o programa mais relevante deste Festival com os olhos postos no Mundo? Porque esta é a primeira retrospectiva integral da sua obra na Europa – ter lugar na Cinemateca Portuguesa contando com a presença do próprio para contextualizar os filmes projetados, um convite para todos os curiosos e aventureiros em conhecer um dos nomes mais fortes do Cinema da Colômbia.