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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Chegamos ao Lugar!" Arranca 3ª edição do Close-Up

Hugo Gomes, 12.10.18

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Florida Project (Sean Baker, 2017)

A memória levou-nos à viagem, e em consequência disso, guiou-nos ao Lugar. Mas qual lugar? O Cinema encaminha-nos para espaços, não-lugares, cenários, etapas que resumem a leitmotiv cénicos. Neste terceiro episódio de Close-up: Observatório de Cinema, prosseguimos na jornada de desestruturação do Cinema propriamente dito. De que matéria é feita? Para onde segue? Quais as suas convergências e divergências? Com o Lugar, tema desta nova edição, chegamos, não ao destino, mas possivelmente a uma nova partida.

A decorrer entre os dias 13 a 20 de outubro, Close-up tem convertido num seminal evento em aproximação daquilo que chamamos de ano cinematográfico em revista, sem com isso reduzi-lo a um catálogo de estreias recentes repostas, mas um núcleo de temáticas e capítulos no nosso encaminhar cinéfilo. Prova disso, é a abertura oficializada com a projeção de “Lobos”, o grande trabalho de Rino Lupo, realizador italiano que na sua passagem em Portugal inseriu todo um novo olhar cinematográfico. A sessão será acompanhada por Paulo Furtado, o Legendary Tigerman, uma autêntica ousadia em cruzar a História de um passado remoto com os acordes atualizados do músico. Como encerramento, outro clássico e cruzamento, “Sherlock Holmes Jr.”, o qual Buster Keaton irá adquirir novo fôlego ao som de Noiserv.

Neste terceiro tomo há espaço para novas rubricas, o Café Kiarostami será inaugurado, uma mesa-redonda onde convidados de diferentes sectores do Cinema (realizadores, investigadores e críticos) reunirão para debater sobre os variados cantos e recantos da Sétima Arte. Contudo, serão os filmes, as verdadeiras estrelas destes sete dias rodeados de Cinema e a sua respectiva vénia.

Este ano, alguns dos destaques evidentes será a apresentação de “Cabaret Maxime” pelo próprio realizador, Bruno De Almeida. Possivelmente o melhor exemplo de Lugar neste espaço, um filme em que o cineasta transforma uma Lisboa noturna e soturna em “nenhures”, um território imaginário e igualmente real. A guerra entre cabarés é só o pico do iceberg, que é constituído pelas reposições de “Isle of Dogs”, de Wes Anderson (novamente frisando o “não-lugar”, neste caso inserido num Japão neofeudal e industrial), “Ramiro” de Manuel Mozos, a Lisboa saudosista e melancolizada no qual é embebido o espírito do homónimo protagonista e um dos grandes filmes do ano - “Florida Project”, de Sean Baker - um oásis situado nas fronteiras da Disneyland. Todas as sessões contarão com participações de personalidades ligadas ao Cinema, que debaterão com o público, a questão de espaço e lugar na compostura cinematográfica.

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Sansho, The Bailiff (Kenji Mizoguchi, 1954)

Apesar dos lugares serem vários e indeterminados, existe um específico que promete ser paragem obrigatória neste evento – a América Latina. O Close-Up irá exibir um leque de filmes recentes das diversas cinematografias latino-americanas, passando pela esplendorosa escuridão das minas bolivianas de “Viejo Calavera”, de Kiro Russo, pelos paraísos perdidos das promessas nucleares em “La Obra del Siglo”, de Carlos Machado Quintela, e as fantasmagóricas selvas em busca de Vicuña Porto em “Zama”, a mais recente longa-metragem de Lucrecia Martel.

Mas a História (H grande aplica-se) é também ele um lugar de obrigatória paragem, dando continuação à rubrica, este ano Close-Up aprofunda no Japão assombrado de Kenji Mizoguchi, projetando quatro das suas principais obras (“Sansho, The Bailiff”, “The Crucified Lovers”, “Ugetsu” e “The Street of Shame”). A lição de História passará pelos influenciados, e precisamente os portugueses que espelharam esses signos mizoguchianos nas suas respectivas filmografias. Nesse leque poderemos contar com Pedro Costa (“O Sangue”), Paulo Rocha (“Mudar de Vida”) e João Pedro Rodrigues (com a curta documental, “Allegoria Della Prudenza'').

Já na secção Fantasia Lusitana, serão destacados Diogo Costa Amarante, vencedor do Urso de Ouro da Curta-Metragem no 67º Festival de Berlim e visto como um dos mais promissores nomes da cinematografia portuguesa, e Mário Macedo, jovem realizador que também tem feito um premiado e igualmente promissor percurso em festivais. Ambos realizadores serão frutos de retrospectiva (no caso de Macedo, haverá estreia absoluta de um novo trabalho). Como anexo deste espaço, Diogo Costa Amarante teve direito a Carta Branca e a sua escolha recaiu na obra de Agnès Varda, “Vagabond” (1985).

Close-Up ocorrerá, como é habitual, na Casa de Artes de Vila Nova de Famalicão. Por entre o Cinema e os debates, ainda haverá “lugar” para a Exposição Fotográfica e de Vídeo de Ana Cidade Guimarães e Virgílio Ferreira intitulado de A Natureza do Lugar e o Lugar da Natureza.

Um barão à beira de um ataque de nervos

Hugo Gomes, 05.05.18

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Não deixem-se enganar pela estética plastificada digna de um quadro - “Zama” - a quarta longa-metragem da argentina Lucrecia Martel (que regressa após 9 anos de ausência) é um filme cruel para com o seu protagonista, o homónimo barão que cede à deterioração existencial e social perante os desejos longe de se cumprir.

É a espera que cai sob colossal peso na consciência da personagem encarnada por Daniel Giménez Cacho, respeitado oficial da Coroa Espanhola destacado num posto fronteiriço de Paraguai, que anseia pela transferência para Buenos Aires a fim de estar reunida com a sua família, que vive cada dia sob tremenda eternidade e um silencioso desespero. Se em “Zama” encontramos o registo de martirologia, é bem evidente que a hostilidade emanada pela realizadora reflete de igual maneira na subtileza visual. Perfeitamente encabeçada nos enquadramentos gerais, Martel é uma cineasta que prioriza o visual acima da narrativa convencional, mas é ao invisível que recorre, afrontando a visibilidade e questionando com isso,as suas próprias imagens. Tal como fizera com o seu anterior “La mujer sin cabeza”, o filme decorre sobretudo na inerência do seu protagonista.

Neste “Zama”, para além de se focar nas miragens fantasiadas pelo protagonista, Martel afirma uma conscientização de um terreno além-visto, desde os fantasmas, literalmente falando, até à assombração do mortal Vicuña Porto, cujas as exaustivas referências o transformam num espectro do mal representado, passando pelas fantasias idealizadas (desde o desejo de Buenos Aires até ao corpo idolatrado de Lola Dueñas). É por isso que por mais ordenado e formalista “Zama” se identifique, o filme tende em ser outro, vagueando por pântanos subtropicais até se transformar em algo mais, a possibilidade de descartar a sua importância estética (não desfazendo o belo trabalho do português Rui Poças no departamento de fotografia) em prol de um lirismo quase etéreo - Martel filma os colonizadores da mesma forma que os colonizados e os animais para diluí-los numa universo igualitário.

Por cá, caem comparações com “Jauja”, do conterrâneo Lisandro Alonso, o colonialismo invasor versus a América mística que sobrevive em derradeiros redutos (nem que sejam os imaginários), e o esoterismo captado pelas lendas duradouras e falsamente inseridas em sociedades em transição. Em ambas as obras, o El Dorado é procurado, cada um à sua maneira e em contextos térreos divergentes.

Lucrecia Martel e as (des)venturas do barão Zama: "filmo os animais como os homens"

Hugo Gomes, 02.05.18

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Lucrecia Martel na rodagem de "Zama" (2017)

A heroína independente, assim o Indielisboa a homenageia na sua 15ª edição. Lucrecia Martel é hoje tida como umas das grandes influências do novo cinema argentino e apesar de contar apenas com quatro longas-metragens, a sua linguagem cinematográfica tem tumultuado toda uma tendência de cinema.

Com "Zama", até à data o seu filme mais ambicioso, Lucrecia Martel volta a envergar por protagonistas isolados existencialmente, e refugiados do seu próprio ambiente. Neste seu novo filme seguimos Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), um oficial da Coroa Espanhola destacado num retiro colonialista do Paraguai, que aguarda por uma transferência. A espera será o seu martírio, transformando aos poucos um orgulhoso barão num ser cada vez mais decadente e dependente da misericórdia divina.

Conversei com a realizadora sobre o seu mais recente projeto, a forma como o filmou, a sua colaboração com o diretor de fotografia, o português Rui Poças, e ainda a sua indignação para com o universo das séries de televisão.

Foram precisos 9 anos para voltar a fazer outra longa-metragem. O que a fez regressar?

O que acontece é que eu nunca faço planos. Não agendo qual filme irei trabalhar a seguir. Quando terminei a “La mujer sin cabeza”, pensei que nunca mais queria fazer outro filme. Aliás, quando saio de um projeto tenho este tipo de pensamentos – não quero continuar a fazer filmes. Mas porventura o tempo passa e ganho uma certa vontade de trabalhar. E sempre aparece algo ou uma questão que desejo partilhar com o espectador. Mas no geral, nunca planeio a minha carreira nem o antevejo que natureza será o meu próximo projeto.

“La mujer sin cabeza” tem alguma congeneridade com este “Zama”. Enquanto que na "Mulher" a identidade da protagonista era gradualmente fragmentada, neste seu novo filme o mesmo acontece ao protagonista, só que ao invés do trauma é a ausência deste – a espera.

Sim, são filmes muito similares, aliás, narrativamente este “Zama” é idêntico à  “La mujer sin cabeza”, porque somos de certa forma transportados para o interior da cabeça do protagonista.

Sim, a Lucrecia tem uma apetência em “perseguir” o invisível e Zama não está longe disso.

O dispositivo é o seguinte: todo o livro de Antonio Di Benedetto, o livro de “Zama”, é um monólogo pessoal, e as palavras que são ditas pertencem a outras pessoas. Sem dize-las quotidianamente, elas funcionam como um pensamento. Assim sendo, tive que inventar cenas para preencher esse mesmo monólogo, colocar “Zama” a apoderar-se desses pedaços de diálogos e torná-los seus por direito.

A minha intenção era que o espectador visse um filme onde é inexistente qualquer indício de voz-off, mas de alguma maneira, este chegaria ao final em que percebesse que todas as vozes escutadas era na verdade a “invisível voz-off” do próprio “Zama”, o monólogo ausente e igualmente presente.

Em relação ao Zama, a personagem, durante o casting, o que procurava nesta sua encarnação?

A ideia era encontrar um ator capaz de expressar um conflito sem a utilização de qualquer tipo de fala e acabei por encontrar isso no Daniel Giménez Cacho.

Devo dizer que a Lucrecia é uma realizadora cruel para com a sua personagem. Entendemos Zama, mas não sentimos compaixão pelo mesmo, e mesmo assim ele é fortemente humilhado em todo o filme.

Não penso assim, mas compreendo que alguém possa sentir dessa maneira, até porque eu me identifico muito com “Zama” e fiquei sempre com a sensação que muitos pudessem identificar com ele.

Mas acredito que se esta personagem fosse uma mulher, muitos espectadores não encarariam como humilhação, porque é mais razoável este tipo de situações acontecer a uma.

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Zama (2017)

Então, ao conceber a personagem Zama, pensou nele como uma personagem feminina?

A mim não me serve de nada pensar se Zama é um homem ou uma mulher. É obvio que no Cinema somos “agarrados” aquilo que vemos e se o papel pertencesse a uma atriz iremos encarar como uma mulher.

Mas, como parte da escrita, para mim, foi importante trabalhar a personagem como algo indefinido. Tratá-la como algo monstruoso, uma criatura quase alienígena que nem ele próprio saberia se é homem ou mulher.

Agora, o livro “Zama” está escrito de uma maneira pouco usual, focando e observando atentamente o desejo deste homem. É um tipo de livro raro na forma como descreve os homens. Benedetto não estava a pensar num barão, mas sim num ser humano. Um humano com um inerente conflito, o de ter razão ou não ter razão, assim como a sua frustração tão próxima do desejo.

Historicamente, este tipo de retrato na literatura atribui-se a uma mulher e não a um homem, essa tendência de triunfar e ao mesmo tempo cair.

Algo curioso e muito evidente em Zama, é que a Lucrécia filma os homens e as mulheres da mesma forma que filma os animais.

Sim, na realidade filmo os animais como os homens. A minha ideia de monstro explica exatamente isso, o de não distinguir o que se está a filmar e sobretudo, estar segura do que se tem à frente.

Quando filmo, não estou a pensar que à frente da câmara tenho uma mulher com tais características ou um homem com iguais atributos, ou se é um Homem branco ou um indígena. Trato da mesma maneira, a lente da minha câmara não julga nem faz distinções.

Quanto ao seu trabalho com Rui Poças, o diretor de fotografia?

Este foi um filme que requereu muito esforço físico e o Rui, para além de ser um excelente diretor de fotografia, possui um espírito incrível. Isso notou-se porque em nenhuma situação ou problema que surgiu na rodagem, não transmitiu qualquer adversidade para a restante equipa. Em termos de trabalho, Rui foi genial.

Novos projetos?

Estou a escrever algo que penso que poderá vir a tornar-se num filme, mas como já havia dito no início, não tomo este tipo de decisões com tempo.

Para terminar, gostaria que falasse das suas ideias em relação às séries de televisão. É sabido que declarou ao jornal El País que “as séries são um retrocesso”. Não partilha da opinião generalizada que na televisão concentra um “Novo Cinema”?

Creio que está a ocupar todo o espaço da narrativa audiovisual, assim como muitos não vêem as séries em televisores, assistem no computador ou outras plataformas que em nada parecem com as televisões. O grande consumo das mesmas dá-se por aí, através dos computadores ou Smart Tvs, onde os espectadores consomem temporadas inteiras numa só noite ou num fim-de-semana sem sair da cama.

O que eu penso não é se são boas ou más. O meu problema é o facto delas se concentrarem exclusivamente no argumento, o que é para mim o arcaico da narrativa, essa subjugação pelo argumento.

Faz sentido a preocupação com um todo, a estética por exemplo, e não apenas que se governe perante as linhas argumentais. Restringir a isso é o mesmo que as discussões amorosas. Neste tipo de discussões, diz-se coisas terríveis, mas aí o sentido das palavras não tem importância e sim a forma. Como tal, podemos tirar as conclusões que este casal ama-se, porque não se preocupam com o que se disse e sim, o como se disse. No caso de um casal que proclama palavras amorosas, mas sem a intenção nem a forma de demonstrar, sabemos à partida que eles não se amam.

Se nos prendemos no argumento, o resultado será pobre e as séries atravessam esse caminho. Todavia, as pessoas estão contentes que assim seja. O que mais me aflige é que não existem muitos críticos a falar profundamente disto.